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Edição 174, janeiro 2022

Com Simon Plestenjak

'AMAZÓNIA É VÍTIMA DE MENTALIDADE BÁRBARA, COLONIZADORA'

No Brasil há 17 anos, o fotógrafo esloveno Simon Plestenjak documentou o quotidiano do povo amazónico Yawanawá. Para ele, é absurdo constatar que situação dos indígenas é a mesma de há 500 anos. A entrevista é de Edison Veiga, publicada por Deutsche Welle /IHU.

Como foi para você trazer um pouco da Amazônia para sua terra?

É o último grande trabalho autoral que fiz, então eu queria divulgar, mostrar… E casou superbem com o lugar [a mostra está em cartaz na sede do Parque Nacional do Triglav], uma entidade importante para a preservação da natureza. As pessoas se interessaram pela temática da floresta [Amazónica] e também por ser exótico.

De onde veio seu interesse pela Amazônia?

Dos gibis do Sergio Bonelli, especificamente os do [personagem] Mister No, que a gente lia durante as férias na Croácia todos os anos. Eu até coleciono esses gibis. Ele era um gringo e morava na Amazônia, onde se envolvia em várias aventuras. Tudo isso despertou em mim um interesse pelos povos indígenas, pela América do Sul. Já tinha viajado por muitos países da América Latina, e o Brasil estava me esperando. Logo em meu primeiro ano de Brasil, já fui para a Amazônia, mas como turista. E sempre fiquei procurando um jeito de chegar mais próximo ao dia a dia dos indígenas. Em 2019 [na terceira vez em que esteve na Amazônia], encontrei essa maneira. Foram dois dias de viagem: um avião de São Paulo para Manaus, depois outro para o Acre, depois um ônibus, então oito horas de barco. Fiquei dez dias lá, hospedei-me na casa dos indígenas, fui caçar com eles, participei de rituais xamânicos.

A Amazônia real é mais interessante do que a dos gibis?

É muito mais fascinante do que eu imaginava. Tem uma intensidade absurda, especialmente à noite. Tem tanta vida presente que o ar vibra de som, cheio de vida. Eu imaginava que fosse mais perigosa. No fim das contas, me senti tão seguro quanto indo às montanhas aqui da Eslovênia. Em qualquer lugar é preciso ter cuidado, contar com conhecimentos de locais sobre os animais e os terrenos, mas fisicamente a floresta é bem tranquila. O que mais me surpreendeu foi o frio à noite. Foi quando percebi o quanto são importantes as árvores, o quanto a floresta preserva, não deixa esquentar o chão. À noite era supergostoso o frio para dormir.

Alguma coisa o decepcionou?

Nada me decepcionou. Identifiquei-me muito mais do que esperava com os indígenas. Super me conectei com eles, são seres humanos incríveis. Vi paralelos com qualquer pessoa que mora junto à natureza. Eu me surpreendi com o quanto eles são espirituais e o quanto essa espiritualidade está conectada com a natureza, diretamente.

Vivemos um cenário de bastante desmatamento, em um contexto em que povos originários indígenas também têm perdido proteção e vivem sob ameaça. Do ponto de vista de um estrangeiro que vive no Brasil, como você analisa esse problema?

Acho essa situação simplesmente absurda. Estamos presenciando uma mentalidade medieval, bárbara, colonizadora, como a de 500 anos atrás. Os indígenas se encontram na mesma situação, como se não houvesse tido um progresso de 500 anos no meio disso. Muitas coisas ligadas às diferenças sociais no Brasil parecem verdadeiros absurdos para um europeu, especialmente para um esloveno. Como as pessoas podem deixar chegar a esse ponto? É triste, não sei o que dizer.

Vê alguma solução?

Muitas pessoas ainda veem a natureza como recursos materiais para serem tomados, não respeitando a vida, a terra, não respeitando nada. Tiram [da natureza] com objetivos que não têm nada a ver com a vida em si, só se importando com a acumulação, a ganância. Como erradicar isso, ninguém tem a resposta. Mas acredito que um dia isso vai acontecer, esse tipo de mudança precisa de centenas de anos… Por outro lado, acabei de falar que se passaram 500 anos e nada mudou, né? Então não sei. Não sei se posso ser otimista.

Nos últimos anos temos acompanhado um movimento em que diversas empresas europeias boicotam produtos brasileiros como retaliação pelo desmatamento. A solução pode vir do mercado?

Essa é a real opção do momento. Enquanto vivemos em um mundo absolutamente capitalista, as mudanças que acontecem são pelo mercado. Direitos humanos, direitos de pessoas LGBT, tudo isso só aconteceu por causa do mercado. Esse é um lado bom do capitalismo, que não faz tudo acontecer, mas faz muita coisa acontecer. Com o que a gente tem à mão agora, esse é jeito de pressionar.

Vê algo em comum entre a sua Eslovênia e a Amazônia?

Sim. A natureza. Na Eslovênia eu meio que cresci entre florestas. Na natureza sempre me senti em casa. Podia estar sozinho e me sentia seguro, em casa. O mesmo aconteceu comigo na Amazônia e por isso foi maravilhoso. De alguma maneira vejo que quando estamos na natureza, estamos em casa. Temos o direito moral de estar na natureza, de ser parte da natureza. Quando nos conectamos com ela, sentimos que é nosso lar. Na Amazônia me senti superbem. Em São Paulo me sinto estrangeiro. Na Amazônia, não. Estar com os indígenas foi como visitar uma família distante.

Com Alexandre Uezu

ECOLOGIA DE PAISAGEM E CONSERVAÇÃO

"A Ecologia de Paisagens busca entender como os processos ecológicos são influenciados pela configuração e composição das paisagens, ou seja, busca entender como o mosaico de diferentes elementos que compõem as paisagens, como os ecossistemas naturais e aqueles produzidos pelos seres humanos influenciam no fluxo gênico", explica o professor Alexandre Uezu. Uezu é graduado em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e mestre e doutor em Ecologia pela mesma instituição. É pesquisador do Instituto de Pesquisas Ecológicas e professor pela ESCAS - Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade. A entrevista é de Elissandro Santana, publicada por EcoDebate /IHU.

Em primeiro lugar, é importante que se apresente para o público leitor da EcoDebate.

Sou biólogo, com mestrado e doutorado na área de Ecologia, especificamente em Ecologia de Paisagens. Sou pesquisador e professor da ESCAS/IPÊ – Escola Superior de Conservação Ambiental e Sustentabilidade do Instituto de Pesquisas Ecológicas. Também coordeno projetos que buscam, através do planejamento da paisagem, conciliar a conservação da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos com o desenvolvimento sustentável em paisagens rurais.

Feita a apresentação, gostaria que discorresse um pouco acerca da importância dos estudos no campo da ecologia de paisagem para a conservação da biodiversidade.

A Ecologia de Paisagens busca entender como os processos ecológicos são influenciados pela configuração e composição das paisagens, ou seja, busca entender como o mosaico de diferentes elementos que compõem as paisagens, como os ecossistemas naturais (por exemplo, rios, florestas e campos nativos) e aqueles produzidos pelos seres humanos (como a agricultura, as áreas urbanas, estradas e pastagens) influenciam no fluxo gênico, na distribuição das populações de diferentes espécies, na interação intra e interespecífica, e em diferentes parâmetros populacionais. Dessa forma, por abordar tanto as áreas naturais quanto as antropizadas, numa escala ampla, essa ciência nos ajuda a entender como manejar a paisagem de forma a conciliar a conservação da biodiversidade e o fornecimento de múltiplos serviços ecossistêmicos, que são fundamentais para a sobrevivência humana no planeta, como a produção de água, de alimentos e outros produtos. Portanto, a Ecologia de Paisagens é uma ciência conciliadora, que busca entender as interfaces entre os ecossistemas naturais e os antropizados e que tem o potencial de nortear as ações para a geração de paisagens sustentáveis.

Professor Alexandre, quais são os principais problemas para a fauna em paisagens fragmentadas?

As paisagens fragmentadas acontecem quando substituímos partes dos ecossistemas naturais por diversos tipos de usos da terra, o que em boa parte das vezes, acaba segmentando os habitats naturais em manchas de tamanhos menores e mais isoladas entre si. Dessa forma, a fauna que depende desses habitats para sobreviver passa a ter uma limitação de recursos devido à redução das áreas. Essa redução é ainda mais acentuada quando consideramos os efeitos de borda, que são modificações nas bordas dos fragmentos causadas pelo contato entre o ambiente natural e o antropizado. Essas áreas, em geral, têm maior incidência luminosa, apresentam maior temperatura e menor umidade e são mais susceptíveis a presença de espécies exóticas. Muitas espécies de interior de floresta não conseguem viver nessas áreas o que, na prática, reduz a sua área efetiva em que podem ocorrer. Essas limitações fazem com que as populações remanescentes nesses fragmentos sejam relativamente pequenas, o que pode causar deterioração genética pelo cruzamento de indivíduos parentais e também aumentar as chances de extinções locais, devido a eventos extremos, como tempestades, longos períodos de estiagem ou mesmo queimadas. Ou seja, as populações ficam mais susceptíveis a desaparecerem.

No que se refere à Mata Atlântica no Extremo Sul da Bahia, qual a real situação em relação à fragmentação?

A região do Extremo Sul da Bahia apresenta cerca de 17% de cobertura florestal. Apesar da baixa porcentagem, há ainda na região grandes remanescentes de Mata Atlântica, o que garante a presença de muitas espécies ameaçadas. Essas áreas maiores são geralmente área protegidas na forma de Unidades de Conservação – UC, como o Parque Nacional do Pau-Brasil, o Parque Nacional do Descobrimento, o Parque Nacional do Monte Pascoal e a RPPN da Estação Veracel. Juntas essas áreas chegam a aproximadamente 70 mil hectares. No entanto, para a conservação desses importantes remanescentes e sua rica biodiversidade é fundamental manter alta a conectividade das paisagens no entorno dessas UCs, de forma a garantir um bom fluxo gênico entre essas áreas, a fim de manter populações saudáveis das espécies que habitam essas florestas, sobretudo aquelas mais sensíveis e ameaçadas.

Professor, de forma resumida, se for possível, de modo geral, escolha um bioma ou mais, caso queira, e apresente, em uma perspectiva histórica, os principais fatores que contribuíram para a fragmentação de paisagens.

O processo de fragmentação acontece de forma muito similar nos diferentes biomas brasileiros. Se pegarmos dois exemplos extremos, a Mata Atlântica, com um processo mais antigo e a Amazônia, que tem sido fragmentada mais recentemente, observamos processos e vetores de desmatamento muito semelhantes. A Mata Atlântica, por se distribuir ao longo da costa foi o primeiro Bioma a ser desmatado e fragmentado a partir da colonização. Atualmente, mais da metade da população brasileira mora em áreas de domínio da Mata Atlântica e 12 capitais de estados se localizam neste bioma. Em termos de cobertura, temos cerca de 28% da floresta nativa remanescente ou secundária. Os grandes remanescentes que restaram no bioma são aqueles localizados em áreas montanhosas, como na Serra do Mar, onde a ocupação foi dificultada pelo relevo íngreme.

As UCs também têm um papel fundamental para manter os grandes maciços florestais em pé.

Já, na Amazônia, percebemos um avanço da destruição da floresta pelas bordas do bioma, no chamado arco do desmatamento. Já, ultrapassamos a perda de mais de 20% da cobertura florestal e um dos principais vetores de desmatamento para esse bioma é a abertura de estradas. Ao alcançar os interiores das florestas primárias elas abrem caminho para uma ocupação que se irradia a partir dessas vias principais e que, em seguida, são ocupadas por pastagens ou plantios de soja. No entanto, seja na Amazônia, na Mata Atlântica ou outro bioma, o processo de desmatamento e fragmentação ocorreu e ainda ocorre com duas finalidades:

1. Garantir a posse das terras e,

2. Expandir as monoculturas, como a criação de gado, o cultivo do café, da cana-de-açúcar, da soja e outras monoculturas.

Professor, o que podemos aprender e fazer daqui para frente acerca do efeito de borda nas áreas de fragmentação de paisagens em que o desmatamento e as queimadas avançam a cada dia?

O efeito de borda é um efeito importante, mas é apenas um dos impactos negativos produzidos pela fragmentação dos habitats. A partir dos estudos em Ecologia de Paisagens tem se chegado a conclusões importantes que podem ser usadas no momento de se planejar ações em uma paisagem, entre elas: em cada região é fundamental manter áreas contínuas de habitats nativos, pois algumas espécies não se adaptam a ambientes fragmentados; fragmentos grandes (>500 ha) também são essenciais para manter alta a biodiversidade na paisagem, especialmente para garantir a presença de espécies mais sensíveis; o aumento da conectividade da paisagem favorece a alta biodiversidade e, com isso, a manutenção de várias funções ecológicas, dessa forma, a implantação de corredores ecológicos, de trampolins ecológicos (stepping stones) e o aumento da permeabilidade da matriz devem ser incentivadas para mantermos paisagens mais saudáveis. A Ecologia de Paisagens nos ensina que temos que considerar o planejamento das nossas ações de forma integrada, a presença de sistemas antrópicos nem sempre beneficia as áreas naturais, no entanto, o contrário normalmente acontece, ou seja, a presença de áreas naturais beneficia os sistemas produtivos, dessa forma, é muito importante buscarmos configurações ótimas da paisagem que garantam concomitantemente a conservação da biodiversidade e a geração de serviços ecossistêmicos.

Os efeitos, as consequências e os problemas são gigantes em relação à fragmentação de paisagens no Brasil. Pensando nisso, cite experiências bem sucedidas (que possam ser replicadas pelo país, dependendo das especificidades dos biomas e diversos ecossistemas, evidentemente) de recuperação, de construção de corredores ecológicos, ou, como alguns nomeiam, corredores de vida, dependendo da postura ou posição teórica que se adote.

Uma das formas de minimizar esses efeitos negativos da paisagem é aumentar conectividade da paisagem, seja através da criação de corredores ecológicos e de trampolins ecológicos (“stepping stones”) ou do aumento da permeabilidade da matriz. O aumento da conectividade é uma forma de aumentar a resiliência aos eventos extremos das populações de diversas espécies que vivem em paisagens fragmentadas. No Pontal do Paranapanema, o IPÊ vem trabalhando para reverter o processo de fragmentação que se iniciou na década de 50, época em que a região tinha 80% da cobertura florestal. A partir do planejamento da paisagem na região, considerando os passivos ambientais das propriedades (de acordo com a lei florestal) e as áreas mais importantes de serem restauradas para aumento da conectividade da paisagem, o IPÊ, vem protagonizando uma importante ação que visa mudar a composição e configuração da paisagem na região, implantando tanto a restauração florestal em Áreas de Preservação Permanentes – APPs e Reservas Legais nas grandes propriedades, que funcionam como corredores ecológicos; e os Sistemas Agroflorestais – SAFs, nos assentamentos rurais, que funcionam como trampolins ecológicos. Essas ações beneficiam não apenas as diversas espécies ameaçadas que ocorrem na região, mas também favorecem economicamente as comunidades locais que vivem na região, gerando renda através dessas ações. De forma similar, o IPÊ também tem atuado na região do Sistema Cantareira, através do projeto Semeando Água, com ações de restauração florestal e implantação de sistemas produtivos sustentáveis a fim de gerar paisagens multifuncionais, ou seja, aquelas que apresentam alta conectividade para a biodiversidade e que ao mesmo tempo promova diferentes serviços ecossistêmicos, como a provisão de água. Essas ações são fundamentais visto que o Cantareira é um dos sistemas de abastecimento mais importantes do planeta, já que são mais de 7 milhões de pessoas que dependem da água desse manancial, além de importantes polos industriais e empresariais.

Pe. Hans Zollner, SJ

OS ABUSOS NA IGREJA, UMA TAREFA DE VIDA

"A coragem da transparência, de assumir responsabilidades, de comunicar abertamente, tudo isso ainda falta com demasiada frequência na Igreja Católica", diz o pe. Hans Zollner ao comentar a questão dos abusos na igreja. Segundo ele, para muitas pessoas do clero e, "mesmo entre os fiéis comuns, a imagem de uma Igreja imaculada tem um grande significado". Hans Zollner, S.J., é psicólogo e psicoterapeuta licenciado com doutorado em teologia e é um dos principais especialistas da Igreja na área de salvaguarda de menores. Ele é o presidente do Centro de Proteção à Criança da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, membro da Pontifícia Comissão para a Proteção de Menores e consultor da Congregação para o Clero. A entrevista é de Roland Juchem, publicada por KNA e reproduzida por Settimana News. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Padre Zöllner, há dez anos o senhor fundou o Centro de Proteção à Criança, que recentemente se tornou um instituto de antropologia para a dignidade humana e o cuidado de pessoas vulneráveis. O que o levou a tornar o terrível tema dos abusos a sua tarefa de vida?

As razões essenciais foram certamente o grande mal-estar, o caos inicial, a incapacidade de falar e a paralisia da Igreja. A questão fundamental era: como se enfrenta a dor dos sobreviventes, como podemos ir ao seu encontro? Como se coloca tudo isso na formação do pessoal eclesial?

Mas também se trata de encontro com as pessoas, com as vítimas dos abusos?

Como psicoterapeuta, me encontrei diante dos abismos humanos de muitas maneiras. O abuso sexual não é a única forma. A partir daqui, imediatamente ficou claro para mim que esse caminho só poderia ser percorrido com os sobreviventes. Somente assim, em nosso trabalho, podemos criar uma imagem adequada da realidade dos fatos - tanto na vida das pessoas quanto na instituição.

O senhor começou em 2012 em Munique e em 2014 o Centro foi transferido para Roma. Onde encontrou apoio e onde resistência?

Meus superiores na Companhia de Jesus me apoiaram imediatamente, o padre geral e o reitor da Gregoriana nos ajudaram imediatamente. Também recebemos consenso de muitos líderes da Cúria do Vaticano.

Resistência, oposição?

Resistência de forma direta e concentrada, não recebemos nenhuma. O que eu noto é que muitos sentem um grande desconforto quando confrontados com a questão dos abusos. Eles acreditam que não se deve enlamear a Igreja, mas defendê-la. Mas, pessoalmente para mim, essa forma de sentir nunca é expressa diretamente.

Fala-se muito sobre causas sistémicas dos abusos. Quais são as que podem ser constatadas na Igreja?

Sistémico significa que fatores únicos influenciam uns aos outros: formação, forma de exercer o ministério, disponibilidade para a reforma, subdivisão dos recursos disponíveis e muito mais. Um exemplo: não temos certeza jurídica de como proceder. Por que alguém é demitido em um caso e outro não em outro caso? Os direitos de todos os envolvidos no processo também não são suficientemente claros: acusados, vítimas, superiores ... Quem pode dizer e saber algo - não há uma definição clara sobre isso.

Portanto, são necessárias mudanças no direito penal eclesial?

Certo. E além disso há a questão da divisão de poderes na Igreja. A convergência do legislativo, do executivo e do judiciário no bispo torna extremamente difícil a transparência e o dever de prestação de contas do trabalho. Em todo caso, em 2019 foi dado um passo em frente no que diz respeito ao dever e à obrigação de prestar contas por parte dos bispos. Além disso, o sistémico e o pessoal se misturam. Para muitos, mesmo entre os fiéis comuns, a imagem de uma Igreja imaculada tem um grande significado. A coragem da transparência, de assumir responsabilidades, de comunicar abertamente, tudo isso ainda falta com demasiada frequência na Igreja Católica.

Qual é o papel do clericalismo?

O clericalismo pode ser encontrado tanto entre os padres quanto entre aqueles que não o são. A tendência ao prestígio e a sensação de ser intocável não dependem apenas da ordenação. Como o pessoal eclesial é escolhido e formado? Como alguém se torna bispo? Quais são as qualidades que realmente desempenham um papel em tudo isso? Como é a formação nos seminários? São seguidos os documentos pontifícios nos quais a formação humana é a base para todo o resto? Não me parece.

Em que ponto está com sua pesquisa sobre os abusos espirituais. Trata-se de um dos âmbitos do novo Instituto, se não me engano?

Certo. Para a Igreja, esta é uma questão importante. O que surpreende é que surgiu na esfera pública apenas nos últimos dois/três anos.

Quais são os objetivos fundadores do novo Instituto?

Importante é a revisão do nosso Blended-Learning Program – um instrumento essencial para agir numa base ampla. Quanto aos conteúdos, trabalhamos neles o tempo todo - até porque surgem novos temas e áreas. Também iniciamos alguns projetos de pesquisa, inclusive para fortalecer nossa reputação em nível científico. Um projeto diz respeito às expectativas espirituais dos sobreviventes em relação à Igreja. Este projeto insere-se no âmbito da fundação “Spes et salus”, projetada pelo card. Marx, que assumiu esse tema para o nosso Instituto.

E o pessoal do Instituto?

Finalmente, não sou mais o único professor, o ex-vigário geral de Munique, Peter Beer, também trabalha há pouco tempo conosco. Depois teremos uma pessoa que se dedicará particularmente à pesquisa. Por fim, temos toda uma série de jovens que continuam sua carreira acadêmica em nosso Instituto e que poderão se tornar professores aqui. Nos demos alguns anos para realizar isso.

O futuro pessoal do Instituto permanecerá interno?

Não só, pessoas qualificadas de fora do Instituto entram em contato conosco continuamente. Recebemos da diocese de Stuttgart-Rottemburg uma perspectiva de financiamento para um pós-doutorado no campo da pedagogia da prevenção. Um tema importante é a prevenção dos abusos na Internet - que hoje é o maior fator de risco para crianças e adolescentes. Em uma antropologia interdisciplinar, devemos aprender a conectar as disciplinas do direito, direito canônico, psicologia, psiquiatria e teologia. Só assim podemos compreender melhor e garantir a dignidade da pessoa e o cuidado dos vulneráveis - e também garantir uma melhor prevenção.

Mas não precisam de especialistas em informática e professores?

A rigor, não precisamos de especialistas em informática, mas de pessoas que saibam o que significam os abusos na Internet, que danos causam, como estão ocorrendo os desenvolvimentos na Rede. Em primeiro lugar, eles precisam saber quais meios devem ser aplicados para que as empresas dos media sociais nos escutem.

Edição 173, dezembro 2021

Com Srećko Horvat

'NOSSA ÚNICA ALTERNATIVA HOJE É A EXTINÇÃO OU UMA REINVENÇÃO RADICAL DO MUNDO'

Quando a pandemia começou, alguns disseram que a espécie mudaria para melhor. Outros, como Slavoj Žižek, pensaram que seria o fim do capitalismo. O filósofo croata Srećko Horvat (1983), por sua vez, afirma que o vírus é mais do que um fato biológico e o relaciona de forma direta ao medo. Em seu novo livro, Después del Apocalipsis (Katakrak), expõe, no entanto, a possibilidade de explorar o Apocalipse como se fosse uma revelação para enfrentar a pandemia, a crise climática e a era nuclear. “Certamente, não estamos todos no mesmo barco, alguns têm superiates e outros não têm o que comer, mas enfrentamos a mesma tempestade”, expõe o escritor em entrevista. A entrevista é de Héctor González, publicada por Aristegui Noticias. A tradução é do Cepat /IHU

Há pouco mais de um ano, você escreveu que a pandemia do medo era mais perigosa do que o vírus. Pensa o mesmo agora?

Quando escrevi isso, em fevereiro do ano passado, na New Statesman britânica, ainda era um período anterior aos primeiros bloqueios na Europa. Meu ponto não era que o vírus em si não seja perigoso e, enquanto falamos, a pandemia não acabou, pelo contrário. Mas o que podemos ver hoje é justamente o que disse há um ano, que o vírus é muito mais do que um fato biológico, está sempre ligado ao medo, e o medo sempre é usado por várias ideologias. Nesse caso, o que podemos ver claramente é que a pandemia está sendo utilizada tanto pelos etnonacionalistas para fortalecer as fronteiras e criar exclusividade racial, como pelo capitalismo, que se beneficia do prolongado “estado de exceção”. O melhor exemplo é a Amazon. Você sabia que a riqueza de Jeff Bezos aumentou tanto na pandemia que conseguiu pagar a seu 1,3 milhão de trabalhadores um bônus Covid de 690.000 dólares e continuar tão rico como em inícios de 2020? O medo cria incerteza e sempre há aqueles que a utilizarão para obter mais poder e lucro.

Você propõe uma via à margem da esquerda e direita. Em que momento essas ideologias foram superadas?

Bem, você sabe como terminou a ideia da “Terceira Via” defendida por Tony Blair? Quando perguntaram a Margaret Thatcher, em um jantar, em 2002, qual era a sua maior conquista, respondeu: O Novo Trabalhismo. Por quê? Porque, como ela disse, “obrigamos nossos oponentes a mudar de opinião”. Sendo assim, de forma alguma defendo uma “terceira via”. Quando você olha as derrotas da esquerda na Europa, do Syriza ao Podemos, verá que de alguma forma também acabaram como Tony Blair. Sem falar do novo New Labor, depois de Jeremy Corbyn. Quando a política da esquerda radical começar a fazer uma concessão após outra, reforçando de fato o neoliberalismo, você pode ter certeza de que a ascensão da direita radical vem. Ou como disse, certa vez, o grande filósofo alemão Walter Benjamin: “por trás de todo fascismo, há uma revolução fracassada”. Basta olhar a Europa e verá que o fascismo está de volta com toda a sua força, e não são apenas alguns grupos marginais de “extrema direita” ou de direita nas ruas, olhe para os governos da Hungria e Polônia, por exemplo. O que temos que criar hoje não é uma terceira via, mas um novo caminho que vá além das derrotas da esquerda e o sucesso atual da direita.

Žižek escreveu que a pandemia seria um cataclismo para o capitalismo, tudo indica que não será assim. Qual é a sua opinião? O capitalismo será reformulado?

Slavoj é meu bom amigo, mas não concordo que a pandemia seja um cataclismo para o capitalismo. Nesse artigo que você mencionou na primeira pergunta, eu também disse que o que parece ainda mais certo hoje é que a pandemia não deterá a circulação e acumulação intermináveis de capital. Em todo caso, “logo poderíamos enfrentar uma forma de capitalismo mais obscura e inclusive mais perigosa”. Um ano depois, vivemos nessa realidade. A pandemia não serviu como um cataclismo para o capitalismo, mas, sim, como um catalizador. Acelerou o controle tecnológico sobre as populações, gerou mais lucros para pessoas como Jeff Bezos ou Elon Musk, ou simplesmente olhe para os debates sobre o clima em Glasgow. Tudo tem que mudar, para que tudo continue igual. Houve um blá-blá-blá em Glasgow, como Greta disse tantas vezes, acusando os líderes e países mais ricos de simplesmente continuarem prometendo e falando, em vez de ações climáticas sérias e radicais. Que prova é melhor do que Joe Biden, que precisamente depois de Glasgow anunciou planos para abrir milhões de acres para a exploração de petróleo e gás no Golfo do México? Não é um cataclismo para o capitalismo, é um cataclismo para o nosso planeta.

Em seu novo livro ‘Después del Apocalipsis’, pelo menos em espanhol, você aponta que o apocalipse pode ser uma alternativa. Considera que existem condições para isso?

Absolutamente. O que afirmo em meu livro Después del Apocalipsis é que é justamente na América Latina onde as pessoas já sofreram vários confins do mundo. A colonização por países europeus, o genocídio de populações indígenas, a destruição da natureza. Mas o Apocalipse em seu significado original, proveniente do grego antigo apokalypsis, não significa o “fim do mundo”, significa uma “revelação”, descobre algo, e nesse sentido apresenta uma oportunidade. Alguns, como o economista grego e meu amigo Yanis Varoufakis, afirmam que já vivemos depois do capitalismo, o que ele chama de “tecnofeudalismo”. Afirmo que estamos vivendo “depois do Apocalipse”, ainda não estou certo o que é exatamente, mas definitivamente não é o tipo de capitalismo que estivemos vivendo. E abre possibilidades, talvez não apenas “tecnofeudalismo”, mas também espaços para a invenção política, para a reconstrução do transnacionalismo, para novas realidades geopolíticas e um entendimento comum de nossa pertença planetária e viagem compartilhada pelo universo. Certamente, não estamos todos no mesmo barco, alguns têm superiates e outros não têm o que comer, mas enfrentamos a mesma tempestade. E é, conforme expressado novamente por Walter Benjamin em sua memorável descrição do quadro Angelus Novus, de Paul Klee, a tempestade do progresso. Nossa única alternativa hoje é a extinção ou uma reinvenção radical do mundo depois do Apocalipse.

Você se assume como um filósofo radical? Como define o radicalismo?

Há alguns anos, The Guardian me fez uma pergunta semelhante e respondi que o sistema atual é mais violento do que qualquer revolução. Muitos ficaram surpresos, especialmente os liberais, mas meu ponto foi que o sistema atual, com sua interminável exploração, expansão e extração, tanto das almas humanas como dos recursos naturais, é mais radical do que qualquer revolução poderia ser. Dados recentes confirmam que a cada ano cerca de 10 milhões de pessoas morrem por causa da poluição do ar. Isso significa 100 milhões em apenas uma década. Não gosto de Stalin e lutaria com ele até o meu último suspiro e certamente acabaria em um Gulag, se ele estivesse no poder. Mas esse número é cerca de quatro vezes mais do que todas as vítimas nos Gulags de Stalin. Não estou dizendo que o capitalismo atual seja uma espécie de stalinismo, estou dizendo que é muito cínico quando se acusa as revoluções de gerar catástrofes, ao passo que o capitalismo em si é uma grande catástrofe que mata centenas de milhares de pessoas todos os anos, seja com uma poluição atmosférica total ou guerras contínuas, exploração e destruição da natureza, que depois levam a mais incêndios florestais, inundações e desastres climáticos, que novamente matam e matarão mais milhões de pessoas. Se essa posição é “radical”, fico feliz que me chamem de filósofo radical. Mas a posição verdadeiramente radical é continuar com essa loucura.

Com Derrick de Kerckhove

'NA ERA DO ALGORITMO, OS MEDIA PODEM SALVAR O HUMANO'

De Kerckhove no "Nostalgia di futuro": “A informação pode gerar uma nova coesão social, mas deve entender como o mundo mudou”. A entrevista com Derrick de Kerckhove é de Alessandro Beltrami, publicada por Avvenire. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

A 'NewsMedia4Good' pretende mostrar que “precisamos de uma nova ética compreensiva da dimensão algorítmica” na qual “todo o sistema dos media seja uma prioridade”. Em qual base construí-la?

A estrutura cultural ocidental era baseada nos princípios da física clássica. Em vez disso, eu proponho como base a física quântica, cujos princípios são a incerteza, a dúvida, o emaranhamento, ou seja, a interseção, a superposição. A física clássica criou categorias e deu permissão para explorar a natureza. Precisamos estar unidos, entrecruzados com o todo. Precisamos refundar totalmente a nossa forma de comportamento. Quem pode orientar para esta refundação? Os media, que ainda são os depositários da confiança pública. Devemos pedir aos media que repensem seu papel, renunciando a moralismo e sensacionalismo, e produzam coesão social.

Esta não deveria já ser a sua função?

O problema não é apenas que não é aplicado, mas sobretudo que o sistema não é sustentado numa visão mais aprofundada da situação atual. A mediasfera agora é um torvelinho de milhares de respostas que não têm mais nada a ver umas com as outras. Precisamos do que eu chamo de entangled journalism, "o jornalismo entrecruzado": uma nova narrativa do global, do ambiente total.

Agora já são comuns notícias escritas diretamente pelos bots. Como esse facto afeta a dimensão ética do jornalismo, na qual a responsabilidade é central?

A máquina não tem consciência, não conhece o sentido do que produz. Vamos pensar nos tradutores automáticos disponíveis online: a máquina não conhece o idioma mas baseia-se na comparação de vários modelos. O produto são sequências de signos desprovidos de significado para a máquina. Não podemos pedir à máquina uma consciência política e deontológica. Somente o ser humano que verifica as notícias pode tê-las. É o trabalho do jornalista. O grande problema é que o algoritmo é mais informado do que o jornalista, o médico, o consultor financeiro, o militar, o administrador público... Parece que supera as competências humanas. Precisamos negociar um acordo, uma reconciliação entre máquina e homem.

Parece que se confia na inteligência artificial como em um oráculo.

Há alguns dias, apresentei três perguntas a respeito de problemas éticos sobre o gêmeo digital ao GPT-3, um super algoritmo. Recebi três respostas de uma inteligência fenomenal. O GPT-3 dispõe de 175 bilhões de parâmetros de aprendizado de máquina e uma infinita quantidade de informações sobre que trabalhar. Estamos caminhando para uma situação em que poderemos pedir qualquer coisa. Os antigos oráculos fundavam-se em um conhecimento intuitivo do mundo. As respostas dos novos oráculos têm embasamento científico e podem dizer com precisão o que acontecerá nos próximos três anos. A rede contém toda a informação do mundo. Por isso é preciso saber como gerir esse conhecimento. Temos data analytics que podem tomar o lugar da inteligência. Estamos numa relação muito íntima entre pessoa e máquina. Temos que nos perguntar que mundo pode sustentar essa hibridização.

Hoje se fala em antropoceno. Não estamos mais em um "digitoceno"?

Estamos além do digital. Acompanho o tema desde tempos pioneiros e posso dizer sem dúvida que hoje é para a mecânica quântica o que foi para o digital entre 1990 e 1995. Teremos uma computação quântica cada vez mais avançada. Devemos nos preparar, começando por uma atenção dos meios de informação completamente nova. Repensar a notícia, repensar o papel do jornalista, as estruturas da coesão social. É isso que a 'NewsMedia4Good' pretende fazer, que reúne todos os ambientes, da imprensa ao Google.

Uma linguagem que ignora o significado e reduz o mundo a uma função produz um mundo desprovido de ética?

A ética hoje é fraquíssima. Desapareceram as avaliações clássicas de ética da vergonha e da culpa. A primeira é a orientação da responsabilidade para o outro: é a ética confucionista, cujo referente é a comunidade mais que o indivíduo. A ética da culpa, individual, é a ética cristã. Esta, encontrando o mundo grego, criou uma exceção, pois a escrita grega, ao contrário da hebraica, que é uma escrita compartilhada, favoreceu a apropriação em nível pessoal da linguagem. O cristianismo mudou o senso de responsabilidade para si mesmo, a escrita e a leitura pessoal em silêncio criaram o indivíduo. Hoje com a educação fraca perdemos o hábito de ler no papel, interagimos por meio de telas, perdemos o controle do conteúdo pessoal. Somos constantemente monitorados e a privacidade é um dom de leitura e cultura. Hoje, porém, tudo é levado para o exterior: nossa memória está no celular. Saímos do binômio vergonha e culpa: temos ansiedade. Uma ansiedade gigantesca. O fenômeno no vax é uma revolta instintiva contra a ansiedade.

Como a ansiedade e o algoritmo se encontram?

Nesse contexto de transição, há figuras como Orbán, Trump, Johnson e os outros populistas que aproveitam da eficácia social de declarações desprovidas de referenciais: e a perda do referencial faz parte do caos. Eles dizem o que as pessoas querem ouvir. O algoritmo identifica em quais câmaras de eco disseminar. Em sua "câmara de eco" você decidiu, emocionalmente e intelectualmente, qual é a verdade e só recebe o que confirma o que você já pensa. Todos nós temos uma 'echo chamber', devemos estar cientes disso: mas podemos pelo menos ampliá-la. O papel do jornalista e da palavra pública é cada vez mais importante para resistir a essa erosão. O mundo hoje é muito mais misterioso, a nossa realidade mais frágil e incerta. Mas também mais articulada. Uma guerra começa quando a estrutura do mundo se simplifica. Se permanecer complexo, resiste mais.

Com Ferrucio Pinotti

O MOVIMENTO DOS FOCOLARES A NU

Quando “A Armada do Papa” (Ed. Transworld, 1995; em português publicado por Ed. Record, 2002) foi publicado, era o primeiro livro a questionar a natureza sectária dos novos movimentos eclesiais, como Focolares, Comunhão e Libertação e o Caminho Neocatecumenal. O livro era baseado, em partes, nos meus nove anos como membro e uma liderança dos Focolares. Agora, Ferruccio Pinotti, jornalista investigativo italiano, publicou um novo livro chamado “La Setta Divina” (Ed. Piemme). Este é o primeiro livro a lidar exclusivamente com os Movimentos dos Focolares e, com total abertura, contribuí com meu testemunho pessoal para os esforços do autor. Pinotti concedeu esta entrevista sobre seu novo livro (atualmente disponível apenas em italiano). A entrevista é conduzida por Gordon Urqhart, publicada por La Croix International. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo /IHU

A reação oficial ao “La Setta Divina” tem sido mais silenciosa e apologética. Mas, embora o Movimento dos Focolares agora admita que foi responsável por abuso de poder, com o que o Papa Francisco os acusou diretamente, eles falam sobre o zelo dos primeiros dias e minimalizam os problemas como se fosse comportamento de poucos. A sua pesquisa confirma essa posição?

Não me parece correta esta visão dos problemas típicos dos Focolarinos, de afirmar que as distorções e os abusos foram apenas fruto do ‘período heroico’ e do início do movimento; parece reducionista e manipulador. Os problemas sempre existiram e ainda existem porque são estruturais e se baseiam em um tipo de ‘teologia’ e um tipo de ‘carisma’ que apresenta grandes problemas tanto no nível religioso como no existencial.

O Papa Francisco disse ao movimento Comunhão e Libertação: “O carisma não é o centro: só existe um centro e é Jesus, Jesus Cristo. Quando coloquei o meu método espiritual no centro... perdi o meu caminho ... Todos os os carismas na Igreja devem ser ‘descentralizados’” (7 de março de 2015). Mas os Focolarinos insistem no “carisma de Chiara” como um mantra. Quais são os problemas com essa atitude?

O Papa Francisco pediu, com razão, ao Comunhão e Libertação (CL) uma mudança profunda e até a renúncia de seu presidente, Pe. Julian Carron. Ele também decretou recentemente uma visita apostólica no caso da rama do CL, Memores Domini. Neste momento, o CL está em crise devido à impossibilidade de eleger um sucessor para a Carron e aos problemas de viabilidade dos seus estatutos. O sinal de Francisco é claro: estes movimentos como CL, os Legionários de Cristo, Opus Dei, Renovação Carismática, o Caminho Neocatecumenal e os Focolares já não podem continuar a explorar os seus carismas particulares para fazer o que querem, para tratar as pessoas como eles acham adequado se tornarem igrejas de facto dentro da Igreja, serem grupos leigos carregados de dinheiro, mas sem prestar contas a ninguém. A advertência do Papa sobre Comunhão e Libertação é certamente válida também para os Focolarinos, que, no entanto, tiveram a sorte de renovar sua liderança em janeiro deste ano, o que lhes dá uma pequena vantagem. No entanto, esse movimento está sendo observado pelo Papa e pelo Dicastério dos Leigos.

Quando eu era membro dos Focolares, havia muitos escritos inéditos da fundadora, Chiara Lubich, que nos disseram para mantermos em segredo porque os estranhos e até os líderes da Igreja não iriam ‘entender’. Lendo Paraíso de 1949, o relato de Lubich sobre sua série de visões de dois meses logo após o início do movimento, e também conhecendo aspectos ocultos de sua história, qual a sua impressão sobre a pessoa de Chiara Lubich?

A minha impressão de Lubich – e digo com o maior respeito – é que ela era uma muito boa jovem católica que vivia em Trento e que durante os anos de guerra foi animada por um desejo sincero de fazer o bem e ajudar os pobres. Ela viveu sua fé de forma messiânica, convencida de que havia sido designada por Nossa Senhora com uma missão especial, a de criar um movimento de virgens totalmente dedicado à ideia de unidade. Em 1949 ela recebeu o que é tecnicamente conhecido como “revelações privadas”; isto é, visões, inspirações religiosas e místicas que foram então transcritas por ela e sobretudo pelas pessoas ao seu redor. Essas visões, o chamado Paraíso 49, tornaram-se uma teologia por direito próprio, embora nos anos 1950 o Santo Ofício (agora Congregação para a Doutrina da Fé) as considerasse heréticas, tanto que elas ficaram escondidos em um cofre de um banco por muito tempo, até que voltaram à superfície em 1974. Mas, desde então, permaneceram substancialmente desconhecidos do grande público e da maioria dos próprios Focolarinos, na sua forma mais completa, precisamente porque contém passagens muito extremas que podem perturbar muitas consciências. Digo isso com o maior respeito, tendo lido cuidadosamente todo o texto do Paraíso 49.

O que realmente significa o termo “unidade”, de que os Focolarinos se consideram mestres?

O termo “unidade” é definido pela fundadora em muitas passagens de Paraíso 49 como a necessidade de aqueles que a seguem “não serem nada”, abandonarem a própria identidade, renunciarem às suas próprias aspirações e sonhos que não os da fundadora do movimento, “cortarem suas cabeças”, “esvaziar-se”. Esta é basicamente a exigência para alcançar a chamada unidade: apagar a própria identidade, o próprio caráter, os seus impulsos mais profundos, as suas necessidades emocionais. Tudo isso é uma mensagem que não corresponde à mensagem original de Cristo nem à doutrina católica, que, ao ensinar o amor de Deus e a devoção ao ensinamento de Jesus Cristo, não exige de forma alguma o aniquilamento da personalidade ou a redução a um ser não pensante, não senciente, a um “nada”. O que emerge dos escritos da fundadora é, infelizmente, uma visão profundamente niilista, além de se caracterizar por formas de pelagianismo porque pressupõe um diálogo direto entre Chiara Lubich – que se auto-denominava “vigária de Maria” – e a Trindade.

A causa da canonização de Lubich está bastante avançada – já ultrapassou o nível diocesano e agora na Congregação para as Causas dos Santos do Vaticano. A santidade está nas virtudes heroicas. Você vê isso em Lubich?

A primeira fase da beatificação, a fase diocesana, já foi concluída. O resultado foi uma conclusão precipitada, pois a diocese encarregada disso é Frascati, onde está localizada a Rocca di Papa, sede do Movimento dos Focolares. A isso se segue a segunda fase, que se realiza no Vaticano, na Congregação para os Santos, que recentemente esteve em problemas pelo escândalo da renúncia do cardeal Becciu, o grande protetor dos Focolarinos. É necessário, portanto, ver como e quando se dará a segunda fase da beatificação da Serva de Deus Chiara Lubich e se prosseguirá a canonização. Pessoalmente, tenho minhas dúvidas, pois acho que será difícil encontrar milagres confiáveis. Mas a revelação de abusos e violações dos direitos humanos diretamente ligados ao pensamento da fundadora também desperta perplexidade.

Você concorda que o abuso que o movimento praticou é certamente igual em gravidade ao abuso sexual, deixando vidas arruinadas ou destruídas, e você poderia dar exemplos?

Absolutamente sim. Acredito que os casos de abuso sexual e pedofilia que surgiram e continuam surgindo no Movimento dos Focolares são tão graves quanto os casos de manipulação psicológica e humana. Talvez estes últimos sejam ainda mais graves porque prejudicam estruturalmente a existência do indivíduo e sua possibilidade de recuperação. No meu livro de investigação, escrito com a ajuda do jovem jornalista Stefano Mazzola, existem inúmeros testemunhos que referem situações semelhantes e idênticas em diferentes latitudes do globo, resultando em episódios de depressão gravíssima e até suicídio. Algumas das histórias comoveram-me profundamente, devo confessar.

Por outro lado, parece que os Focolares pedem piedade pelos problemas do passado e do presente. Eles se mostram humildes, mas os ex-membros são céticos quanto a essa reação. Eles acham que o movimento não é capaz de um diálogo real. Pedir desculpas certamente não é suficiente. Então, como o movimento pode reparar esse dano?

Acredito que as novas lideranças do movimento terão muita dificuldade em fazer mudanças justamente porque a resistência é principalmente interna, na base, enraizada nas pessoas que acreditam que o movimento é perfeito. Por meio das redes sociais, recebo muitas cartas de pessoas do movimento que me confessam que sentem que algo está errado, mas ao mesmo tempo têm pavor de ler meu livro por medo de descobrir verdades dolorosas. Em vez disso, acredito que as pessoas devem enfrentar a verdade mesmo ao custo do sofrimento. Posto isto, a reparação dos abusos e danos deve ser feita tanto coletiva como individualmente; ou seja, com uma autocrítica profunda e pública, que já começou em parte, mas também atendendo às vítimas, pedindo desculpas a elas e até oferecendo uma compensação financeira nos casos em que essas pessoas deram muitos anos de suas vidas ao movimento, ou mesmo muita renda pessoal ou patrimônio familiar, se esvaziando completamente de possibilidades futuras.

O Papa Francisco falou com bastante vigor aos líderes dos Focolares em fevereiro deste ano e, a seguir, no dia 16 de setembro, a todos os líderes do movimento. Naquela ocasião, ele até se referiu a um fundador de um movimento como “Hitler de hábito”. Você acha que ele e o cardeal Kevin Farrell, do Dicastério para os Leigos, estão perfeitamente cientes do que está em jogo no caso dos Focolares – ou também estão no escuro?

Creio, a julgar pelas palavras do Papa nestas duas ocasiões, que Francisco está bem ciente da complexidade dos problemas que afligem o Movimento dos Focolares. No entanto, também acredito que é muito difícil para ele e para o cardeal Farrell intervir diretamente, já que o Movimento conta com muito apoio entre os bispos (há mais de 180 bispos amigos do movimento), entre os cardeais e também nas estruturas internas da Cúria Romana. Em sua audiência no início de fevereiro de 2021, o pontífice até aceitou um considerável cheque para os pobres oferecido pelo Movimento e, embora o tenha advertido, até agora não tomou medidas mais decisivas. Evidentemente, ele tem confiança na nova presidente e em sua capacidade de mudar profundamente a estrutura e as práticas do Movimento. Pode-se dizer que os Focolarinos estão atualmente sob judice, sob estrita observação do Papa e do Dicastério dos Leigos, que já em 2020 proibia o movimento de continuar com a prática do chamado schemetti, interrogatórios diários escritos minuciosamente detalhados com que o movimento violou a privacidade de seus membros, monitorando todos os seus movimentos e censurando todos os aspectos de suas vidas.

O Presidente da Itália frequentemente elogiava Lubich – assim como Romano Prodi e centenas de políticos e funcionários de instituições internacionais. Quais são os aspectos desta investigação que eles devem estar cientes e como deveriam responder? Poderiam eles serem vistos, em certo sentido, como cúmplices que facilitaram os abusos no movimento?

O presidente Sergio Mattarella é um fiel apoiador do Movimento dos Focolares e, em particular, da figura do seu cofundador Igino Giordani, cuja biografia ele mesmo escreveu o prefácio e quem também era amigo de seu pai. O presidente Mattarella, ao defender a ideologia da unidade do movimento, indiretamente apoia um conjunto de práticas que provavelmente desconhece. Muitos políticos italianos como Rosy Bindi ou Romano Prodi – e muitos outros – são amigos do movimento, cujo poder e influência conhecem. Mas nenhum deles está disposto a ouvir a voz das vítimas ou a proteger seus motivos.

Você escreveu um livro sobre o “outro lado” de João Paulo II. O caso dos Focolares é mais um aspecto negativo do seu reinado, que agora se tornou um grande problema para toda a Igreja, que precisa ser resolvido. Por que o julgamento estava em falta?

Em meu livro “The Secret Wojtyla”, escrito em conjunto com o vaticanista Giacomo Galeazzi, analisei em profundidade o cerne do apoio de Wojtyla à galáxia de movimentos fundamentalistas e sectários. Certamente, é claro que esse apoio decorre do sofrimento que a Igreja experimentou sob o comunismo soviético e da busca de apoio de grupos com fortes valores conservadores que os capacitariam a lutar contra o comunismo na Europa Oriental. Todos esses movimentos são caracterizados por práticas questionáveis e recorrentes violações dos direitos humanos. Isso, sem dúvida, faz parte das características geopolíticas e pessoais do pontificado de um papa que desempenhou um papel fundamental na queda do Muro de Berlim e no colapso do Império Soviético, mas que carecia de discernimento das tendências sectárias na Igreja, que ele próprio fomentou. Este é o problema que o Papa Francisco está agora, gentilmente, mas decididamente, tentando resolver.

Edição 172, novembro 2021

Com Daniela Vallandro de Carvalho

O MASSACRE DE PORONGOS E O DESAFIO DE DESVELAR UMA HISTÓRIA QUE PROVOCA E INTERPELA

Para historiadora, o episódio “segue sendo polêmico e incomoda a muitos, pois ele traz à cena personagens que foram mitificadas” por um gauchismo edílico e embranquecido que os fez irreais. Chegamos a mais um 15 de novembro, dia da Proclamação da República, mais uma data controversa na História do Brasil. Desde seu primeiro acto, a república reatualiza questões ainda presentes desde a Independência do Brasil. Ou seja, enquanto uma elite política e econômica confabula transformações, o povo tem pouca participação nesses processos e segue vivendo a sempre presente desigualdade brasileira. Daniela Vallandro de Carvalho possui graduação em História pelo Centro Universitário Franciscano – Unifra e Mestrado em História pela Unisinos. É doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e atua como professora colaboradora da Universidade do Centro-Oeste do Paraná – Unicentro, Campus Guarapuava, no Paraná. Sua pesquisa de Doutorado deu origem à tese Nas fronteiras da Liberdade: experiências negras de recrutamento, guerra e escravidão.

O que foi o Massacre de Porongos? Como esse episódio vinha sendo tratado pela historiografia e como é ressignificado atualmente?

O “evento” Porongos se refere ao ocorrido na madrugada de 14 de novembro de 1844, nos anos finais da Guerra Civil Farroupilha, no Cerro de Porongos (hoje município de Pinheiro Machado-RS). Nesse local, batalhões de soldados negros, entre eles lanceiros e também parte da infantaria, foram mortos em um combate com as tropas imperiais, sob o comando do coronel Francisco Pedro de Abreu, comandante da 8ª Brigada do Exército. Esse episódio vem sendo discutido há pelo menos 150 anos e suscitando interpretações diversas. Os debates sobre a questão começam já alguns anos após a Guerra Civil Farroupilha, por volta de 1850, levantada por Domingos José de Almeida, um importante prócere Farroupilha. Do que temos conhecimento, ele parece ser o primeiro a questionar se [David] Canabarro [um dos generais líderes da Farroupilha] teria ou não traído os lanceiros. A partir de então, o fato gerou uma acalorada controvérsia entre os estudiosos que se debruçaram sobre o tema. Tal evento passa a receber diversas denominações, como batalha, surpresa, traição. E assim essa discussão permanece na historiografia sul-riograndense por muito tempo, girando em torno da famosa Carta de Porongos, documento este que passa a ser central nas vertentes interpretativas. Se a falsa batalha teria sido surpresa, se verdadeira, teria sido uma traição arquitetada entre David Canabarro – comandante das tropas Farroupilhas acampadas aquele dia no Cerro de Porongos - e o Barão de Caxias, Comandante em chefe do exército imperial. Todavia, nessas versões longevas de entendimento do evento Porongos, muito se especulou e pouco se comprovou, pois os argumentos não fugiam à discussão em torno do documento “Carta de Porongos” e da veracidade ou não deste. É só a partir dos anos 2000, aproximadamente, que se vê uma inserção de novos debates e novos historiadores apresentando outros argumentos, outras interpretações e novas fontes remetendo à Farroupilha de forma mais geral, e a questão de Porongos em particular. Aqui entendo ser importante destacar que houve trabalhos de pesquisa mais amplos sobre o século XIX no Rio Grande do Sul, produzidos em diversos programas de pós-graduação que, embora não tratassem especificamente da questão de Porongos, foram fundamentais em levantar questionamentos, apresentar novas fontes sobre o século XIX e/ou reinterpretar fontes já conhecidas para que se compusessem e se abrissem novas perguntas sobre a própria guerra civil e seus personagens, atuações, discursos, projetos. Não tenho dúvidas de que foi o crescimento, qualidade e seriedade da produção historiográfica recente sobre o século XIX no Rio Grande do Sul que deu lastro para que se pudesse fazer uma nova interpretação da questão de Porongos. Vou me abster de citá-los sob pena de esquecer algum, mas sem dúvida foi um esforço coletivo dos historiadores que se debruçaram e se debruçam a entender o século XIX no Estado, sob os mais variados enfoques (questão agrária, tráfico de escravos, fugas e aquilombamentos, fugas pela fronteira, relações fronteiriças, famílias escravas, trajetórias escravas, trabalho escravo, estruturas de posse, fortunas, reprodução de hierarquias sociais e grandes fortunas, relações com o mundo platino, entre outros). Também é importante destacar alguns trabalhos importantes anteriores a esse período recente, como dos historiadores Moacir Flores e do brasilianista Spencer Leitmman. Trabalhos estes que apontaram caminhos e questões através de indícios documentais para que eu pudesse formular uma abordagem mais consistente sobre a discussão. Me parece que falar em “Massacre” tem a ver diretamente como um trabalho realizado junto à 12ª Superintendência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, denominado Inventário Nacional de Referências Culturais, por uma equipe multidisciplinar – antropólogos, geógrafos, historiadores – que visava inventariar narrativas de moradores de diversas localidades negras do Estado e que tinham nessas narrativas alguns vínculos de memória com o evento de Porongos. Eu participei desse trabalho como pesquisadora, junto do meu colega historiador Vinicius Pereira de Oliveira, levantando documentação e repensando esse Rio Grande do Sul negro. Ao final desse inventário, optou-se por denomina-lo “Massacre de Porongos”, através da constatação de que a batalha não havia sido uma batalha. Há um problema no próprio termo utilizado. Batalha pressupõe um combate de guerra no qual dois lados se enfrentam em condições passíveis de desenvolver um combate. Não foi o que ocorreu em Porongos – já que os soldados haviam sido desarmados previamente – e por isso o termo massacre pareceu o mais apropriado. Não quero reduzir a discussão do Massacre de Porongos apenas à minha experiencia de pesquisadora, mas passamos a publicar alguns artigos e a recolocá-lo em discussão. Não fomos os primeiros a falar em Massacre, mas talvez a organizar argumentos e fontes documentais que pudessem dar uma nova dimensão interpretativa para a Farroupilha e para Porongos que não se limitasse apenas à “Carta de Porongos”, como até então acontecia. De lá para cá, tenho percebido um esforço de colegas historiadores em divulgar, levantar esse debate, ocupando espaços, inclusive junto a setores mais resistentes à dinâmica da pesquisa histórica acadêmica, e sobretudo em ensinar a história do Rio Grande do Sul, da Farroupilha e de Porongos de forma renovada, arejada através dessas novas perspectivas históricas. Há que se ressaltar também que os coletivos e os movimentos negros organizados também têm sido fundamentais nesse processo, uma vez que não só assumem o protagonismo que lhes cabe nas discussões como passam a se ver representados em uma história da qual sempre fizeram parte. Creio que dá para perceber que a questão é muito mais ampla que a discussão da veracidade ou não de um documento e que nos leva a questões muito mais relevantes para a população negra do Rio Grande do Sul, de forma que me é evidente a função social da história e da pesquisa histórica que realizamos para o presente.

Que relação podemos estabelecer entre o Massacre e os Lanceiros Negros?

Não dá para falar em Massacre sem remeter ao lanceiros negros. Produções artísticas, audiovisuais, cinematográficas têm alçado os lanceiros à memória quando se fala da Farroupilha. Todavia, esses soldados negros que combatiam a cavalo e com lanças compuserem um grupo específico em uma arma específica, a cavalaria. Esta é reservada historicamente a homens brancos e líderes militares destacados (ao menos dentro de um ethos guerreiro sulino/platino) e houve muitos outros soldados negros na Guerra, dos dois lados do conflito. A infantaria farroupilha esteve repleta desses homens. Inclusive, parte deles também estavam acampados no Cerro de Porongos na madrugada do Massacre e também foi morta. Historicamente, a Farroupilha teve a participação de homens negros de todas as formas, inclusive escravos não arregimentados/recrutados para as tropas, que desempenhavam tantas outras funções e papeis naquela sociedade. Esses soldados negros, em termos históricos, existiram de forma muito mais múltipla, em outras ocupações, em outras armas, dentro e fora dos exércitos, mas os lanceiros negros parecem tem se tornado um símbolo de todos eles, um misto de memória, história e resistência de luta que se traduz na figura desses homens que vestiam panos encarnados e combatiam a cavalo e de lança em punho. Entendo perfeitamente essa apropriação e ela é perfeitamente legítima. E, pensando bem, justamente por esses lanceiros terem “fraturado” esse ethos guerreiro sulino/platino, mesmo que apenas por algum tempo, parece-me muito significativa da luta negra no presente a escolha e o reforço de memória feito em torno dos lanceiros. As disputas estão postas e são reatualizadas no presente. Que combatamos o bom combate.

Como podemos compreender a trama política da época que levou ao Massacre?

Pensemos no problema de recrutar escravos em um universo no qual escravo não podia ser recrutado por não ser considerado “cidadão”, mas que de fato era alistado largamente por toda Cuenca del Plata muito antes da Guerra Civil Farroupilha. Levemos ainda em conta as experiências e habilidades desses escravos cavalarianos dentro do seu processo de especialização escrava, pensado sob a ótica da problemática que se tornou as promessas de liberdade a esses homens – que abriria terríveis precedentes em uma sociedade que ainda não questionava as estruturas escravistas e tinha sua mão de obra largamente assentada no trabalho escravo – e que, além das promessas de liberdade, havia a promessa de incorporar esses negros como soldados do exército imperial ao findar da guerra (um dos pontos do tratado que pôs fim à guerra). Tudo isso geraria um fato no mínimo inusitado ao Estado imperial brasileiro e ao exército imperial, pois poderia tornar livres e tornar soldados imperiais esses homens que por dez anos haviam pegado em armas contra o império. Assim, se dimensionarmos todas essas questões históricas da trama política do contexto em que esse Massacre acontece, ele se torna muito verossímil. Isso normalmente é negligenciado quando se fazem análises sobre Porongos e sobre o Massacre. Nesse contexto e sob estes aspectos, é muito plausível o acordo das lideranças interessadas no findar da guerra e a matança de uma quantidade significativa de homens negros, que foram escravos mas viviam experienciando certa liberdade e que poderiam criar problemas futuros insolúveis, ainda que a solução tomada – o massacre de Porongos – não tenha sanado completamente esses problema.

E por que esse “problema” não foi sanado?

Porque muitos outros escravos foram soldados e os que sobreviveram questionaram esses acordo, reivindicaram seus direitos tão anunciados ao longo da guerra. Imperiais e Farroupilhas fizeram inúmeros chamamentos para que esses homens viessem se tornar seus soldados. E eles foram. O problema estava posto ao findar da guerra. Houve de fato, uma disputa de ambos os grupos por essa força, por esses soldados, e os escravos eram sabedores disso e tentaram tirar proveito dessas situações. Estas se expressam em alguns casos que analisei na tese em que foi possível perceber, no pós-guerra, reivindicações não só de liberdade, mas também pela incorporação deles ao exército imperial na condição de soldado.

Por que há vertentes historiográficas que falam em traição de David Canabarro?

Como disse anteriormente, os debates sobre a questão começam já alguns anos após a Guerra Civil Farroupilha, nos idos de 1850, levantada por Domingos José de Almeida. É importante demarcar que a guerra acaba, mas as disputas políticas entre as elites rio-grandenses não cessaram, sobretudo porque os encaminhamentos do acordo que põe fim à Guerra estabelecem indenizações, restabelecem prêmios como cargos, títulos e posições no exército e guarda nacional no pós-guerra. E inclusive para alguns homens que haviam lutado em posições de liderança entre os Farroupilhas. Entender essas disputas ajuda a dimensionar o microcosmos político da província recém pacificada, momento no qual as discussões e divisões políticas serviam de combustível para a ainda viva presença da participação de muitos de ambos os lados em disputa naqueles anos. Outro elemento a considerar é que nunca houve consenso entre os Farroupilhas, e nos anos finais eram visíveis as divisões dentre estes, conhecidos por grupo da maioria e grupo da minoria. Domingos José de Almeida e Canabarro estavam na mesma guerra, mas representavam essa divisão de forma bem nítida entres os Farroupilhas. A vertente de ataque a Canabarro como traidor começa a se desenhar ainda por homens que viveram a guerra. Os argumentos da traição são organizados posteriormente por um grupo de estudiosos. Entre eles Alfredo Varela, que defende a tese de que o general farroupilha David Canabarro teria, propositadamente, desarmado e separado os lanceiros do restante das tropas acampadas nas imediações do Cerro de Porongos para que fossem aniquilados pelo exército imperial sem oferecer resistência. Ele desejaria, assim, livrar-se deles para facilitar a assinatura do tratado de paz que vinha sendo negociado, já que o Império do Brasil mostrava-se contrário à ideia de premiar com liberdade os escravos rebeldes. Dar-lhes a liberdade era algo não cogitado pelas elites. Isso porque se temia que um grande contingente de negros livres pudesse não só pôr em risco a estrutura social na qual estava assentada a sociedade escravocrata como também possibilitar que estes homens com larga experiência militar e politizados pudessem incitar outros escravos a lutar pela liberdade. Por outro lado, não lhes dar a liberdade também poderia levar os escravos a incitar insurreições, bem como promover fugas em massa para o Uruguai, onde a escravidão havia sido recentemente abolida. Relatos de pessoas que estiveram presentes na batalha informam ainda que o general farroupilha teria sido avisado da aproximação das tropas inimigas e não tomou providências. Por este enfoque interpretativo, o episódio foi considerado uma traição de Canabarro aos soldados negros a ele subordinados.

Por que o chamado gauchismo parece apagar a memória de Porongos? No mesmo sentido, podemos falar em um embraquecimento dos chamados "heróis farroupilhas"?

Já disse em outros momentos que o gauchismo está ancorado numa invenção de tradição, na acepção que o grande historiador inglês Eric Hobsbawm nos ensinou. E esse gauchismo está formatado através do Movimento Tradicionalista Gaúcho – MTG, que o criou, pautou, organizou e institucionalizou. E essa organização é a partir de uma concepção fixa, cristalizada de história, diferente do que e de como concebemos nas pesquisas históricas acadêmicas hoje. O MTG tem uma relação problemática com o episódio, basicamente porque há nele, institucionalmente, uma postura cristalizada sobre Porongos. Há fundamentalmente no seio do MTG uma concepção equivocada tanto de história quanto de cultura gaúcha. Todas suas posições, no meu entendimento como historiadora, partem dessas diferenças entre o que o MTG tem pensado como história do Rio Grande do Sul e o que os historiadores acadêmicos entendem sobre a história do Rio Grande do Sul. Evidentemente que somos mais habilitados a pensá-la do que um movimento que a reivindica como seu dono e que dita seus parâmetros. Todo movimento de conformação identitária e de coletividades parte da mesma lógica: a de inventar tradições de uma história e de mitos para lhes conferir unicidade, liga, dar sentido a seus mundos. Não estou querendo dizer que há necessidade de consenso, mas são posturas diametralmente opostas, por exemplo, quando o MTG entende a história como algo a ser recuperado do passado, algo que foi e que está lá, guardado num tempo longínquo e que não pode ser alterado. A história nem sempre foi e será da mesma forma, ela é alterada a todo momento, sendo reformulada, reescrita, reinterpretada, revisitada. Da mesma forma a cultura gaúcha. Por isso falei em cristalização de Porongos. E há outra questão que está ligada a essa forma de ver a história e a cultura gaúcha que é a mitificação da guerra, de seus personagens. Estes, vistos muito mais do que personagens históricos, verossímeis e plausíveis historicamente, mas personagens que transpuseram a barreira da história para dar forma à identidade regional, inventar quem fomos para dizer quem somos. A Guerra Civil Farroupilha é um mito fundador da identidade gaúcha, não tenhamos dúvida disso, mas todos hão de convir que temos uma longa história antes dessa guerra, como também posterior a ela. Porém, isso não importa quando se trata de elencar no passado fatos, eventos, personagens e dar a eles um sentido que é conferido do presente. No caso, no século XX, nos idos dos anos 1940, quando o MTG foi criado. Ao macular homens de carne e osso, o MTG retira-lhes humanidade e os alça a condições de heróis. E heróis não são questionáveis. E, por isso, o Massacre de Porongos, como tem sido visto por uma parcela importante de historiadores, ganha tanto peso na discussão. Canabarro e [o Duque de] Caxias, só para pegarmos dois envolvidos diretamente no evento, não podem ser entendidos ou aceitos como traidores, por que seria o mesmo que dizermos que os gaúchos todos são traidores, são portadores de um caráter duvidoso. Mas os homens de carne e osso o são, todos eles, passíveis de escolhas, erros, acertos, acordos. Quero deixar claro que acho legítima essa forma de ver o mundo, como essa forma de história e cultura, mas não me impede de entendê-la e analisá-la dentro de discussões maiores, como numa chave de entendimento de identidades construídas e invenções de tradições. E sim, essa história apresentada pelo gauchismo institucionalizado tem cor, e ela é branca. Ao elencarmos e selecionarmos o que está dentro, dizemos também sobre o que queremos deixar de fora. E a identidade sulina é construída a partir desses parâmetros, tornando a população negra gaúcha excluída dessa identidade. A disputa é permanente.

Qual o papel dos lanceiros negros na luta pelos ditos valores liberais, cultuados até hoje, quando se fala na “Revolução Farroupilha”?

Quando falamos de ideias e valores de outro tempo, precisamos entender como eles eram entendidos por aqueles homens do século XIX. Mas isso só não basta, pois precisamos pensar quem os formulou, quem os emitiu, quem os recebeu e como foi recebido. E tudo isso é atravessado pela conjuntura específica de uma província escravista (como todas as outras do Brasil Imperial) e, no caso, em uma guerra civil levada a cabo pelas elites sulinas. Digo isso para tentar esclarecer que as ideias liberais apregoadas pelas elites farroupilhas tinham um significado para elas, que já a entendiam diferente das ideias liberais europeias. Ou seja, nós filtramos esses ideais, que nunca são puros (nem mesmo quando são formulados na teoria), estão postos à luz da nossa realidade, experiência e lugar social. Esses valores e ideais liberais que fizeram com que as elites farroupilhas amparassem seus discursos em prol de uma guerra civil não eram recebidos da mesma forma pelos escravos, pelos soldados, pelos homens livres pobres, pelos libertos. O que percebo na tese, quando analiso os discursos, é que as elites farroupilhas usam dos ideais de liberdade – que para eles significava muitas vezes liberdade de negociações, envolvendo questões econômicas e políticas, como autonomia – num misto de republicanismo e federalismo para atingir os escravos chamados à guerra. As elites sabiam que esses discursos eram potentes e poderiam ser muito difusos, a ponto dos escravos “comprarem esses chamamentos”. Isso porque em nenhum momento esses discursos de liberdade eram claros o suficiente no sentido de pregar, por exemplo, um liberalismo pleno que tivesse sua base no fim da escravidão e na mão de obra livre. Entender o Brasil nunca foi fácil, pois esse liberalismo “a la brasileira” combinava escravidão com questões econômicas liberais de uma forma muito peculiar, tanto que foi possível a coexistência desse sistema escravocrata até o final do século XIX, quando nenhum país mais no mundo o defendia. Aliás, essas elites brasileiras defendiam arduamente a propriedade privada, mas se agarravam ao Estado imperial para benesses e ressarcimentos a todo momento. Um traço infelizmente ainda presente fortemente nessas “elites do atraso”, como bem as chamou Jessé de Souza. O que as elites sulinas talvez não tivessem em mente – não de uma forma tão racional e formulada – era que esses escravos que se tornariam soldados fariam um bom uso, digamos assim, desses mesmos discursos por elas emitidos. Ou seja, os escravos que se tornaram soldados estavam vivendo nesse universo de ideias circulantes, difusas e proferidas por todos os lados e em meio a uma guerra. Logo, perceberam que esse discurso não lhes pertencia e souberam abrir espaços, criar caminhos, alternativas para suas vidas usando dessas mesmas palavras proferidas, mas para eles ressignificadas. Isto significa dizer que esses homens escravos/soldados/libertos negociaram, reivindicaram, negaram, escolheram (dentro do possível), mudaram de lado nos combates e nas tropas (alguns várias vezes) a partir das opções que tinham e dos entendimentos que faziam dessas ideias de liberdade que estavam sendo proferidas. Usaram do manancial discursivo existente para si pois se politizaram com as experiências que viviam, com as relações que teciam, com as coisas que viam e ouviam. Há ao menos duas situações pontuais que analiso e que me dizem isso – quando um escravo, soldado, filho de um líder farrapo e que não tinha boas relações com seu pai e comandante passa armado para o lado imperial justamente para ficar sob o comando do maior inimigo de seu pai. Os personagens: Antônio de Souza Netto, líder farroupilha, Moisés de Souza Netto, escravo e soldado, e Francisco Pedro de Abreu, líder legalista. Moisés passa, portanto, em um combate de um lado para o outro, e fica fiel ao lado de Francisco Pedro de Abreu, não só até a guerra acabar, mas por mais 11 anos. Antônio de Souza Netto e Francisco Pedro de Abreu eram inimigos declarados. Além disso, Moisés de Souza Netto, mal acabada a guerra, manda um pedido por escrito direto ao Barão de Caxias, solicitando sua carta de liberdade já que havia lutado em “nome do trono e do Imperador”. Moisés hábil e inteligentemente soube pesar para que lado a guerra pendia – ou fez uma leitura da conjuntura e de suas possibilidades naquele mundo –, e apostou tudo lutando os anos finais dela ao lado dos legalistas. Ao requerer a sua carta de liberdade, usou do discurso liberal apregoado pelas hostes em disputa para pedir aquilo que para ele significava liberdade: a carta de alforria por participação armada na guerra. Além disso, não deixou de fora de seu pedido ao Barão de Caxias a má relação com seu pai e reforçou sua lealdade a Francisco Pedro de Abreu, o homem para o qual esteve sob seu mando dos anos finais da guerra até o final de sua vida, em 1856, quando morre sendo capataz e administrador de uma das fazendas de Moringue (apelido pelo qual Chico Pedro era amplamente conhecido). Nessas breves palavras e resumo da trajetória de um dos soldados/escravos na Farroupilha, vemos muitos dos elementos de politização aos quais me referi acima. É dessa forma que entendo o uso desses discursos levados a cabo a partir de 1835.

Alguns autores defendem que não houve “revolução”. Porém, a guerra pela libertação dos escravos, se efetivada, não traria transformações estruturais para o Brasil da época?

Não houve revolução, tampouco houve alguma defesa ampla e organizada pelo fim da escravidão. Falar em liberdade de forma difusa, como me referi acima, não faz desse discurso uma defesa pelo fim da escravidão e sim uma defesa necessária de conceder liberdade mediante participação armada. São duas coisas diferentes, embora à primeira vista possa não parecer. Para o contexto de guerra, de falta de soldados, de deserção, foi o caminho encontrado pelas elites em disputa. Volto a dizer: foi necessário, ainda que perigoso para as elites em guerra, mas que arriscaram e levaram a cabo tal iniciativa. Vale lembrar que armar escravos e prometer liberdade mediante participação em guerras não foi uma invenção da Farroupilha, tais situações já aconteciam pelas fronteiras platinas em disputa há um bom tempo. As pesquisas sobre as guerras de independência nos países fronteiriços já têm demostrado claramente essa opção presente nos exércitos.


Não houve Revolução porque não houve nenhuma proposta, nem na teoria, nem na prática, que ousasse alguma mudança estrutural significativa para aquela sociedade agrária e escravista. Vale lembrar também que essas elites eram todas escravocratas, com planteis significativos de escravos, e que estamos falando de um período em que o tráfico de escravos estava em seu auge. Ninguém de fato queria abrir mão desse comercio altamente lucrativo. A abolição em 1888, quando chegou, não trouxe mudanças significativas na estrutura do país, porque só a liberdade não basta, não bastou, mas bastava. Isso não significa dizer que a abolição não teve impacto na vida da população que a vivenciou, pelo contrário. Temos um mundo de pesquisas importantes feitas e sendo feitas buscando entender esse momento e como ele se desenhou para a vida de milhões de afrodescendentes. Mas já é possível se observar que a abolição precisa vir acompanhada de políticas públicas amplas, que de fato fizessem com que essas populações negras e afrodescendentes tivessem opções de vida e se constituíssem como cidadãos. E ela não veio dessa forma. “Liberdade não é um pedaço de pão”, como disse Cervantes certa vez.

O que Porongos revela acerca das relações com escravizados no Rio Grande do Sul? Que reflexões dessas relações podemos apreender em nosso tempo?

A primeira coisa a se dizer sobre isso é que quem não pensa a história nessa relação passado/presente ou presente/passado não a está entendendo. A pergunta é muito pertinente e entendo que Porongos lança luz - aliás, um feixe de luzes - sobre a relação das elites não só sulinas, mas brasileiras como um todo com o sistema escravista e como lidavam com essas pessoas escravizadas. Essas luzes precisam iluminar mais do que o passado para que a reflexão histórica ganhe sentido. E elas apontam para o presente incessantemente. Acho que talvez seja principal perceber que mudamos muito pouco enquanto sociedade, enquanto humanidade, e que permanecemos construindo formas de exclusão sob outras roupagens que guardam relação direta com nossa história. Isso embora muitos não a enxerguem ou não queiram enxergar. A historiadora Lilia Schwarcz, na obra “Sobre o autoritarismo brasileiro” (São Paulo: Companhia das Letras, 2019), fala do paradoxo da liberdade uma vez que a abolição trouxe consigo o racismo. O racismo é uma forma perversa que construímos para perpetuar privilégios os mais variados, manter hierarquias, valorar vidas. É por aí que as reflexões precisam caminhar.

Em um de seus textos, a senhora diz que o Massacre de Porongos ainda é um fato histórico polêmico porque ele questiona. Que questões ele levanta e por que há essas resistências?

O historiador deve ser inquieto, e sendo inquieto somos incômodos, importunos. Sim, o Massacre de Porongos segue sendo polêmico e incomoda a muitos, pois ele traz à cena personagens que foram mitificadas e, como tal, são "imexíveis". Mas esses personagens são tão intocáveis quanto irreais. A questão é sensível, mas precisa ser enfrentada, pois isso faz parte do nosso trabalho de pesquisa. Heróis não existem, são criações humanas para representar determinados valores, determinadas identidades e tradições. Homens de carne e osso existiram em seus tempos, e buscamos entendê-los com todas suas imperfeiçoes e imprecisões, dentro do limite que as fontes nos permitem e as interpretações nos possibilitam. E em um Estado onde estas questões perpassam a academia, e dominam – inclusive de forma mercadológica e publicitária – uma determinada identidade consolidada, é entendível que seja mesmo polêmico e desgoste a muitos. A Farroupilha da forma inventada e com seus heróis brancos e estancieiros é muito cômoda porque “vende bem” e porque, sendo a história uma constante reapropriação de sentidos no presente, apresenta uma sociedade inalterada, que foi assim, que é assim e assim deve permanecer. Por trás de representações e identidades assim construídas temos a manutenção de uma estrutura social que lá no passado não se queria alterar - e tampouco se quer no presente. Mas, seguimos fazendo nosso trabalho de forma insistente e fiel. E seguimos cada vez mais ensinando uma história mais múltipla, que respeite e reconheça as diferenças e forneça uma história em que os negros e seus descendentes se reconheçam e se orgulhem de suas lutas.

Em sua pesquisa de doutorado, a senhora trabalhou o recrutamento de negros em confrontos. Da Farroupilha à Guerra do Paraguai, como compreender o papel desses escravizados nessas disputas? Em que medida essas experiências de recrutamentos reforçam as lógicas escravocratas?

Ao trabalhar com recrutamento de escravos, me insiro num conjunto de trabalhos que têm pensado e colocado os personagens negros como protagonistas nesses processos. Embora muitas dessas guerras estudadas não tenham sido suas enquanto iniciativas coletivas, foram um pouco suas à medida que foram apropriadas por esses sujeitos. Numa dimensão ampla, estou tratando de participações populares e como essas participações foram permeadas de discussões politizadas sob diferentes aspectos. Desde as guerras de Independência, pelo menos, temos já um conjunto de trabalhos que tem tentado (e conseguido) demostrar como essas situações de recrutamento mexeram com assuntos delicados como a condição dos cativos e ampliaram suas expectativas em relação a suas condições, ainda que temporárias. Defendo na minha tese que essas experiências, ainda que individuais muitas vezes, tenham, a longo prazo, auxiliado a minar a estrutura escravista. Isso na medida em que, por exemplo, a situação específica posta ao final da guerra, para o Estado Imperial brasileiro, de incorporar ou não aqueles soldados negros rebeldes como parte do exército (como parte das promessas do acordo de paz), tenha colocado em pauta novas questões sobre propriedade, sobre direitos, sobre cidadania – tanto para as autoridades imperiais quanto para os próprios escravos/soldados - ainda na primeira metade do século XIX. Um abaixo assinado produzido por um africano lanceiro, que foi remetido à Corte Imperial ao final da guerra, nos diz sobre essas questões. Salvador Braga escreveu direto ao Imperador questionando o trato que ele e os seus malungos estavam tendo no pós-guerra e reivindicando uma definição para suas vidas mediante as promessas que lhes haviam sido feitas durante a Guerra. Portanto, não acredito que os recrutamentos tenham reforçado a lógica escravista, pelo contrário, eles causaram pequenas fraturas no sistema que, a longo prazo, contribuiu para a derrocada do mesmo. A Guerra do Paraguai tem sido – no conjunto de estudos sobre recrutamento – a experiência mais bem estudada sobre tais questões. Há muitos trabalhos sobre ela. Mas ao que parece, mediante importantes estudos sobre guerras de Independência tanto nos estados platinos quanto no Brasil, os recrutamentos começaram a afrouxar e questionar o Estado Imperial Brasileiro e seus laços enredados na estrutura escravista bem antes, ainda na primeira metade do século XIX.

Poucos dias depois da memória que se faz de Porongos, celebra-se no Brasil o Dia da Consciência Negra. O que representam essas duas datas e como a experiência de Porongos pode iluminar a memória das lutas de pretos e pretas em 20 de novembro de 2021?

São datas muitos próximas e acho bem interessante isso, pois a presença das datas tem ampliado as discussões em torno de debates, eventos que se misturam e se completam, guardadas as especificidades de cada uma. Mais que comemorar – e precisam e entendo que tenham que ser comemoradas, pois o 20 de novembro é uma conquista por demais importante para a comunidade negra brasileira – essa conquista um tanto recente (2003, lei 10.639), essas demarcações de espaço são fruto de lutas antigas por representatividade, por visibilidade, por lugares de fala da população negra.mNo entanto, conquistas precisam ser vigiadas e os debates em torno dessas discussões todos os anos no mês de novembro têm reafirmado essa conquista e ampliado o debate, as autoidentificações, o desenvolvimento de consciências éticas, reafirmado o protagonismo da população afrodescendente. Digo isso não só dessas populações sendo objeto de estudo, mas sendo elas mesmas condutoras de debates, muitos historiadores negros tomando seus lugares nessas falas, representantes de movimentos negros, de coletivos, isso é tão importante quanto significativo de que esses espaços precisam ser abertos, mantidos e garantidos constantemente. Nada vem de graça. A luta está no passado e está no presente. Apesar da lei 10.639 garantir a data de 20 de novembro como inserida no calendário escolar, alguns lugares dão um jeito de facultarem a mesma, ou não promovendo feriados ou minimizando sua importância. Por isso falo em se manter vigilantes, em aumentar os debates, de forma que não seja mais possível inviabilizar o que historicamente já foi por tanto tempo apagado. O barulho dos debates precisa aumentar. Vamos caminhando nesse sentido e precisamos ocupar esses espaços sempre e cada vez mais. O 14 de novembro como data do Massacre também tem atuado nesse sentido e se transformado de forma potente em dia de luta. É claro que o trabalho de ensinar e debater precisa ser feito o ano todo nas escolas e nos espaços de educação não-formais, mas as datas marcam duas lutas históricas (mortes de Zumbi e os soldados negros mortos no massacre de Porongos). Que aliás, além de luta, tem muito simbolismo presente, onde das mortes pode-se encontrar forças para continuar vivendo, lutando e ocupando espaços que lhes cabem.

De que forma a comunidade negra gaúcha se relaciona com a memória de Porongos?

É uma pergunta bastante complexa. Quem sabe futuras pesquisas possam nos responder melhor essa questão. E, em respeito às múltiplas interpretações e apropriações que a comunidade negra gaúcha possa fazer dela, não posso falar como comunidade, pois não sou negra – ainda que me some a essa luta – e estou fora do Rio Grande do Sul já há alguns anos. Mas tenho observado como pesquisadora, como professora que sou, como alguém que dedicou bons anos da vida a pensar essas questões e também embasada na pesquisa que participei em 2006/2007 junto ao IPHAN (portanto já tem alguns anos) que muitas comunidades negras – algumas próximas ao Cerro de Porongos, outras não - tinham memórias vinculadas ou sabiam ou ouviram falar do Massacre e buscavam tanto entender mais como se entender nessa história. Por outro lado, tenho visto também eventos sendo promovidos de forma que as comunidades negras parecem estar sendo alcançadas pela discussão, quando não são elas mesmas as proponentes de debates sobre o Massacre. Também tenho percebido o esforço de colegas historiadores que vêm somando forças nessas discussões em torno dos significados que esse evento do Massacre teve no passado, além do que pode ter no presente e no futuro das populações afrodescendentes gaúchas. Não se nasce com consciência de classe ou étnica, ela é apreendida. Mas ao que me parece, há um crescimento muito importante do conhecimento da história de Porongos e do massacre por parte da população negra, que tem tomado para si essa história como símbolo de luta e resistência no presente. Acho que essa é a verdadeira herança dos lanceiros e de Porongos.

Quais os desafios ainda postos para o resgate da história das populações negras no Rio Grande do Sul?

Os desafios são muitos, mas me parece que talvez o principal seja ampliarmos o ensino de História do Rio Grande do Sul incorporando a grande quantidade de pesquisas sobre as populações negras que vem sendo produzida de uns vinte anos para cá. Apresentar um Rio Grande do Sul negro, seja no passado, seja no presente e que muitos ainda desconhecem. E como parte desse desafio, criar formas didáticas, pedagógicas para isso. Recentemente tomei conhecimento de um trabalho produzido no ProfHistória de uma dissertação de mestrado que desenvolveu/confeccionou um jogo pedagógico para o uso de escola de crianças surdas sobre a história dos lanceiros negros. Eu fiquei imensamente feliz em saber que minha pesquisa foi umas das bases para tal produção pedagógica e são questões como essa que dão sentido às pesquisas que fazemos academicamente. E isso para mim é mais que uma satisfação pessoal, é enxergar na prática o alcance do que fazemos através da relação ensino/pesquisa. Que, a longo prazo, transforma o ensino e transforma as pessoas alcançadas por ele.

Com José Manuel de Cózar

TRANSUMANISMO E PÓS-HUMANISMO NO ANTROPOCENO

É doutor em Filosofia pela Universidade de Valencia e professor de Lógica e Filosofia da Ciência na Universidade de La Laguna. Tem–se centrado no estudo das repercussões económicas, políticas, éticas, sociais e ambientais das novas tecnologias. Ao longo da entrevista, o pesquisador vai complexificando e abordando de forma aprofundada as definições. “Os pós-humanistas não são deterministas tecnológicos, ao passo que os transumanistas tendem a ser deterministas tecnológicos. Embora valorizem a tecnologia, os pós-humanistas tendem a uma postura mais crítica. Também não são essencialistas, reconhecendo a condição humana como algo mutável, contingente e maleável”, acrescenta. Um desafio que se descortina no tempo presente sobre as formas como concebemos a noção de humanidade passa por duas dimensões. “O facto é que nós todos precisamos de dados científicos e histórias coerentes para que possamos nos unir contra essa ameaça, que seria todas as coisas que podem ir mal no antropoceno”, pondera. A entrevista é do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

Como podemos começar quando se trata de falar de antropoceno?

Bem, uma maneira de começar é apresentando dois personagens reais, que representam duas posições antagônicas sobre o ser humano e sobre a relação entre os seres humanos, a tecnologia e a natureza. Tratam-se de Zoltan Istvan, estadonunidense de origem húngara, e Patricia MacCormack, australiana e professora de filosofia na Inglaterra. Ambos estudaram filosofia, mas tem abordagens completamente distintas. Para dizer de uma forma radicalmente breve, Zoltan é transumanista e Patricia é pós-humanista. Vou abordar as particularidades de um e de outro no contexto do que chamamos antropoceno. Zoltan Istvan estudou filosofia e religião, foi um atleta de natação e de polo-aquático, trabalhou como documentarista da National Geographic. Ele afirma ter inventado o “surf de vulcão” (que consiste em deslizar do topo de um vulcão inativo sobre uma prancha) – inclusive houve recentemente uma erupção nas Ilhas Canárias que nos deixa muito preocupados com as vítimas humanas. Além disso ele é empresário, escritor e político. Tentou ingressar nesse campo concorrendo às prévia presidenciais, em 2020, nos Estados Unidos. Em seu programa continha o apoio integral às tecnologias, o que é bem típico dos transumanistas, como fundamental para sobrevivência de nossa espécie e para o futuro da humanidade. Defende ainda a confrontação com a China em que está havendo, cada vez mais, a discussão de um tratado muito polêmico, do ponto de vista da União Europeia, entre EUA, Reino Unido e Austrália para defender os interesses “ocidentais” no [Oceano] Pacífico. Politicamente, é uma figura que chamaríamos de direita não liberal, que soa estranho porque ao mesmo tempo defende uma renda básica universal. Isso porque a indústria automatizada e a inteligência artificial tende a acabar com os trabalhos e tornar os humanos obsoletos, de tal modo que será necessário repartir o dinheiro para que as pessoas possam viver sem trabalhar. Isso tudo está relatado em um livro de ficção intitulado, em espanhol, La apuesta transhumanista (Autopublicação, 2013). Patricia MacCormack faz uma filosofia que é uma mistura de muitas coisas, dentre elas a Teoria Queer – que se dedica aos debates sobre gênero, identidades e sexualidade humana –, veganismo e existencialismo, o que, também, soa estranho porque, afinal de contas, o que significa existencialismo? Bem o existencialismo que ela trabalha está expresso em obras como The ahuman manifesto (em tradução livre, O manifesto não-humano), no qual o subtítulo é: “ativismo para o fim do antropoceno”. Nós sabemos que o antropoceno ainda não está provado oficialmente e que há autores que estão falando do fim do antropoceno. Tentarei, ao longo de minha conferência, explicar o que significa tudo isso. Envolvendo o que diz respeito ao “extincionismo”, há questões bastante sensíveis, porque inclui o movimento de extinção humana voluntária, que propõe que os humanos se extingam, não por meio violentos, mas voluntariamente renunciando ter filhos. Isso eliminaria os problemas à nossa espécie, afinal deixaríamos de existir, e, também, para o planeta pois os problemas causados por nós não existiriam e a vida floresceria, os ciclos naturais voltariam a funcionar bem etc. Os seres humanos, usando uma metáfora bem atual, seriam uma “praga”, uma pandemia como esta do coronavírus, algo que precisa ser extinto. Tendo em vista que não se extinguirá o planeta, que nós mesmo tratemos de nos extinguir. Claro que esta é a proposta mais radical que se pode ter, mais radical ainda que o ecologismo radical.

Como o transumanismo se caracteriza?

Isso não é algo simples de se explicar. Ao longo da história, os seres humanos têm tentado melhorar suas condições físicas e mentais de modo que têm empregado técnicas de educação, de treinamentos físico e mental cada vez mais sofisticados, incluindo recursos médicos e todos os demais disponíveis em cada época. Tudo isso para lutar contra a natureza dos seres humanos. Em espanhol chamamos isso de “melhoramento humano”, traduzido do inglês “human enhancement”, tratando de toda a modificação dirigida a melhorar de forma permanente ou temporária o rendimento humano ou que seja submetido a intervenções científicas ou tecnológicas sobre o corpo. Na verdade trata-se de diferentes formas de intervenção, se alguém toma uma capsula ou comprimido, evidentemente, o efeito de melhoramento será temporário, contudo se submete a procedimentos em que são incorporados (aqui é importante considerar o ¬in-corporado) eles tendem a ser permanentes. É uma alteração corporal levada a cabo graças a um tipo de ciência ou tecnologia – ou uma combinação entre ambas –, dentre elas a inteligência artificial, a robótica, a biotecnologia, etc. Isso se dá de duas formas, seja como melhoramento genético ou como ciborgue, tentando unir partes artificiais com o corpo humano por meio de implantes. Isso já está acontecendo quando se leva em conta que há uma série de pessoas com implantes, mas não é, propriamente, deste tipo que estou me referindo, senão ao melhoramento de mais longo prazo e mais radical.

Qual é, então, o programa transumanista?

É um movimento filosófico, intelectual, cultural, social e, mais recentemente, estão tentando alçá-lo a uma condição política. É o que se busca com a melhora do ser humano como a principal preocupação da humanidade, senão a única, projetando-o numa esfera evolutiva ao ponto de superar as limitações de nossa espécie, mas também controlar e a acelerar as tendências evolutivas. Isso tudo produz uma fase de superação da espécie homo sapiens, tal como a conhecemos, passando a uma figura, um ser, que seria o pós-humano, na qual a fase intermediária seria a dos transumanos. Os transumanos não seriam os pós-humanos, pois seriam uma mescla, haja visto que os pós-humanos dariam um salto evolutivo. Para isso é necessária muita ciência e muita tecnologia. O que é importante ter em mente, para que não haja confusões, é uma distinção importante: todos os transumanistas defendem o melhoramento humano, mas nem todas as pessoas que defendem o melhoramento humano são, necessariamente, transumanistas. Há pessoas, como no meu caso, que são favoráveis ao melhoramento humano em geral, mas que não se consideram transumanistas, o que implica compromissos outros que ainda não me parecem claros. Algumas personalidades transumanistas são Max More e Natasha Vita-Morte, David Pearce, Nick Bostrom, Julian Savulescu, Ray Kurweil, mas claro, na internet se pode achar muito mais. A maioria são homens, laicos e ocidentais, dos quais muitos são empresários norte-americanos, do Vale do Silício, mas nem todos são assim. Há biohackers, que tentam um enfoque menos elitista.

Quais são as possíveis melhoras que se enquadram dentro da perspectiva do transumanismo?

Dentre as melhoras cognitivas estaria a inteligência, por exemplo, reforçando a memória. Há um conjunto de melhoramentos que são de coisas que não existem, mas que podem existir em um futuro na medida em que as tecnologias se desenvolvem. Outra possibilidade são melhorias que nos tornem mais atentos, aprimorando nosso discernimento, por meio de “drogas inteligentes”, e concentração, bem como a criatividade e a inventividade. Estas melhorias não são somente cognitivas, mas também afetivas. Em geral, justifica-se eticamente os melhoramentos para evitar ou diminuir o sofrimento humano. Para isso se poderia usar fármacos de todos os tipos, neuroestimulação, implantes neuronais etc. Além disso, se buscam melhorais morais, como nos casos para frear aquelas condutas que são consideradas imorais ou inapropriadas, mas também para fomentar um tipo de ética – muito problemática – que tenha fins consequencialistas ou utilitaristas ao invés de ontológicas. Melhoras físicas, como o aprimoramento para aumentar a força, a velocidade, mas também o acréscimo de capacidades que não existem no ser humano, como ver no escuro, assim como fazem os gatos. Melhoras estéticas, é claro que isso é uma coisa que muitas pessoas fazem sem ser transumanistas, mas neste caso com modificações diversas no corpo como componentes que podem interatuar por meio de ondas eletromagnéticas, seja para abrir ou fechar portas, por exemplo. A longevidade, evidentemente, é uma das coisas que mais preocupava os transumanistas e aí entram as vacinas que são usadas para prevenir doenças, como, por exemplo, o coronavírus, que também são uma forma de melhorar o corpo humano. Assim como intervenções de todo o tipo para evitar o envelhecimento do corpo e, consequentemente, para que a vida seja muito mais longa. É por isso que muitos transumanistas buscam a imortalidade, que está no fim último do transumanismo. Contudo, enquanto isso não é possível, a proposta é alongar a vida humana o máximo possível.

Quais são os possíveis efeitos negativos das tecnologias de melhoramento humano?

Há questões ligadas à saúde, claro, mas há outras que estão vinculadas ao aumento da desigualdade, com pessoas “melhoradas” e pessoas “não-melhoradas”. Isso provocaria todo o tipo de vícios, implicações econômicas e sociais, com pessoas que não quiseram se submeter aos procedimentos ou não tiveram recursos econômicos. Ao mesmo tempo que se aumenta a expectativa de vida, mais pessoas vão passar a viver no planeta e esta expectativa seguirá aumentando com efeitos na manutenção da estrutura econômica, entre muitas outras coisas, incluindo maus usos militares e terroristas ou até mesmo uma catástrofe que, agora, não somos capazes de prever. Há os riscos da biologia sintética, com o uso de vírus modificados, com nanopartículas, nanobots etc. Uma distinção importante está entre os transumanistas e os bioconservadores. Transumanistas são radicais e todos aqueles que não estão em sua linha de inflexão, de acordo com seu ideário, são considerados bioconservadores. Aqui é importante considerar que os bioconservadores podem ser de qualquer orientação política. Isto é interessante porque rompe um pouco com os esquemas políticos habituais, o que também ocorre com os transumanistas. O que tende a motivar os chamados bioconservadores é o receio aos maus efeitos das modificações e, também, a criação de uma espécie de gênero humano que ultrapasse a extensão do ser humano. Há, claro, as pessoas moderadas que são a favor dos melhoramentos mas com limitações, defendendo não uma aprovação irrestrira nem um rechaço completo do programa transumanista. Nesse sentido, a proposta é avaliar caso a caso do ponto de vista técnico, ético e econômico. Neste contexto, melhoramentos menos problemáticos são entendidos como aqueles, por exemplo, como um implante para reparar um osso, o que gera menos controvérsia em relação às modificações na genética humana.

O que caracteriza o pós-humanismo?

Em geral quando falamos do pós-humanismo estamos tratando do pós-humanismo cultural, que é uma visão, uma atitude, sobre o que é ser ser humano e como se relacionar com a tecnologia. Isso tem muitas variações, o que torna complicado de dizer o que é o pós-humanismo precisamente, mas posso, então, dizer o que não é. Os pós-humanistas não são deterministas tecnológicos, ao passo que os transumanistas tendem a ser deterministas tecnológicos. Embora valorizem a tecnologia, os pós-humanistas tendem a uma postura mais crítica. Também não são essencialistas, reconhecendo a condição humana como algo mutável, contingente e maleável. O pós-humanismo está contrário a todo o tipo de dualismo e oposições, o que é uma característica do humanismo: humano e não humano, sujeito e objeto, natural e artificial, tecnologia e natureza, mente e corpo. O pós-humanismo é um lugar de combinações, de hibridizações, de elementos heterogêneos, alguns humanos e outros tecnológicos que formam redes híbridas. Há alguns nomes importantes que são familiares a muita gente há muito anos como Bruno Latour, Cary Wolfe, Donna Haraway, Rosi Braidotti e Timothy Morton.

Quais são as diferenças fundamentais entre o transumanismo e o pós-humanismo?

Os transumanistas buscam o advento de uma nova espécie de homo sapiens, perfeita ou quase como deuses e pensam que podem alcançar esse objetivo por meio da tecnologia. A ideia é levar a cabo um problema que o humanismo clássico postulou, de dominar e emancipar-se da natureza, de modo que os transumanistas pretendem levar essa ideia à sua culminação, de modo que o ser humano domine por completo a natureza. É um enfoque muito antropocêntrico. Já os pós-humanistas são mais críticos, por diversos motivos, e tampouco são tão confiantes na tecnologia. A relação com o capitalismo é complexa, pois os transumanistas são, em muitos casos, notórios empresários, com muito dinheiro para investir em seus ideais; ao passo que os pós-humanistas são mais acadêmicos e pensam mais em termos de criatividade. A questão é que ao final estas coisas podem levar a problemas, como a autoexploração ou uma função abusiva da tecnologia, de modo que sem uma avaliação crítica das tecnologias se pode levar à implantação de um capitalismo irresponsável e uma tecnofilia. Alguns pós-humanistas são conscientes disso e tratam de tentar evitá-lo.

O que significa, atualmente, relacionar evolução tecnológica e autonomia humana?

Em primeiro lugar é necessário falar algumas coisas bastante evidentes, mas que convém retomá-las. O primeiro ponto é que as tecnologias tendem a avançar de maneiras insuspeitas e não previstas pelos seres humanos, de modo que nos parece que possui uma lógica própria, independente dos seres humanos. Há muitas figuras que ilustram essa ideia de tecnologia sem controle, como é o caso de Frankstein e muitos outros. Há ainda o problema do determinismo tecnológico que incide sobre a sociedade de maneira que criaria algo fora do controle do ser humano. O que eu digo, no entanto, com muitos outros autores, é que a tecnologia não é autônoma e muito menos determina a sociedade. O que há são combinações entre uns e outros elementos, o que torna difícil falar de forma radicalmente separada sobre tecnologia, ser humano e natureza, mas, sim, a partir de hibridizações e conexões entre diferentes elementos. A autonomia do ser humano é igualmente parcial, limitada, porque nós dependemos da natureza e da tecnologia. A questão passa então por pensar humanos e não humanos que possam colaborar entre si e não que sejam opostos. Esta á uma visão pós-humanista, que tenta frear o determinismo tecnológico. Se seguimos a forma como as tecnologias foram desenvolvidas e conformadas, vamos perceber que o que parece completamente novo vem de um desenvolvimento anterior, que se utiliza de ferramentas, utensílios, máquinas. Há sucessivos desenvolvimentos tecnológicos, mas também pessoas que tomam decisões sobre como desenvolvê-las e esse desenvolvimento inclui incorporar valores e outorga determinada margem de liberdade. É possível fazer uma tecnologia em que o ser humano não pode fazer nada senão apertar um botão, sem saber o que ocorre dentro, que é a chamada tecnologia da caixa preta; mas há outras tecnologias que nos permitem mais liberdade ou criatividade.

Como o senhor compreende o conceito de Antropoceno?

Essa é uma proposta, que precisa ser plenamente acordada entre os geólogos, de uma nova época geológica. Todo o caso, ainda estamos no holoceno. A tendência é que nos próximos anos possamos confirmar a hipótese científica, pois atualmente a proposta tem muita popularidade e impacto na imprensa, o que faz com que ouçamos cada vez mais esta palavra. O antropoceno se define como o impacto humano global e irreversível sobre a terra. Nós nos damos conta de que o planeta é bastante grande, mas não suficientemente grande para suportar todos os impactos e as modificações do ser humano ante a tecnologia, a modificação dos terrenos etc. E quando começou? A primeira opção remete à revolução industrial, no século XIX; a segunda opção retrocede muito mais no tempo, considerando algo como há dez mil anos, no período neolítico; a terceira opção, justamente a que a maioria dos cientistas defendem, entre 1945 e 1950 com as primeiras detonações nucleares – com as bombas lançadas sobre Hiroshima e Nagasaki –, espalhando sedimentos radioativos pela terra. O antropoceno foi proposto pelo o pesquisador do clima Paul Crutzen, Nobel de Química, junto com Eugene Stoermer, que era um ecólogo norte americano, mas, como disse, estamos esperando a definição oficial.

Quais foram os acontecimentos que podem nos ajudar a compreender o antropoceno?

Um dos fenômenos antropocênicos, dos primeiros que se pode dizer, é o intercâmbio colombino, da época em que Colombo chegou a terras americanas e as enfermidades europeias causaram uma enfermidade tremenda, além da deflorestação. Agora se fala na sexta extinção em massa, estimada em 30% dos humanos, 67% dos gados e 3% das espécies selvagens. Os plásticos e os microplásticos são um enorme problema, de tal modo que há plástico suficiente para envolver todo o planeta. Há ainda as modificações nos terrenos, alteração geomorfológica dos estuários, a construção de cidades e instalações de aeroportos, estradas, tudo isso vai alterando a conformação do planeta. Literalmente, essas construções vão cobrindo a superfície terrestres. As mudanças nos hábitos de vida, como o sedentarismo e enfermidades como o coronavírus, são fenômenos decorrentes do antropoceno.

Quais são os tipos de intepretações mais recorrentes do antropoceno?

Há dois tipos de posturas para pensar o antropoceno: 1) aqueles que advertem que o antropoceno será muito ruim para a humanidade. Estes são chamados, entre outras coisas, de “catastrofistas”; 2) a outra postura, daqueles que podem ser chamados de “antropocenistas”, acredita que haverá um antropoceno bom em que a humanidade poderá controlar por completo a natureza e que viveremos uma época de progresso. Trata-se de dois pontos de vista radicais que é muito difícil de sustentar, então o desafio é buscar uma posição intermediária. Um exemplo do que dizem os antropocenistas é a possibilidade de “controle” do clima por meio de diversas tecnologias, chamadas de geoengenharia, o que é algo muito controvertido pois não se sabe que efeitos irreversíveis podem ser criados em caso de utilização em larga escala. Uma alternativa que aparece neste contexto é a gestão dos ecossistemas como se eles fossem uma espécie de máquinas para fabricar, entre outras coisas, ar “puro”. Esta é a continuação de uma ideia moderna e humanista do mundo, mas levada ao nível empresarial.

Quais são os dez fatores ou mensagens básicas sobre o antropoceno?

O primeiro deles é o fato que a pegada humana na terra é irreversível, pois mesmo que tomemos muitas medidas de correção há coisas que são irreversíveis e que vão afetar a totalidade do planeta. É evidente que diferentes seres humanos têm diferentes responsabilidades, porque os impactos variam muito, afinal um empresário norte-americano e um agricultor pobre de Bangladesh são exemplos muito perceptíveise e antagônicos do que estou falando. O segundo ponto é que vivemos uma espécie de paradoxo, à medida que perdemos o controle da natureza nos damos conta que podemos (como espécie) influir no clima, nos ciclos bioquímicos da natureza e nos ecossistemas em grande escala. O terceiro ponto tem a ver com o que se fala como o fim da natureza, de modo que não há mais no planeta partes intocadas. Isso causa uma interdependência muito complexa entre seres humanos e os entornos singulares, pois isso é sempre melhor não falar em termos universalistas, mas em termos mais concretos. O quarto ponto tem a ver com algo novo, a geohistória, que é a união da história geológica e da história humana. Um quinto fator é a necessidade de se conceber o antropoceno como algo temporal. Estamos acostumados com o conceito de globalização que é espacial, mas o antropoceno tem uma dimensão temporal e o que torna ainda mais difícil lidar com ele é que as pessoas, normalmente, não lidam com uma escala de tempo tão grandes. Em sexto lugar temos que falar de crise ecossocial, ou seja, não somente uma crise somente ecológica ou somente social, mas em grande medida uma mistura de elementos de uma e de outra dimensão. Daí a guerra de dados para saber que coisas estão melhorando e que coisas estão piorando. Sétimo ponto: os antropocenistas e os catastrofistas, obviamente, emergem dessa disputa e não estão de acordo. Em oitavo lugar é necessário, porém, sempre buscar uma postura, um caminho, que nos permita construir uma sustentabilidade e uma colaboração duradoura entre os seres humanos e os entornos naturais. O nono ponto tem a ver com os relatos. Nós precisamos criar narrativas que deem conta da nossa relação com a natureza, sem a qual a confusão é muito elevada. Por último, o décimo ponto, para compreender o antropoceno entram em conflito as três grandes cosmovisões: humanistas, pós-humanistas e transumanistas. O fato é que cada uma delas tem seus problemas e suas coisas positivas para aportar ao debate.

Como o antropoceno afeta o transumanismo e o pós-humanismo?

Os transumanos sugerem que teríamos que nos adaptar às tecnologias, por exemplo, para suportar o calor, o frio, as contaminações etc. Esse seria o projeto transumanista, de melhora humana ou de controle tecnológico do entorno. Outra alternativa seria emular a terra em outros planetas, isto é, o projeto de terraformação. Uma das questões em torno desta hipótese, considerando que ela seja factível, é: quantas pessoas poderiam escapar para este lugar? Enquanto isso, cabe aos pós-humanistas, a herança crítica ao antropoceno, o interesse de mostrar que o problema do antropoceno é antes de atitude, que de tecnologia, de modo que as mudanças não decorrerão de mais tecnologia, mas da mudança de nossos hábitos.

Diante deste contexto, o que se pode fazer?

Há uma série de coisas a serem feitas, mas é preciso considerar o paradoxo psicológico instaurado pelo antropoceno. Muitas pessoas, quando os problemas são demasiadamente graves, dentre eles os problemas ambientais, tentam não encará-los e olhar para o lado oposto, negando-os, criando um subterfúgio psicológico. Contudo há algumas coisas que podem ser feitas, não somente em relação aos problemas da mudança climáticas, mas também em relação as questões ambientais. Há algumas estratégias que podem ser adotadas para que o antropoceno não seja muito ruim. Em primeiro lugar temos que tratar de contar nossas histórias com os seres naturais, distante da posição humanistas clássica, o que é muito difícil. Há muitas histórias deste tipo, especialmente na América Latina, e é preciso encontrá-las novamente. É preciso também buscar palavras positivas para que possamos colaborar uns com os outros. É necessário retomar as coisas boas e usar elementos gráficos e métricas de coisas que estão indo bem, quando estão bem. Além disso é urgente tentar conscientizar as pessoas a fazerem o que está a seu alcance para melhorar as condições de vida. Isso são coisas simples, como, por exemplo, reciclar. Um dos problemas cruciais é o político. Os países precisam entrar em um acordo pois se trata de um problema global e houve muitas reuniões para chegar a um acordo, mas quando se chega a um acordo ele não é cumprido. Do ponto de vista da gestão, quando se trata de problemas globais, o melhor seria um governo mundial, que incorporaria o governo de todo o mundo. Claro que há problemas nesta “saída”, pois um governo desses poderia ser imposto à força e poderia resultar em um governo ecofascista, o que poderia ser melhor para o planeta, mas pior para os seres humanos. Nesse sentido, é mais importante se buscar apoio em nível internacional, não global, pois quando há países que não estão de acordo a efetividade das medidas se ressentem muito. Além disso, atuar em muitos níveis é fundamental, de modo que há muitas organizações e iniciativas individuais que são importantes. Há, ainda, posturas mais radicais que seriam as anarcoprimitivistas, de destruir as tecnologias, renunciar ao processo tecnológico e se tornar comunidades muito básicas de coletores. Ademais, o anarcoprimitivismo está no polo oposto ao transumanismo e visa acabar com as tecnologias sem acabar com os seres humanos, voltando a um estilo de vida muito simplificado.

Deseja acrescentar algo?

Os tempos que vivemos são muito difíceis e a palavra antropoceno foi criada para explicar alguns dos problemas que temos. Há conflitos entre anarcoprimitivistas e transumanistas, bioconservadores (que seriam de esquerda) e alguns transumanistas (que seriam de direita), e, por fim, alguns ecologistas que seriam também extincionistas. Bem, cada um deles defende coisas distintas, mas não completamente incompatíveis. O fato é que nós todos precisamos de dados científicos e histórias coerentes para que possamos nos unir contra essa ameaça, que seria todas as coisas que podem ir mal no antropoceno. Quando nos damos conta que temos uma margem de manobra pessoal, como pessoas, indivíduos, percebemos que temos também como comunidade. No meu caso me coloco numa posição que defende que devemos escolher o melhor do humanismo, do transumanismo e do pós-humanismo. Do humanismo o melhor são valores como a dignidade e a liberdade humana; dos transumanistas algumas melhoras não radicais podem ser pertinentes e oportunas, ao passo que outras podem ser um disparate um pesadelo; em relação ao pós-humanismo é importante considerar a visão que traz e as formas de se relacionar com o mundo, com as demais pessoas, os artefatos a partir de uma visão não antropocêntrica, não dualista.

Com Geneviève Pruvost

'O ECOFEMINISMO ATACA O CAPITALISMO PELA RAIZ'

A candidatura de Sandrine Rousseau às primárias francesas pelos ecologistas colocou em evidência uma perspectiva política ainda pouco conhecida do grande público: o ecofeminismo. Este termo guarda-chuva designa múltiplas correntes de pensamento que ligam a dominação exercida pelos homens sobre as mulheres e a dominação que exercem sobre a natureza. Está cada vez mais presente no debate público, como o evidencia, por exemplo, a concessão, no início do ano, do prêmio do livro de ecologia política à filósofa Jeanne Burgart-Goutal pela sua obra Être écoféministe. Théories et pratiques, ed. L'Echappée, 2020 (Ser ecofeminista. Teorias e práticas). A entrevista é de Céline Mouzon, publicada por Alternatives Économiques. A tradução é de André Langer /IHU.

A ecologia política não é necessariamente feminista. Pelo contrário, o ecofeminismo é de fato uma ecologia política. Em seu livro, você faz dialogar livremente uns e outros e confronta o seu pensamento com o pensamento dos teóricos marxistas libertários. Por que essa escolha?

Eu não faço do ecofeminismo o único planeta matricial sobre o qual eu me apoio. Eu queria misturar o ecofeminismo com outros pensamentos próximos com os quais ele dialoga. Foi uma aposta editorial e intelectual para apresentar o ecofeminismo, por um lado, aos entusiastas de Henri Lefebvre [filósofo pensador marxista do cotidiano, nota do editor] e de Ivan Illich [pensador da ecologia política, nota do editor] e, por outro lado, para mostrar que o ecofeminismo constitui um corpo de pensamento plenamente reconhecido na teoria do capitalismo. Isso me pareceu ainda mais necessário, uma vez que se perderam cinquenta anos de memória intelectual na França sobre essa corrente de pensamento. O ecofeminismo foi suplantado por teorias menos atentas às lutas ambientais e, na linha de Simone de Beauvoir, mais preocupadas em pensar a emancipação das mulheres em relação a um modelo masculino, para dizê-lo muito rapidamente. Quanto ao marxismo libertário, sua abordagem crítica parece-me inteiramente em sintonia com uma perspectiva ecofeminista.

Como definir o ecofeminismo?

O ecofeminismo é uma vasta galáxia onde coexistem várias abordagens teóricas, várias concepções de ativismo, que têm em comum o fato de oferecerem uma reflexão global sobre gênero, ambiente, capitalismo e organização social. Algumas correntes são mais radicais que outras, prevendo a necessária destruição do sistema capitalista, sem necessariamente aderir às economias socialistas. O ecofeminismo que me interessa considera que a destruição do planeta, ou seja, de nossas condições de vida, está ligada a um modo de desenvolvimento econômico conduzido pelos Estados-nação, pela indústria, pela monetarização e pela colonização, que levam a uma mercantilização unilateral e ao deslocamento da produção. As pessoas comuns são destituídas da capacidade de agir, seguindo um processo que não é nada neutro: a cúpula do Estado, a propriedade da terra, as profissões liberais, capazes de reconfigurar setores vitais (medicina, engenharia, direito, construção civil, agricultura), são lugares de poder predominantemente masculinos. Esta tomada de poder considerável diz respeito a atividades que, no entanto, devem ser redistribuídas. Mas como? As ecofeministas às quais me refiro apontam para o problema do critério da ascensão social através do trabalho assalariado em prestigiosas profissões remuneradas, o que supõe uma adesão prévia à organização do trabalho capitalista. Tendo trabalhado anteriormente com a feminização da polícia, conheço bem a questão da feminização das profissões como uma alavanca de transformação. A feminização da polícia certamente melhora o princípio democrático da igualdade de oportunidades porque as populações anteriormente excluídas estão mais bem representadas. Mas essa integração (minoritária) não muda a função da polícia em nossas democracias.

Você fala com mais frequência de “subsistência” do que de ecofeminismo, o que lhe permite aceitar autores e autoras que não reivindicam o ecofeminismo. Como entende essa noção?

A subsistência foi conceituada pelas ecofeministas alemãs Maria Mies, Claudia von Werlhof e Veronika Bennholdt-Thomsen. O termo também se refere a trabalhos históricos e antropológicos que distinguem as sociedades marcadas pelas economias de subsistência, em oposição às sociedades de consumo, onde existe a obrigação de adquirir os serviços básicos. Para Mies e suas partidárias, trata-se de destacar as experiências do Sul Global, mas também de traçar um programa de ação para o futuro. A subsistência refere-se a todas as atividades que permitem a um agregado familiar (este termo abrange unidades maiores do que a família, como o distrito ou a aldeia) ter formas de independência em relação à sociedade mercantil. Não se trata apenas da alimentação: todos os bens e serviços são contemplados, do cuidado às atividades artesanais. A subsistência também implica levar em consideração os mundos vivos, que têm capacidades regenerativas que em grande parte podem prescindir da mão humana, e com os quais interagimos. Esses mundos vegetais, animais, minerais e orgânicos têm sua própria temporalidade e suas próprias restrições. A subsistência, portanto, nos afasta da ideia do domínio humano sobre a capacidade de reprodução da vida. Isso tem implicações em termos de trabalho. O reforço das interdependências entre as atividades humanas e não humanas permite reduzir a imposição da produção. O antropólogo estadunidense Marshall Sahlins demonstrou isso: as sociedades de subsistência não são economias de sobrevivência; elas podem ser sociedades da abundância. Maria Mies, por ter crescido na fazenda, depois compartilhado o cotidiano dos camponeses indígenas em suas pesquisas de sociologia, também o demonstra: viver em um ambiente de convivência com animais de fazenda permite ocupar-se da alimentação dos animais e de muitas outras tarefas, integrando as crianças e os idosos nesta forma de estar no mundo. A subsistência é um tempo compartilhado. A noção de subsistência também envolve uma reflexão sobre a organização coletiva. Uma “perspectiva de subsistência”, para usar a expressão homônima de um livro de Veronika Bennholdt-Thomsen e Maria Mies, reconhece a existência do tempo para o debate sobre assuntos comuns enquanto o trabalho em si está sendo realizado. As pessoas debatem em terreno familiar, no momento em que a subsistência está sendo produzida. Isso levanta a questão das arenas de tomada de decisão e do modo de governo promovidos por nossas democracias, que, por outro lado, separam os espaços de trabalho, os espaços privados e os espaços públicos. Ao especializar os espaços, privatizamos em todos os aspectos os debates cruciais que ocorrem na trivialidade do cotidiano e são, por esse fato, inclusivos. Por fim, a subsistência convida a repensar a questão do espaço e dos ambientes de vida, para que não sejam fechados nem reduzidos a regiões. Os adeptos das alternativas rurais têm uma capacidade real de circular a partir de seu lugar de ancoragem. Há algo da ordem do nomadismo aqui, ao contrário das sociedades hipertecnológicas, que também são sociedades uniformizadas: o hotel em Dubai e o de Nova York são iguais. Federici e Maria Mies, que viajaram pelo mundo, buscavam uma forma de manter a diversidade das organizações sociais do planeta sem perpetuar as sociedades tradicionalistas e excludentes. A hospitalidade é a chave.

Como isso funciona na prática?

Muitas alternativas rurais estão agora tentando retomar a dinâmica da subsistência. Em sociedades pós-camponesas como as nossas, entretanto, isso é muito complicado. Com a sociedade de consumo literalmente inserida em nossos muros, perdemos o sentido do território – e das pessoas – que nos permite beber, comer, dormir, trabalhar sob um teto aquecido. Não é simples reconstruir uma aldeia em um território fragmentado, entre um vizinho fazendeiro adepto dos agrotóxicos, uma zona comercial e vias expressas. A sociedade industrial, na fase da extrema mercantilização em que nos encontramos, também desvaloriza a desenvoltura e a polivalência. No entanto, isso era típico da organização do trabalho das sociedades camponesas, mas também dos operários, que dispunham de saber-fazer básicos em matéria de subsistência. A aprendizagem do coletivo também se faz de forma diferente e mais tardiamente. A coordenação das atividades em pequenos territórios implicava estreitas relações comunitárias, de face a face. É claro que não há nostalgia pelas organizações familiares patriarcais do passado. Mas isso significa que toda a socialização no trabalho coletivo e na convivência em um ambiente de convivência foi incorporada desde a infância. Agora, para todas as gerações que não foram formadas no trabalho manual e num conhecimento prático das coisas vivas, deve ser aprendido nos livros, fazer formações. Nos novos grupos de convivência, isso significa estabelecer laços de confiança muito rapidamente e coordenar-se com eficácia, sem ter trabalhado juntos durante um longo tempo. Isso é um desafio. Talvez seja por isso que em muitas alternativas que tenho observado, com frequência se coloquem em prática as lógicas familiares, mesmo quem não tem filhos: as pessoas se casam, se separam, depois voltam a entrar em uma relação, e se conectam com pessoas que também trabalham em casa. Outros lugares, como a zona a defender de Notre-Dame-des-Landes, funcionam como coletivos de vida não familiar, com a possibilidade de mudar de coletivos de vida de acordo com as suas opções políticas. Mas, foram necessários dez anos de lutas comuns para aprender a trabalhar juntos, para descobrir afinidades reconciliáveis e irreconciliáveis. E é obviamente isso que os veículos blindados do Estado queriam destruir a todo custo. Essas formas pós-familiares, essa invenção de coletivos que, a partir de uma grande heterogeneidade de propostas, conseguem reunir-se, apesar de tudo, ter uma certa autonomia (em termos de saberes agrícolas, artesanais, energéticos, médicos) e reivindicar um mesmo território, tudo isso era insuportável.

Você se debruça sobre a invenção do trabalho doméstico no século XIX e seus efeitos políticos. Como assim que o trabalho doméstico não tem nada a ver com a subsistência?

A subsistência, certamente, não impede a divisão sexual do trabalho. Por outro lado, não devemos confundir o trabalho doméstico com as tarefas de subsistência. Podemos fazer remontar a invenção do trabalho doméstico ao século XIX, que assistiu à implementação em larga escala dos processos de urbanização e de monetização da vida cotidiana. Essa reorganização social é acompanhada por uma mudança de ocupação que desorganiza a relação entre camponeses e artesãos no campo (as sociedades camponesas são indissoluvelmente sociedades de camponeses-artesãos), com consequências muito graves para as mulheres. As mulheres ficam então encarregadas do trabalho doméstico, que na realidade é em grande parte um trabalho de consumo, ao passo que os homens estão empregados na fábrica e no escritório o dia todo. Os lares ficam despovoados e as mulheres precisam saber o que comprar, como conservar e manter os novos produtos e como operar os aparelhos elétricos, etc. Esse longo aprendizado foi orquestrado nas e pelas escolas domésticas, provocando uma mudança drástica de regime: em uma sociedade de camponeses-artesãos, para fazer a limpeza, fazemos nossa própria vassoura. Na sociedade de consumo do século XXI, compramos um aspirador-robô cujos usos não foram pensados em termos de ergonomia e de utilidade. E também somos obrigados a pagar taxas pela sua reciclagem, já que em casa mais ninguém sabe o que fazer com as peças descartáveis. Historiadoras e ecofeministas (Barbara Ehrenreich e Deirdre English, Susan Strasser, Silvia Federici) mostraram que a introdução gradual do trabalho doméstico ocorre em detrimento do trabalho de subsistência. É um processo de recrutamento do grupo das mulheres para o capitalismo via trabalho assalariado que reduz a porção apropriada das atividades alimentares básicas. Portanto, a emancipação através do acesso ao trabalho assalariado (o que torna possível pagar por alimentos pré-preparados ou serviços pessoais) não faz senão adiar a questão das atividades vitais, incompressíveis.

A delegação de todas essas tarefas envolve a participação das populações subalternas nos países do Sul Global. Por que se separou o trabalho tão importante do care [cuidado] das atividades materiais de cuidado dos ambientes de vida que nutrem?

Alguns veem na delegação deste trabalho uma possibilidade de emancipação para as mulheres do Norte, e um horizonte a ser generalizado para todas as mulheres do mundo; mas é uma perspectiva muito marcada socialmente e muito centrada no Ocidente. Isso nos impede de pensar com as camponesas e as operárias, para quem cuidar dos seus entes queridos significa sobrepor atividades e tempos sociais, com uma escala de prioridades totalmente diferente. A perspectiva ecofeminista, portanto, ataca o capitalismo pela raiz: sem uma divisão igualitária das atividades do viver, mesmo em suas operações mais concretas, a democracia fica suspensa no ar.

Significaria isso que você mesmo teria que passar a fazer sua própria vassoura novamente e, mais amplamente, voltar ao estilo de vida das sociedades camponesas?

A caricatura do retorno aos amish e à lamparina a óleo permite desacreditar facilmente o ecofeminismo e a ecologia política, sem considerar seriamente as perspectivas abertas. Precisamos desconectar o fato de se referir às organizações camponesas do fato de retornar ao tempo das sociedades camponesas. Tal aspiração corresponderia, por definição, a um projeto reacionário. Este não é o projeto das autoras e dos autores que eu cito. Se elas recorrem à evocação das sociedades pré-modernas, também se baseiam em experimentos utópicos. Não é por acaso que Françoise d´Eaubonne tenha escrito, além de seus ensaios, romances de ficção científica. As alternativas rurais e neorurais desenvolvem, seja dito, uma verdadeira reflexão sobre o uso da tecnologia que obriga a pensar outros usos da eletricidade e da mecanização, ao imaginar um mundo sem energia nuclear. As ecofeministas também insistem na necessidade das mulheres recuperarem o controle das técnicas. Não é à toa que ainda há avós e mães que continuam a tricotar maiôs e suéteres para dar de presente de aniversário. Há algo mais nesse gesto do que comprar de uma grande marca. Uma perspectiva de subsistência reconhece essa diferença, sem essencializá-la. Isso não significa que temos que voltar aos tempos da roca. Mas isso também não significa que devemos ignorar os conhecimentos vernaculares ainda em uso. Em termos de estereótipos, gostaria também de destacar um elemento linguístico. O prefixo “auto”, usado em muitas expressões – autoprodução, autoconsumo, etc. – é problemático. Parece indicar que se pode realizar algo por si mesmo, e não também para e com os outros, e que não há coletivo anterior à produção, que se está em uma forma de autarquia ou de autossuficiência. O termo autoconsumo é particularmente absurdo, como se você estivesse se consumindo a si mesmo, e consumindo algo para si, feito por si mesmo. É um truque linguístico para estabelecer o consumo como padrão final. Esse prefixo, que também pode se referir à ação do “autômato”, finalmente abre de maneira errada a imaginação para a coisa que cai do céu, do tipo “nós plantamos, então cresce”. Isso é obviamente uma simplificação de todas as operações muito complexas envolvidas na produção comum da subsistência. Diante disso, a noção de “fábrica coletiva”, utilizada pelo historiador e sociólogo Alain Cottereau para designar as oficinas de seda de Lyon no século XIX, dá conta muito melhor do trabalho efetivo realizado nas famílias.

Como, então, articular o nosso mundo contemporâneo e as lógicas de subsistência?

Essa é a questão! Como imaginar possíveis coexistências? Como preservar, por exemplo, o saber hospitalar universitário e a medicina alternativa? O capitalismo recusa o estabelecimento de uma pluralidade de acessos a diferentes formas de cuidado, de produção, de bens, de diferentes usos da terra, impondo monopólios com habilitações profissionais exclusivas, formando setores profissionais inteiros para um certo tipo de técnica, realizando uma mercantilização completa do cotidiano. Trata-se de lógicas predatórias que levam a verdadeiras caças às bruxas das práticas alternativas. O parto tornou-se assim um gesto mercantil, pago pelo ato. Com esta terrível consequência: países inteiros ficam com uma grande oferta de cesáreas, porque pagam mais do que um parto fisiológico que não requer injeção de produtos farmacêuticos, mas um acompanhamento humano. As parturientes não conseguem mais dar à luz de maneira adequada e são submetidas à violência obstétrica. O parto é, no entanto, do ponto de vista antropológico, o gesto humano mais localizado no tempo. Não se podendo prever completamente a hora e acontecendo quando tiver que acontecer, deveria ter permanecido no regime do próximo. Hoje, porém, na França, com o fechamento das maternidades, está se transformando em um ato programável, que deve se acomodar a viagens motorizadas e a analgésicos por falta de uma rede suficientemente densa de profissionais do parto. Muitas parteiras de hospitais sofrem por trabalhar em fábricas de bebês, ao passo que aquelas que têm competências na área da fisiologia sofrem para exercer a sua arte (ao contrário da Holanda e da Alemanha), apesar do aumento acentuado dos pedidos na França. A fitoterapia e o uso de plantas medicinais são outro exemplo. Na França, no regime de Vichy, os fitoterapeutas perderam o direito de prescrição e de designação terapêutica das plantas, e esse poder foi concedido aos farmacêuticos. Os colhedores e colhedoras de plantas podem, assim, vender nos mercados, mas não tem o direito de dizer quais são as propriedades medicinais das plantas cujas virtudes estão, no entanto, bem listadas. É muito diferente na Alemanha. Isso não é anedótico: a fitoterapia faz parte da continuidade das atividades vernaculares. Esses saberes proibidos, que podem levar a julgamento, fazem parte de um processo de criminalização. Para a socióloga policial que já fui, esse é sempre um sinal preocupante. Uma demonstração semelhante poderia ser feita para os saber-fazer em matéria de construção com materiais de origem biológica e da terra crua – base da habitação comum antes da invenção do concreto e do metal. O grande canteiro de obras que é a Grande Paris escava milhões de toneladas de terra, transforma-a em lixo, enquanto os edifícios da velha Lyon são feitos de terra pisada e as casas normandas e bretãs, de adobe e estrume. O conhecimento comum de quais são as terras boas para a construção – embora eminentemente durável – foi literalmente arrasado pelo lobby do concreto.

Como você descreveria a situação atual?

Não é muito forte dizer que estamos testemunhando uma guerra impiedosa contra a subsistência e toda a autonomia que ela poderia dar a regiões inteiras. Esta guerra está sendo travada silenciosamente com base em proibições profissionais, em regulamentações legais e em apropriações de terras, com uma acentuação dos regimes de propriedade e uma concentração das decisões, das quais as mulheres são as primeiras a serem excluídas. A poluição do solo e da água e a poluição sonora constituem outra técnica de terraplanagem, que torna os locais inadequados para uma vida habitável. As lutas contra grandes projetos que envolvem artificialização, concretamento e poluição são regularmente qualificadas como “NIMBY” [para “not in my backyard”, “não no meu quintal”, nota do editor], que é uma forma de desqualificá-las, trazendo-as de volta à defesa egoísta dos interesses pessoais e para despolitizá-las. Mas, todas as lutas ambientais começam com a defesa do território próximo, por exemplo, envolvendo as mães na saída da escola, os aposentados, as pessoas que não costumam se manifestar, e protestando contra a construção de um entroncamento próximo. Na realidade, nunca se trata de lutas envolvendo um único interesse: muito rapidamente, esses conflitos levantam questões mais gerais de justiça ambiental. A guerra contra a subsistência é planetária e também pode assumir a forma clássica de uma guerra militar: ela destrói, então, os ambientes ricos em nutrientes. Fazer a guerra, no sentido mais tradicional, consiste em tornar esses ambientes impróprios para uso, saqueando-os com bombardeios. A destruição cria fome, priva as populações de recursos naturais e força ao êxodo urbano, em busca de ajuda internacional. Esta é uma forma muito clássica de instalar lógicas industriais no lugar das lógicas de subsistência.

As ecofeministas oferecem contranarrativas poderosas sobre dois momentos cruciais da história: a passagem do Paleolítico ao Neolítico, e aquela do feudalismo ao capitalismo (das sociedades camponesas às sociedades industriais). Quais são essas contranarrativas e quais são os efeitos que elas produzem?

Essas contranarrativas são um gesto de grande ousadia intelectual. Elas retomam a abordagem de Marx e Engels, que consiste em se interessar pelos momentos de mudança. Como eles, as ecofeministas pensam a transição do Paleolítico para o Neolítico, depois a transição do feudalismo para o regime capitalista. A grande questão é a acumulação. As sociedades patriarcais são sociedades que acumulam bens, que os monopolizam e os colocam nas mãos dos patriarcas. As ecofeministas, pois, se perguntam: quais são as organizações de trabalho e de poder que proporcionam a acumulação? Das sociedades de caçadores-coletores às sociedades industriais, passando pelas sociedades agropastoris e depois camponesas, a acumulação tem sido cada vez mais acentuada. Quem se beneficia com o acúmulo de bens? Como se opera a concentração de terras e de conhecimentos? É a sua abordagem investigativa, marxista, que agrega a uma lógica de classe uma atenção ao recrutamento das mulheres e dos povos do Sul, já que a exploração dos povos e das terras colonizadas condiciona o crescimento do consumo do Norte Global. A especificidade do corpo de textos que estou tecendo em conjunto, em comparação com a abordagem adotada pelo feminismo universalista, é que a hipótese de sociedades pré-patriarcais igualitárias não é tabu. As ecofeministas acreditam que pode ter havido um lugar e uma época em que as mulheres receberam grande poder, como os homens de resto. Elas não hesitam em afirmar que algumas sociedades cultuaram deusas da fertilidade. Elas chegam a varrer as evidências dos “grandes homens” inventores, oferecendo contranarrativas: foram as mulheres que inventaram a agricultura, porque foram elas que tradicionalmente guardaram as sementes; são as mulheres as primeiras produtoras porque procriam e têm podido amamentar crianças, assim como outros pequenos mamíferos que domesticaram desta forma, etc. Em suma, consideram que a subsistência (colheita, agricultura, pecuária, processamento artesanal, conservação, manejo) não é uma tarefa fácil, e que este trabalho realizado pelas mulheres colocou-as em uma posição social central: quem não está vestido e alimentado não está em condições de caçar nem arar. Portanto, elas colocam o patriarcado na historicidade. O interesse dessa abordagem é obviamente estratégico: se o patriarcado nem sempre existiu, ele pode ser desfeito. Talvez o mais singular, do ponto de vista historiográfico, seja que essa aposta interpretativa também não tenha criado escola. Como é que, de fato, para tempos tão longínquos em que a imaginação é necessária, dada a ausência de fontes, a hipótese igualitária não se colocou ou ficou à margem, sendo muito sistematicamente desacreditada no plano científico? Claro, essa abordagem leva a reescrever a história de uma maneira muito arrogante. Não é à toa: a história da emancipação humana (que se abstrai da natureza “selvagem”) é francamente hegemônica. Elas atravessam a história e os textos em alta velocidade, mas de forma poderosa, sem serem historiadoras, rastreando os pontos de mudança e as contradições da grande narrativa. Afinal, existem escritos das ciências sociais que são altamente referenciados e matizados, ou praticam o gênero do afresco histórico, mas, mesmo assim, são baseados em estereótipos implícitos, como têm mostrado as historiadoras e pré-historiadoras feministas. O desafio epistemológico, para essas ecofeministas, é desnaturalizar as evidências da dominação masculina e da industrialização salvadora em todos os momentos e em todos os lugares.

E a transição do feudalismo para o capitalismo?

As ecofeministas detêm-se, em primeiro lugar, na caça às bruxas que visa romper as solidariedades camponesas que se levantaram contra a nova aliança entre os burgueses das cidades e os senhores do campo, como mostrou Silvia Federici. As denúncias de feitiçaria permitem que se marginalize setores inteiros dos saberes em posse das mulheres, essenciais à autonomia, que sejam deslegitimados, e atribuir às mulheres o exercício de tarefas domésticas muito limitadas incorporando-as assim ao capitalismo. A maternidade, a obstetrícia, a fitoterapia, a fiação, a tecelagem são exemplos típicos dessa apropriação: esses saber-fazer exercidos principalmente por mulheres foram apreendidos por médicos, farmacêuticos e engenheiros do sexo masculino durante o século XIX. O outro ponto abordado tanto por Silvia Federici quanto pelas ecofeministas diz respeito à reavaliação das capacidades das sociedades camponesas de resistir à ordem senhorial e burguesa das cidades. Essa resistência política era muito forte, e as mulheres participavam dela, principalmente nos movimentos heréticos, que reivindicavam uma melhor distribuição das terras. Essa leitura da história permite que as ecofeministas multipliquem as vozes silenciadas, para dar conta do ponto de vista das populações para as quais a partilha das tarefas de subsistência e de cuidado do meio ambiente constitui a base da organização política das sociedades. Com este prisma, não são as atividades de subsistência que devem ser rotuladas como “pré-modernas”, “pré-capitalistas” ou “não capitalistas”, mas o capitalismo que surge como um estranho regime “não substancial” e “antissubsistência”.

O ecofeminismo distingue-se, assim, de outros feminismos, do feminismo materialista e das teorias queer. Onde se situam as diferenças?

Feministas marxistas autônomas como Silvia Federici e ecofeministas como Maria Mies se distinguem das feministas materialistas de sua época na questão da historicização do patriarcado. Para as primeiras, o patriarcado não é um dado universal. Existem muitas formas possíveis de patriarcado e de resistência ao seu domínio. Há uma especificidade do patriarcado capitalista, cuja última fase é a busca pelo monopólio da criação de plantas, animais e humanos. Ao fazer isso, elas pintam um afresco que nos leva do nascimento do capitalismo ao capitalismo do nascimento. O trabalho doméstico vinculado à atividade de consumo é considerado particularmente empobrecido: essa tarefa não inclui a fabricação de seus instrumentos, não libera excedentes trocáveis e não pode renovar os materiais (que desaparecem assim que são consumidos). O trabalho de subsistência nas sociedades camponesas é de natureza completamente diferente. Isso, portanto, torna sua equivalência teórica complicada, como pode fazê-lo Christine Delphy. O risco dessa abordagem, dizem as ecofeministas, é adotar um padrão ocidental, industrial, burguês e monetário para pensar a dominação, a emancipação e a riqueza. Claro, as feministas materialistas estão bem conscientes dessa armadilha, e não é isso que elas dizem. As diferenças também dizem respeito aos modos de ação: a implementação de políticas públicas, impulsionada por um feminismo de Estado, não é criticada como tal, mas não constitui a alavanca que essas teóricas-ativistas privilegiam. Vindas de movimentos ambientalistas libertários ou do movimento autônomo anticapitalista, sua crítica ao Estado como braço armado do capitalismo leva-as a clamar por uma ação direta sobre o bem-viver. Seu interesse pelo fenômeno comunitário e pela resistência (contra-violenta para Françoise d'Eaubonne, a desobediência civil com a sabotagem de bens para Marie Mies) não diminuiu da década de 1970 para cá, o que as leva a aderir ao movimento alter-globalização nos anos 1990. Quanto às teorias queer, também há uma diferença teórica na concepção da matéria, como uma superfície inerte que seria o suporte do discurso – como se a matéria não tivesse vida própria. A intersecção é mais clara com o feminismo decolonial. No entanto, essas linhas divisórias não existem mais para as jovens gerações feministas dos anos 2010 na França que, tendo perdido cinquenta anos de debates ecofeministas, dificilmente se preocupam com as “tradições”. Elas criam coletivos ecoqueer, materialistas, intersetoriais, que militam tanto pela justiça ambiental quanto pela politização do menor gesto. E essa é uma ótima notícia!

Com Chomsky

O QUE ESPERAR DA COP-26

Luta para salvar o planeta terá de ser feita sob o capitalismo – mas desafia lógicas do sistema. Corporações tentam evitar até mesmo acordos parciais, e apostam na inércia dos governos. Pressão da juventude pode sacudir um tabuleiro viciado. Chomsky, 92 anos, é autor de vários best-sellers políticos, traduzidos para múltiplas línguas. Suas críticas ao poder e sua defesa de autonomia e ação política das pessoas comuns inspiraram gerações de ativistas e organizadores sociais. Ele é professor emérito do Instituto de Tecnologia de Massachusetts desde 1976. Noam Chomsky concedeu entrevista a Stan Cox, publicada por Tom Dispatch e reproduzido por OutrasPalavras. A tradução é de Vitor Costa /IHU

A maioria das nações que está reunida em Glasgow para a 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática, de 31 de outubro a 12 de novembro de 2021, fez promessas de redução de emissões de CO². Na maioria das vezes, essas promessas são totalmente inadequadas. Que princípios você acha que deveriam guiar o esforço para prevenir uma catástrofe climática?

Os iniciadores do Acordo de Paris pretendiam ter um tratado obrigatório, não acordos voluntários – mas havia um impedimento: o Partido Republicano dos EUA. Estava claro que o Partido Republicano nunca aceitaria nenhum compromisso vinculativo. Este partido, que perdeu qualquer pretensão de ser uma organização política normal, dedica-se quase exclusivamente ao bem-estar dos super-ricos e do setor corporativo, e não se preocupa absolutamente com a população ou o futuro do mundo. A organização republicana nunca teria aceitado um tratado vinculante. Em resposta, os organizadores reduziram seu objetivo a um acordo voluntário, que contém todas as dificuldades que você mencionou. Perdemos seis anos, quatro sob o governo Trump, que se dedicou abertamente a maximizar o uso de combustíveis fósseis e desmontar o aparato regulatório que, em certa medida, havia limitado seus efeitos letais. Até certo ponto, esses regulamentos protegiam setores da população da poluição, principalmente os pobres e as pessoas negras. Porque são eles que, é claro, enfrentam o principal fardo da poluição. São as pessoas pobres do mundo que vivem no que Trump chamou de “países de merda” que mais sofrem; eles são os que menos contribuem para o desastre e são as vítimas principais. Não tem que ser assim. Há um caminho para um futuro habitável. Existem maneiras de ter políticas responsáveis, sãs e racialmente justas. Cabe a todos nós exigi-los, algo que os jovens de todo o mundo já estão fazendo. Outros países têm suas próprias responsabilidades, mas os Estados Unidos têm os piores registos do mundo. Washington bloqueou o Acordo de Paris antes que Trump finalmente assumisse o cargo. Mas foi sob Trump que os Estados Unidos retiraram-se totalmente do acordo. Se você olhar para os democratas mais sãos, que estão longe de serem inocentes, existem pessoas chamadas “moderadas” como o senador Joe Manchin (Democrata – Virgínia Oriental), o principal recebedor de financiamento do setor de combustíveis fósseis, cuja posição é a dessas empresas: nada de restrições, apenas “inovação”. Essa também é a visão da Exxon Mobil: “Não se preocupe, nós cuidaremos de você”, dizem eles. “Somos uma empresa com alma. Estamos investindo em algumas formas futurísticas de remover da atmosfera a poluição que estamos despejando nela. Tudo está bem, basta confiar em nós.” “Sem eliminação, apenas inovação” é uma ideia ruim porque, se a inovação vier provavelmente será tarde demais e terá efeito muito limitado. Tome o relatório do IPCC que acabou de ser lançado. É muito mais terrível do que os anteriores e diz que devemos eliminar os combustíveis fósseis passo a passo, todos os anos, até nos livrarmos deles completamente, dentro de algumas décadas. Poucos dias depois de o relatório ser divulgado, Joe Biden fez um apelo ao cartel do petróleo da OPEP para aumentar a produção, o que reduziria os preços do gás nos Estados Unidos e melhoraria a posição do presidente perante a população. Houve euforia imediata nas pesquisas sobre mercado de petróleo. Há muito lucro a ser obtido, mas a que custo? Bem, foi bom ter a espécie humana por algumas centenas de milhares de anos, mas evidentemente isso foi tempo suficiente. Afinal, a vida média de uma espécie na Terra é aparentemente de cerca de 100 mil anos. Então, por que devemos quebrar o recorde? Por que nos organizar por um futuro justo para todos, quando podemos destruir o planeta ajudando corporações ricas a ficarem mais ricas?

A catástrofe ecológica está se aproximando em grande parte porque, como você disse uma vez, “todo o sistema socioeconômico é baseado na produção para o lucro e num imperativo de crescimento que não pode ser sustentado”. No entanto, parece que apenas a autoridade estatal pode implementar as mudanças necessárias de forma equitativa, transparente e justa. Dada a emergência que enfrentamos, você acha que os governos seriam capazes de justificar medidas como a restrição ao uso de recursos nacionais, a criação de regras para sua alocação de recursos ou racionamentos – políticas que necessariamente limitariam a liberdade das comunidades locais e indivíduos em suas vidas materiais?

Bem, temos que enfrentar algumas realidades. Eu gostaria de ver o movimento em direção a uma sociedade mais livre e justa – à produção para suprir necessidades, ao invés da produção por lucro, os trabalhadores capazes de controlar suas próprias vidas em vez de se subordinarem a patrões por quase toda a sua vida. O tempo necessário para que tais esforços sejam bem sucedidos é simplesmente longo demais para enfrentar esta crise. Isso significa que precisamos resolvê-la sob as instituições existentes – que, é claro, podem ser aperfeiçoadas. O sistema econômico dos últimos quarenta anos foi particularmente destrutivo. Infligiu um grande ataque à maioria da população, resultando em um enorme crescimento da desigualdade e ataques à democracia e ao meio ambiente. Um futuro habitável é possível. Não temos que viver em um sistema em que as regras tributárias foram alteradas para que bilionários paguem taxas mais baixas do que os trabalhadores. Não temos que viver em uma forma de capitalismo de Estado em que, só nos Estados Unidos, os 90% mais pobres, entre os assalariados, foram roubados em aproximadamente US$ 50 trilhões, em benefício de uma fração de 1%. Essa é a estimativa da RAND Corporation, uma estimativa muito conservadora, se olharmos para outros dispositivos que foram usados. Existem maneiras de reformar o sistema existente basicamente dentro da mesma estrutura de instituições. Eu acho que elas precisam ser transformadas, mas isso exigirá uma escala de tempo mais longa.

A questão é: podemos prevenir a catástrofe climática dentro de uma estrutura de instituições capitalistas de Estado menos selvagens? Acho que há uma razão para acreditar que podemos, e há propostas muito cuidadosas e detalhadas sobre como fazê-lo, incluindo algumas em seu novo livro, bem como as propostas do meu amigo e coautor, o economista Robert Pollin, que trabalhou muitas dessas coisas em grandes detalhes. Jeffrey Sachs, outro excelente economista, usando modelos um tanto diferentes, chegou praticamente às mesmas conclusões. Essas são basicamente as linhas das propostas da Associação Internacional de Energia, de forma alguma uma organização radical, que nasceu das corporações de energia. Mas todos eles têm essencialmente o mesmo quadro.

Na verdade, existe até uma resolução do Congresso norte-americano, de autoria de Alexandria Ocasio-Cortez e Ed Markey, que descreve propostas muito avançadas, dentro da faixa de viabilidade concreta, nas condições de hoje. Estima-se que custem de 2% a 3% do PIB, o que é perfeitamente possível. Não só resolveriam a crise, mas criariam um futuro mais habitável, sem poluição, sem engarrafamentos, e com trabalho mais construtivo e produtivo, e melhores empregos. Tudo isso é possível. Mas existem barreiras sérias – as indústrias de combustíveis fósseis, os bancos, as outras instituições importantes, que são projetadas para maximizar o lucro e não se preocupam com mais nada. Afinal, esse era o slogan anunciado do período neoliberal – o pronunciamento do guru econômico Milton Friedman de que “as corporações não têm responsabilidade para com o público ou com a força de trabalho; sua responsabilidade total é maximizar o lucro para poucos”. Por razões de relações públicas, empresas de combustíveis fósseis como a ExxonMobil costumam se apresentar sensíveis e benevolentes, trabalhando dia e noite para o benefício do bem comum. É o que chamamos de greenwashing.

Alguns dos métodos mais amplamente discutidos para capturar e remover dióxido de carbono da atmosfera consumiriam grandes quantidades de biomassa produzida em centenas de milhões ou bilhões de hectares, ameaçando os ecossistemas e a produção de alimentos, principalmente em nações de baixa renda e baixas emissões. Um grupo de especialistas em ética e outros estudiosos escreveu recentemente que um “princípio fundamental” da justiça climática é que “as necessidades básicas e urgentes das pessoas e dos países pobres devem ser protegidas contra os efeitos das mudanças climáticas e das medidas tomadas para limitá-la”. Isso parece excluir claramente esses planos de “emita carbono agora, capture-o mais tarde”, e outros exemplos do que podemos chamar de “imperialismo de mitigação do clima”. Você acha que o mundo pode lidar com esse tipo de exploração, à medida que as temperaturas sobem? E o que você acha dessas propostas de bioenergia e captura de carbono?

É totalmente imoral, mas é uma prática padrão. Para onde vão os resíduos? Não vão para o seu quintal, vão para lugares como a Somália, que não podem se proteger. A União Europeia, por exemplo, tem despejado seus resíduos atômicos e outros tipos de poluição na costa da Somália, prejudicando as áreas de pesca e as indústrias locais. É horrível. O último relatório do IPCC pede o fim dos combustíveis fósseis. A esperança é que possamos evitar o pior e alcançar uma economia sustentável em algumas décadas. Se não fizermos isso, chegaremos a pontos de inflexão irreversíveis e as pessoas mais vulneráveis ​​– e menos responsáveis ​​pela crise – sofrerão primeiro e mais severamente as consequências. Pessoas que vivem nas planícies de Bangladesh, por exemplo, onde ciclones poderosos causam danos extraordinários. Pessoas que vivem na Índia, onde a temperatura pode passar de 49ºC no verão. Poderemos assistir o processo em que partes do mundo vão se tornando impossíveis para a vida.

Houve relatórios recentes de geocientistas israelenses críticos a seu governo, por este não levar em conta o efeito das políticas adota – entre elas, o desenvolvimento de novos campos de gás no Mediterrâneo. Uma de suas análises indicou que, dentro de algumas décadas, durante o verão, o Mediterrâneo estará atingindo o calor de uma jacuzzi e as planícies mais baixas serão inundadas. As pessoas ainda viverão em Jerusalém e Ramallah, mas as enchentes afetarão grande parte da população. Por que não mudar o curso para evitar isso?

A economia neoclássica subjacente a essas injustiças apoia-se em modelos econômicos de clima conhecidos como “modelos de avaliação integrados”. Resumem-se a análises de custo-benefício baseadas no chamado custo social do carbono. Com essas projeções, os economistas estão tentando jogar fora o direito das gerações futuras a uma vida decente. Não temos o direito de jogar com as vidas das pessoas no Sul da Ásia, na África ou com pessoas em comunidades vulneráveis, nos Estados Unidos. Você quer fazer análises como essa em seu seminário acadêmico? Ok, vá em frente. Mas não ouse traduzi-lo em política. Não se atreva a fazer isso. Há uma diferença notável entre os físicos e os economistas. Os físicos não dizem “ei, vamos tentar um experimento que pode destruir o mundo, porque seria interessante ver o que aconteceria”. Mas os economistas fazem isso. Com base nas teorias neoclássicas, eles instituíram uma grande revolução nos assuntos mundiais no início dos anos 1980, que começou com [o presidente norte-americano] Jimmy Carter e acelerou com Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Dado o poder dos Estados Unidos em comparação com o resto do mundo, o ataque neoliberal – um grande experimento de teoria econômica – teve um resultado devastador. Não precisava ser um gênio para descobrir. Seu lema era: “O Estado é o problema”. Isso não significa que você elimine decisões; significa apenas que você as transfere. As decisões ainda precisam ser tomadas. Se não forem tomadas pelo Estado, que está, ainda que de forma limitada, sob influência popular, serão tomadas por concentrações de poder privado, que não têm responsabilidade perante o público. E seguindo as instruções de Milton Friedman, esses grupos não têm nenhuma responsabilidade para com a sociedade que lhes deu o presente da incorporação. Eles têm apenas o imperativo de autoenriquecimento. Margaret Thatcher então aparece e diz que não existe sociedade, apenas indivíduos atomizados que, de alguma forma, estão se organizando no mercado. Claro, há um pequeno detalhe que ela não se preocupou em acrescentar: para os ricos e poderosos, há bastante sociedade. Organizações como a Câmara de Comércio, a Mesa Redonda de Negócios, ALEC, e muitas mais. Eles se reúnem, se defendem e assim por diante. Há muita sociedade para eles, mas não para o resto de nós. A maioria das pessoas tem que enfrentar a devastação do mercado. E, claro, os ricos não. As corporações contam com um Estado poderoso para salvá-las sempre que houver algum problema. Os ricos precisam ter um Estado poderoso – assim como seus poderes de polícia – para garantir que ninguém fique em seu caminho.

Onde você vê esperança?

Nos Jovens. Em setembro, houve uma “greve” climática internacional; centenas de milhares de jovens saíram para exigir o fim da destruição ambiental. Greta Thunberg recentemente pronunciou-se na reunião de Davos, entre os grandes e poderosos, e deu a eles um recado sóbrio sobre o que estão fazendo. “Como vocês ousam”, disse ela, “vocês roubaram meus sonhos e minha infância com suas palavras vazias.” Vocês nos traíram. Essas são palavras que deveriam ser gravadas na consciência de todos, especialmente as pessoas da minha geração que as traíram e continuam a trair a juventude e os países do mundo. Agora temos uma luta. Ela pode ser vencida, mas quanto mais atrasados estivermos, mais difícil será. Se tivéssemos resolvido isso há dez anos, o custo teria sido muito menor. Se os EUA não fossem o único país a recusar o Protocolo de Kyoto, teria sido muito mais fácil. Bem, quanto mais esperarmos, mais trairemos nossos filhos e netos. Essas são as escolhas. Eu não tenho muitos anos; muitos de vocês têm. A possibilidade de um futuro justo e sustentável existe e há muito que podemos fazer para chegar lá antes que seja tarde demais.

Edição 171, outubro 2021

Com Anselm Jappe

VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS DO CAPITALISMO

Novo livro de Anselm Jappe trama marxismo heterodoxo com psicanálise e sugere: ao reduzir tudo a valor, sistema apaga as nuances do mundo e forma sujeitos hipernarcísicos – mas solitários e impotentes. Aí pode estar brecha para desafiá-lo. A entrevista é de Romaric Godin, traduzida por Pedero Henrique de Mendonça Resende e publicada por OutrasPalavras /IHU. Anselm Jappe é representante, na França, da teoria crítica do valor, uma teoria crítica que relê Marx através da abstração induzida pela mercantilização do mundo. Esta crítica radical (no sentido de ir “à raiz”) do capitalismo, realizada no âmbito da revista alemã Krisis nos anos 1990 e 2000, distingue-se profundamente, entretanto, de outras escolas marxistas por sua rejeição de alguns elementos-chave como a centralidade absoluta da luta de classes. O autor havia apresentado essa teoria ao público por ocasião do lançamento de A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição. Nesta entrevista, o autor volta-se para alguns dos principais temas de sua teoria: para seu diálogo com a psicanálise ou com certos ensaístas críticos da sociedade neoliberal, para sua crítica do marxismo tradicional e para o futuro do capitalismo.

A sociedade autofágica explora em detalhe o tornar-se sujeito na sociedade capitalista. Você o concebe como continuação de As aventuras da mercadoria, que expôs para o público francês a teoria crítica do valor?

É evidentemente uma continuação, mas mais pessoal. A obra As aventuras da mercadoria apoiava-se principalmente em grandes teóricos da crítica do valor, notadamente naqueles que escreviam na revista alemã Krisis. Depois, uma parte destes últimos, notadamente Robert Kurz, fizeram esta teoria evoluir em direção a uma teoria da crítica do sujeito, que inclui uma crítica do Iluminismo. Eu desenvolvi paralelamente minhas próprias ideias, interessando-me igualmente pelo aporte da psicanálise. Neste sentido, eu fui particularmente marcado pela leitura de Christopher Lasch e de suas obras A cultura do narcisismo e O mínimo eu, mas também retomei as obras de Herbert Marcuse e Erich Fromm. A estas foram acrescentadas várias outras leituras importantes para a gênese do livro, como a do sociólogo Luc Boltanski, ou ainda de Dany-Robert Dufour, com quem eu não estou totalmente de acordo, mas cuja leitura me pareceu suficientemente estimulante para me dar vontade de lhe responder. É este percurso, que durou dez anos, que me permitiu construir A sociedade autofágica.

A teoria crítica do valor sublinha a abstração que o capitalismo, por natureza, impõe ao mundo. Este é o ponto de partida da sua exposição?

O que é importante compreender é que a teoria crítica do valor não é uma teoria puramente econômica. Ela se inscreve na continuidade do pensamento de Karl Marx, que empreende uma crítica da economia política e não a elaboração de uma teoria econômica particular. Mercadoria, trabalho abstrato, valor e dinheiro não são, em Marx, categorias puramente econômicas, mas categorias sociais que formam todas as maneiras de agir e de pensar na sociedade. Isto não está sempre explícito em Marx, mas é o que se pode extrair de seus escritos. É por isso que eu considero o valor um “fato social total”, no sentido que o entende Marcel Mauss. Essas categorias são, como diria Emmanuel Kant, formas a priori, formas vazias que são como moldes onde tudo deve entrar. Assim, na sociedade capitalista, tudo toma a forma de uma pura quantidade de dinheiro e, para além disso, de uma pura quantidade em geral. Isto vai, então, muito além do mero fato econômico. Essas categorias não são, entretanto, fatos antropológicos que existiriam em todos os lugares e sempre. São formas que progressivamente se impõem aos outros domínios da vida, notadamente às relações sociais. Vê-se isto com a emergência do “eu quantificado” no quadro da mensuração, por exemplo, das performances esportivas. A quantificação monetária é uma das formas mais visíveis da sociedade capitalista, mas não é a única.

A primeira parte do seu livro descreve a história do sujeito confrontada a essa abstração imposta pelo capitalismo.

Sim, mas é importante compreender a natureza desta abstração. A abstração, enquanto tal, é um fenômeno mental que é, evidentemente, um auxiliar para apreender o real. Como não se pode sempre falar de uma árvore particular, então se recorreu a um conceito geral de árvore. Mas trata-se, aqui, de outra coisa. Trata-se de uma abstração, o valor, que pode assumir não importa qual forma real pela quantificação. Toda realidade pode ser reduzida a uma quantidade de valor. Ela torna-se, então, uma “abstração real”, conceito que não está explicitamente presente em Marx, mas que foi desenvolvido no século XX. E isso tem impactos muito concretos. Um brinquedo ou uma bomba tornam-se assim apenas quantidades de valor abstrato, e a decisão de interromper ou de continuar sua produção depende da quantidade de mais-valor que esses objetos contêm. Nós não estamos mais aqui na visão marxista clássica de uma dialética entre base e superestrutura, na qual a economia impunha-se e o resto se adaptava a ela. Aqui, trata-se de uma forma geral abstrata, o valor, que se expressa em todos os níveis. Eu gosto, dessa maneira, de citar o linguista alemão Eske Bockelmann que sublinha que no século XVII a música passou de uma medida qualitativa para uma medida quantitativa. E esta abstração se exprime, no mesmo momento, na nova física de Galileu ou na nova epistemologia de Descartes.

É aqui que toma forma um dos elementos-chave do seu pensamento, a noção de fetichismo. Fundado pelo homem, o valor dita sua lei ao homem. Um conceito que, segundo você, permite apreender a natureza do capitalismo para além das críticas habituais.

No conceito marxiano de fetichismo, que resulta do que acabo de dizer, o que porta o valor não tem nenhuma importância. Um brinquedo ou uma bomba são apenas formas passageiras de outra forma de realidade invisível, a quantidade de trabalho abstrato, quer dizer, o valor. Uma vez compreendido isto, pode-se ir além da simples visão moralista da sociedade capitalista. O produtor de bombas produz bombas não porque ele é insensível moralmente, mas porque ele é submetido a essa lógica fetichista. A imoralidade pode ser acrescentada, mas ela não é o motor. E, de resto, na sociedade capitalista, esse fetichismo atinge também os operários. Aqueles que fabricam bombas não querem perder seus empregos. Todos participam dessa realidade, pois todos estão submetidos ao fetichismo da mercadoria e do valor. Não é necessário, entretanto, limitar-se a uma visão muito sistêmica da realidade. Existe também um nível de realidade feito de ideologia e de mentalidades. Os indivíduos não são marionetes. Para se impor, o capitalismo deve passar pelos sistemas de motivação e de gratificação. É a cenoura agitada diante do asno. Essas motivações são apenas secundárias, elas podem sempre ser substituídas por outras. O que é essencial para o sistema é a existência de uma estrutura psíquica específica. E é aqui que entra em cena a questão do narcisismo do sujeito.

A escola freudomarxista havia tentado identificar e combater esta estrutura psíquica, mas você afirma que suas análises não são mais pertinentes hoje.

A primeira geração dos marxistas, aquela da II Internacional (1889-1914), desenvolveu um paradigma economicista. Todas as pessoas estariam supostamente agindo apenas por seus interesses econômicos. Mas esta visão não chegou a explicar porque milhões de operários massacraram-se com entusiasmo durante a Primeira Guerra Mundial, nem porque eles se voltaram, em seguida, para os movimentos fascistas e autoritários.

Foi então que marxistas como Wilhelm Reich ou Erich Fromm salientaram a importância de estruturas psíquicas no interior do capitalismo, utilizando a teoria de Freud, até ali rejeitada pela esquerda como “burguesa”. Esse freudomarxismo explicou como as estruturas autoritárias podiam se reproduzir pelo complexo de Édipo. Em Freud, esse complexo é percebido como uma garantia de civilização, mas os freudomarxistas fizeram dele um fator de dominação das estruturas familiares. Nos anos 1950 e 1960, pensadores como Herbert Marcuse desenvolveram ainda a ideia de que a libertação não passava somente pela política, mas também pela libertação dos constrangimentos familiares e sexuais. Esse pensamento teve muito sucesso e conduziu a mudanças de costumes duradouras.A questão que eu me propus no meu livro foi a de saber se essa mudança representou, no final das contas, um progresso. Sem partilhar as visões de autores como Lasch e Dufour, que podem conduzir a consequências reacionárias, deve-se levar seus diagnósticos críticos a sério. Pois, se, por um lado, essa evolução para a liberdade individual é evidentemente positiva, por outro lado, o diabo, tendo saído pela porta, entrou novamente pela janela. É preciso constatar que o indivíduo que resultou desta evolução é fundamentalmente ainda mais fraco, justamente por causa da fraqueza de seu superego. Ele é presa das pulsões do consumo de mercadorias. E, de fato, assiste-se a uma grande reversão. O “partido da desordem”, anteriormente aquele dos revolucionários, tornou-se o do sistema capitalista.

Esse sujeito “ideal” para a mercadoria corresponde a uma nova fase da história capitalista, a da emergência do neoliberalismo. Entretanto, neste livro como nos precedentes, você adverte contra uma crítica do capitalismo que seria reduzida unicamente à sua forma neoliberal.

A forma neoliberal representa, efetivamente, a forma mais recente e uma das mais hedionda do capitalismo. Mas ela não constitui algo fundamentalmente diferente da fase precedente, aquela dos “trinta anos Gloriosos” e do capitalismo dos monopólios. No entanto, hoje, na esfera política, as críticas do capitalismo mais difundidas são somente críticas do capitalismo neoliberal e, quando lhe perguntamos a elas o que entendem por sociedade não capitalista, elas propõem geralmente uma visão idealista dos “trinta gloriosos”. Da minha parte, eu não sou nostálgico da sociedade que generalizou a linha de montagem, uma das piores abjeções da história humana, e na qual a mercantilização da natureza era objeto de um amplo consenso. Eu não acredito que seja necessário idealizar o fato de que o direito à escravidão fosse um pouco melhor repartido do que hoje, como faz, por exemplo, Bourdieu.

E você sublinha, aliás, que essa crítica reduzida do neoliberalismo pode conduzir a uma nostalgia de certa forma de autoritarismo.

Eu sou muito cético quanto à ideia desenvolvida por Dany-Robert Dufour segundo a qual o neoliberalismo seria uma “ruptura civilizacional”. Parece-me difícil opor, como ele faz, um sujeito fundamentalmente fraco atual a um sujeito supostamente forte que teria existido até os anos 1970. Alguns poderiam ter uma nostalgia desse suposto sujeito forte, paternalista. Para mim, o sujeito neoliberal é muito mais uma nova etapa de um processo de enfraquecimento que começou bem antes. Não se pode usar as misérias de ontem contra as misérias de hoje. A “ruptura civilizacional” situa-se bem antes do neoliberalismo.

Nesse caso, contudo, por que o sujeito neoliberal, como você mostra, está sujeito ao narcisismo, enquanto o sujeito da “antiga forma de capitalismo” estava mais submetido a uma neurose clássica, como havia identificado o freudomarxismo? Não existe aí uma forma de “ruptura”?

O que eu tento mostrar é que o capitalismo nasce efetivamente entre o fim da Idade Média e o século XVII. Ele nasce com essa tendência narcísica que faz parte da sua estrutura de base, pois existe no valor uma forma de renegar o mundo. É por isso que se pode destacar já no cogito de Descartes essa forte tendência narcísica. Mas eu penso que o capitalismo estava presente enquanto potência no sentido aristotélico e que ele coexistiu com formas sociais mais antigas contra as quais durante muito tempo lutou, como o feudalismo ou o paternalismo. Levou-se séculos para vencer o entulho de outras épocas e, para retomar um termo hegeliano, coincidir com seu próprio conceito.

Com as crises dos anos 1970 o capitalismo atingiu, então, essa forma mais próxima do seu conceito. E o conceito é precisamente o de uma indiferença em relação ao mundo, particularmente perigosa para a humanidade e o planeta.

Marx sublinha que o valor é o produto do trabalho abstrato. Para ele, toda atividade produtiva no capitalismo tem, com efeito, duas faces. A primeira é que ela produz alguma coisa concreta que satisfaz necessidades. A segunda é que toda atividade necessita de um dispêndio de energia que se pode medir pelo tempo. Está aí a fonte do valor, e assim toda atividade se equivale, não tem diferença qualitativa, mas unicamente diferenças de quantidade de tempo dispendido, portanto, de trabalho abstrato. Ora, o capitalismo não se interessa senão pelo mais-valor, ou, dito de outro modo, pelo valor superior ao inicialmente investido. Ele se interessa, então, somente pela quantidade de valor criado por cada atividade. E, em face do valor, existe uma igualização do mundo. Todas as coisas se equivalem e são apenas porções mais ou menos grandes da mesma substância. Todos os objetos e serviços têm que justificar sua existência não pela satisfação de uma necessidade ou de um desejo humano, mas pela quantidade suficiente de mais-valor que eles representam. Antes mesmo da luta de classes, da injustiça ou das desigualdades, encontra-se o que eu chamo – para retomar as palavras de Joseph Conrad – “o coração das trevas” do capitalismo: esta indiferença total para com o conteúdo e para com o que é próprio do ser humano. É uma diferença fundamental com as sociedades pré-capitalistas, as quais, quaisquer que tenham sido seus aspectos desagradáveis, não tinham essa dinâmica cega que consiste em uma acumulação sem finalidade de alguma coisa que não tem conteúdo próprio.

Esta cegueira é precisamente aquela do sujeito narcísico, que é o sujeito próprio do capitalismo.

Segundo a leitura de Freud que faz Christopher Lasch, o narcisismo se forma durante a primeira infância, antes do complexo de Édipo. A criança quer, então, evitar a separação com o mundo circundante e não quer reconhecer que se é sempre dependente de alguma coisa mais forte do que nós. Ela compensa sua impotência real com uma onipotência imaginária e mágica que passa por um desejo de fusão com o mundo exterior. O narcisismo, tal como é comumente entendido, não é senão uma forma do narcisismo freudiano. Mas, em realidade, todo mundo tem um componente narcísico e o que eu estou expondo é que a forma atual do capitalismo conduz menos a uma extensão do número de narcisistas do que para um forte aumento da “taxa de narcisismo” na população inteira. O narcísico não interiorizou a existência do mundo exterior, ele passa ao largo, ele não o conhece. Ele conhece apenas seu eu, como pura função da existência, e é por isso que eu considero que o cogito de Descartes era já extraordinariamente similar ao narcisismo. O mundo exterior não é senão uma extensão de seu próprio eu, que ele pode manipular à vontade e dispor segundo suas próprias fantasias. O narcísico não pode estabelecer verdadeiras relações de amizade ou de amor, porque, para ele, todos os outros são intercambiáveis. E é aqui que é incorporada a noção de valor em Marx. Pois mesmo que para o valor todos os objetos e as pessoas sejam intercambiáveis e não sejam senão encarnações temporárias de uma “substância” única, embora imaginária, o mundo real não é para o narcísico senão uma vaga hipótese em que nada tem autonomia própria. O narcísico pode se adaptar a todas as circunstâncias, a todos os empregos, a todas as pessoas… Compreende-se que o indivíduo fordista dos anos pós-guerra, com seus valores, sua moral, sua poupança, tenha se tornado disfuncional com a ampliação da esfera mercantil.

Como você evocou, o “partido da desordem” tornou-se aquele do capitalismo, notadamente pela glorificação da flexibilidade e da mudança permanente. O que é chamado comumente de [contra-]“reformas”, que começou pela esfera econômica, notadamente o mercado de trabalho, tende hoje a se alargar para o resto da sociedade. São elas, desde então, um sintoma dessa vontade de tornar o sujeito mais narcísico?

Sim, o que é demandado hoje, antes de tudo, é a flexibilidade. É preciso estar pronto para mudar de trabalho, de parceiros, até mesmo de sexo. Tudo o que é fixo é considerado como mau. Isto não significa que todo mundo seja tão flexível assim, mas é uma pressão social constante.

Você sublinha o quanto esta pressão do capitalismo atual agrava a crise narcísica do sujeito, provocando desastres psíquicos que chegam até aos assassinatos em massa. Como se exerce esta pressão?

A abstração dominante tem necessidade de alguma coisa de substancial sobre a qual se enxertar para se tornar real. No início do processo capitalista, essa forma de organização concernia apenas a certos setores da sociedade e a certos países. Balzac descreve em As ilusões perdidas um mundo parisiense tornado narcísico com a irrupção do capitalismo. Mas esses valores, tornados hoje dominantes, seriam, naquele momento, marginais. Segui-los seria também fruto de uma escolha, de uma decisão amadurecida. Era possível permanecer à margem e rejeitá-los. Valores como autonomia, flexibilidade, espírito de iniciativa, que eram anteriormente necessários para se tornar ministro, são doravante necessários para obter qualquer emprego. É um dos aspectos mais desprezíveis da sociedade moderna. A escolha não é mais possível. Ora, esta exigência pesa sobre os indivíduos. Tanto que eles acreditam que o curso de suas vidas não depende senão deles, que eles são os artesãos do próprio destino. Ora, o indivíduo contemporâneo não tem realmente controle sobre nada. Está aí uma forma suplementar de culpabilidade. Doravante não se tem mais a desculpa de ser uma mulher, um provinciano, um proletário. Se não somos bem sucedidos, é nossa própria culpa. Os indivíduos tornam-se, então, sobrecarregados de expectativas geralmente irrealistas em relação a si mesmos. E isto cria sofrimentos reais.Nas sociedades mais tradicionais e até na sociedade fordista, o indivíduo podia se revoltar contra uma ordem exterior exploradora. O operário podia cruzar os braços para desafiar o contramestre, o empregado doméstico podia roubar seu empregador… Atualmente, não se pode mais se revoltar contra uma ordem exterior, mas somente em relação a si mesmo, em relação ao seu próprio gozo. Acaba que, a partir de então, odeia-se a si mesmo. O superego interior é mais punitivo do que o superego exterior. Não nos terá sido, portanto, muito útil nos desvencilhar do complexo de Édipo, pois estamos agora entregues a um superego ainda mais implacável e difícil de nomear e combater.

Nesta luta consigo mesmo a tecnologia não é, para você – e é ainda uma diferença importante em relação aos marxistas tradicionais –, um meio para a libertação.

O narcisismo está em associação com a tecnologia. Ela é o vetor da ilusão de onipotência. Ela ajuda o indivíduo a permanecer em uma forma constante de adolescência que é, de resto, uma noção relativamente moderna. Como resumia perfeitamente Yves Saint-Laurent, nossa época é a primeira em que as mães querem se parecer com suas filhas e não o inverso. Pela primeira vez na História crescer não é percebido como uma vantagem. Assiste-se a uma recusa da idade e, portanto, da maturação. A flexibilidade abole a maturação da personalidade.

No final do seu livro você propõe a abolição do capitalismo como a única saída. Mas como realizar esta abolição quando justamente o sujeito narcísico aparece como o principal guardião desta ordem capitalista destruidora?

Como eu já indiquei, a questão é menos a de um indivíduo plenamente narcísico do que a de uma “taxa” global de narcisismo que pode mudar. É possível reconhecê-lo e combatê-lo, observando-se a si mesmo com certa distância. A sociedade está cheia de tentativas de recuperar as formas de ajuda mútua. Muitas pessoas não estão prontas para viver como os tubarões do mercado financeiro que aparecem nos filmes americanos. Nem toda forma de consciência desapareceu. A lógica abstrata depara-se sempre com o vivo e com o sensível. Esta luta é reencontrada precisamente nos sofrimentos do indivíduo. Esta imagem desenvolvida pelos liberais, de um indivíduo feliz porque ele apenas maximiza seu benefício pessoal, não corresponde, evidentemente, a nada de real. A ditadura econômica é tão contrária às nossas necessidades e aos nossos desejos que estamos em conflito permanente com ela. As pessoas não seguem uma lógica única nos diferentes aspectos de suas vidas. Pode-se ter uma carreia pessoal e se inquietar, ao mesmo tempo, com a construção de um depósito de lixo perto de sua casa, pode-se também sofrer fraturas na sua vida, tomar consciência de certos fatos… Constata-se, por exemplo, uma consciência crescente em relação aos pesticidas. Eu não sou, portanto, forçosamente pessimista.

Em contrapartida, você não espera nada das formas de luta postas em prática pelo marxismo tradicional.

Eu não penso que se possa ter uma linha de combate com um grupo social no qual apostar para sair do capitalismo, como se podia acreditar em períodos anteriores, notadamente no que concerne ao proletariado. Os migrantes que chegam à Europa geralmente sonham se tornar burgueses europeus. Seu lugar na sociedade não determina sua reação à sociedade atual, para mim, porque as catástrofes ecológicas que são consequências da essência do capitalismo afetam todo mundo. O marxismo tradicional concentra sua atenção na distribuição do dinheiro e do valor, sem recolocar em questão a existência destes dados. Historicamente, esta crítica se concentrou na esfera financeira. É o que retomam hoje os populistas. Evidentemente, eu acho o mundo financeiro pouco simpático, mas a financeirização da economia é apenas uma consequência da crise do capitalismo, não sua causa. É ilusório pensar que se resolveria todos os problemas eliminando um cardume de tubarões do mercado financeiro que colaboram com os políticos. Em contrapartida, existe uma ditadura da economia sobre a sociedade, e isso é para mim o conceito central. Esta ditadura nem sempre é fácil de identificar. Às vezes é bastante fácil: quando se quer construir uma mina de ouro em um local protegido, por exemplo, ou no caso do projeto do aeroporto de Notre-Dame-des-Landes. Mas outras vezes é mais difícil, como quando se inventam dispositivos inúteis para ocupar o espírito das crianças. Mas meu ponto de vista é de ter uma desconfiança sistemática em face da economia. Por exemplo, existe atualmente uma polêmica em torno dos contadores [de consumo de energia] Linky: alguns advertem sobre os riscos potenciais, outros negam sua existência. Eu teria a tendência, da minha parte, de pensar que se uma companhia quer instalá-los, é forçosamente por má razão. Não existe pressuposição de inocência para quem gere o processo econômico e técnico. E se boas decisões são tomadas, como por exemplo a interdição de um pesticida, isso será sempre contra sua vontade, e geralmente muito tarde.

Nesse quadro, deve-se novamente colocar a questão, como antes fez Rosa Luxemburgo: reforma ou revolução?

A questão me parece ultrapassada. Hoje uma revolução sob a forma de uma “tomada do palácio de Inverno” parece impossível e o reformismo sempre reforçou o poder existente. As verdadeiras reformas, hoje, seriam de fato já uma revolução. Pois o sistema capitalista é incapaz de se reformar. Quando se observam os compromissos assumidos quanto ao clima ou à biodiversidade nos anos 1990, que já eram insuficientes, eles não foram respeitados. E é a mesma coisa no domínio econômico: depois da crise de 2008 tomaram-se medidas cosméticas contra os excessos do mercado financeiro, e rapidamente elas foram abandonadas. Em uma lógica da concorrência, todos os atores desconfiam uns dos outros. Caso se chegasse a um acordo entre os atores do capitalismo, não se estaria mais no capitalismo. O que define o capitalismo é precisamente a concorrência entre atores anônimos que nada conecta. O que é mais razoável, então, é abolir o capitalismo.

Para você o capitalismo corre, de toda maneira, para sua perdição…

O marxismo tradicional pensou que se a insatisfação material do proletariado não o levasse a derrubar o capitalismo, este último perduraria. O que eu defendo é o contrário: esta contradição que o capitalismo porta inicialmente no seu seio, este esgotamento da fonte do valor com a substituição do trabalho pela tecnologia ao longo dos últimos anos, tomou tal amplitude que o capitalismo não sobrevive senão com muletas como a financeirização. O sistema está em face de seus limites internos, ao que se acrescentam limites externos como a crise ecológica. Ele serra o galho sobre o qual está assentado. O capitalismo sabota a si mesmo. Ele não resolve nenhum dos seus problemas fundamentais. O capitalismo está em vias de esgotar-se e isto impulsiona para a criação de alternativas. Pois uma sociedade fundada no valor é uma sociedade inviável no plano humano. Existem mil campos de batalha contra essa lógica econômica da valorização sempre mais evanescente e que atinge agora domínios como o serviço para pessoas idosas ou para crianças. Progressivamente, é necessário subtrair cada vez mais terreno do mercado e do Estado. Eu penso que não se chegará a nada, todavia, com a política, as leis e os parlamentos.

Com Rutger Bregman

'A ESPERANÇA NÃO ESTÁ NA INEVITABILIDADE DA MUDANÇA, MAS EM SUA POSSIBLIDADE'

Rutger Bregman, jovem historiador holandês, nascido em 1988, tem fama e cara de provocador. Com seu livro Utopia para realistas (2014) desafiou a cátedra ao propor ideias – então – revolucionárias como a Renda Básica Universal, uma semana de trabalho reduzida e um mundo sem fronteiras. Seu novo livro também é provocativo, mas por sua visão bondosa e sem cinismo sobre as possibilidades dos seres humanos de ser solidários, pensar comunitariamente e se adaptar. Em Humanidade: uma história otimista do homem, apresenta exemplos originais e eloquentes sobre como a humanidade está mais inclinada à bondade do que à maldade, e como algumas histórias foram distorcidas para se encaixar na ideia de que o homem é o lobo do homem ou que apenas uma pequena camada separa a civilização da barbárie. A entrevista é de Paula Escobar, publicada por La Tercera. A tradução é do Cepat /IHU

Por que decidiu escrever esse livro e desafiar a ideia de que a natureza humana é intrinsecamente má?

Comecei a notar que muitos cientistas de disciplinas muito diferentes estavam se direcionando para uma nova visão mais esperançosa da natureza humana. A segunda razão é que quando estava na turnê de Utopia para realistas, o que ouvi dos leitores, mais de uma vez, foi “Rutger, todas as suas ideias utópicas soam realmente interessantes e talvez funcionem em escala local, mas não podem ser ampliadas, porque os humanos não são justos, os humanos são simplesmente egoístas”. E comecei a perceber que muitas das ideias que me entusiasmam – não só a Renda Básica Universal, mas também a democracia participativa, por exemplo – se baseiam em uma visão fundamentalmente diferente da natureza humana.

Em seu livro, apresenta casos realmente eficazes para afirmar seus pontos de vista a esse respeito. Essa visão positiva foi alterada pela pandemia?

No início da pandemia, alguns de meus amigos me disseram: “Ainda acredita em seus sonhos utópicos sobre a bondade humana? Não está vendo as notícias? As pessoas estão acumulando papel higiênico”. E, então, deixa-me ser claro: acumular papel higiênico não é bom. Mas penso que quando tomamos um pouco de distância, podemos ver que milhares de milhões de pessoas em todo o mundo ajustaram radicalmente seu estilo de vida para deter a propagação do vírus. Penso que os sacrifícios que muitas pessoas comuns fizeram foram extraordinários. E, claro, você sempre pode destacar incidentes e exceções e pessoas que não seguem as regras, etc. Contudo, mesmo nesses casos, não acredito que seja o egoísmo o que impulsiona as pessoas, mas diferentes crenças e ideologias. Por exemplo, isso ficou particularmente claro nos Estados Unidos, onde o uso de máscara se tornou um símbolo de identidade política, um símbolo de progressismo. Você a usou porque era leal a seus amigos e companheiros de trabalho, e isso é muito humano, ser leal a seu grupo. Grande parte do livro trata, obviamente, dessa tendência humana, que é uma de nossas grandes forças e uma de nossas fragilidades. E eu vi pouca, bem pouca evidência da teoria “do verniz”, você já conhece, esta noção de que a nossa civilização é apenas um fino verniz, mas o oposto.

Como viu a pandemia?

No primeiro capítulo do livro, escrevo como as pessoas respondem aos desastres naturais, e não é uma surpresa que mostramos nosso lado melhor. É uma explosão de cooperação. Nos primeiros meses, a Covid foi um pouco como um terremoto: uma explosão de solidariedade, pessoas ajudando a seus vizinhos, etc. Mas o tempo passa e as pessoas se acostumam com a nova situação, e depois isso se torna uma prova de nossa resistência. Isso tornou as coisas mais complicadas. Outra coisa que realmente complicou foi que esse vírus foi um ataque à nossa própria humanidade.

Porquê?

Porque é humano querer se conectar, tocar, sentir, estar perto um do outro, certo? Então, basicamente tivemos que negar nossa própria natureza humana. E foi isso que fez com que tudo fosse tão, tão incrivelmente difícil. Mas, em geral, quando olhamos de um pouco mais longe, penso que podemos dizer que a maioria dos cidadãos fez um grande trabalho de adaptação e os cientistas foram incríveis. São principalmente os líderes políticos que foram muito decepcionantes. Mas não há nada de novo nisso. As ideias da margem se movem para o centro

Algumas das ideias que você apresentou em ‘Utopia para realistas’ se aproximaram. Por exemplo, a Renda Básica Universal, pois foi repassado dinheiro de forma sem precedentes por causa da pandemia.

Publiquei Utopia para realistas em holandês em 2014, e naquele momento as ideias do livro eram consideradas completamente ridículas. Não teve muita atenção. A maioria das pessoas nem sequer sabia o que era a renda básica. Muitas pessoas aqui na Holanda pensaram que eu estava falando do salário base dos banqueiros. Então, foi extraordinário presenciar como essa ideia aparentemente louca se tornou cada vez mais realista. Também falo desse processo no livro: como as ideias utópicas podem se tornar realidade e como as coisas que primeiro são descartadas como irracionais, irreais e impossíveis podem se mover das margens para o centro. Inclusive, hoje, existem pessoas que criticam a Renda Básica Universal por não ser suficientemente radical. O próprio fato de que a administração Trump – e não só ela – começou a distribuir dinheiro para as pessoas... É o que Milton Friedman chamava “dinheiro de helicópteros”. Isso em si mesmo é politicamente muito significativo, porque durante anos e anos nos disseram que não podemos nos permitir isso, nem aquilo, etc. Mas como disse John Maynard Keynes, se podemos fazer, podemos pagar... Fizeram uma lavagem cerebral em nós, durante tanto tempo, de que o déficit é a única coisa que importa. A geração jovem está preocupada com o déficit ambiental, o green deal, é uma maneira muito diferente de pensar.

O que acontece com a responsabilidade fiscal?

É claro, sempre há limites, como disse. A inflação é um limite real, em algum momento. Mas acredito que realmente vimos uma expansão das possibilidades políticas nos últimos 5 a 10 anos. E é muito oportuno e muito necessário também, porque a realidade também se tornou muito mais radical. Devo admitir que 10 anos atrás não estava tão preocupado com as mudanças climáticas. Pensei que eram reais, não era um negacionista do clima, mas era uma das 10 coisas em minha agenda política e não estava na parte superior da lista como o maior desafio de minha geração. Agora, é completamente diferente.

Como a Renda Básica Universal dialoga com a economia pós-pandemia?

Você pode olhar para ela a partir de vários pontos de vista: se nos ajudará a combater a pobreza, inclusive erradicar a pobreza, se ajudará as pessoas a encontrar empregos diferentes. Existem evidências disso em muitos âmbitos de que é uma política muito promissora, em muitas dimensões. Você também pode ver o seu efeito em nossa psique... E um dos efeitos mais importantes de uma renda básica é que dará muito mais poder de negociação às pessoas que realizam os trabalhos realmente importantes. No início da pandemia, países do mundo todo começaram a elaborar essas listas dos trabalhadores essenciais que mereciam acesso a serviços de cuidado infantil, etc. Onde estavam os banqueiros ou os gerentes? Não estavam nessas listas. Sim, os encanadores, cuidadores, professores, enfermeiras, etc. Agora, todas essas pessoas, quando tiverem uma renda básica, terão muito mais poder de negociação. E então, a longo prazo, uma sociedade de renda básica poderia ser uma na qual os salários estejam muito mais alinhados com o valor social que se oferece para a sociedade. Hoje em dia, parece ser o contrário... Quanto mais você recebe, menos contribui. Muitas vezes, esse é o caso. Eu diria que uma renda básica nos obriga, ou ao menos nos ajuda, a nos fazermos essa pergunta fundamental, mais uma vez: Quem são os verdadeiros criadores de riqueza? Sobre os ombros de quem estamos realmente? Quem são os que apoiam todos nós? Essa é a forma como eu tento ver essas coisas, e é uma maneira, a tudo isso, muito old fashion... Os economistas do século XIX eram muito diferentes dos economistas de hoje. Embora estejam melhorando, devo dizer.

Em que sentido?

Como disse, certa vez, John Maynard Keynes, “um bom economista é também um estadista, é um filósofo, trata-se de moralidade”. A economia deveria ter relação com o significado da vida. Trata-se do que é valioso e das decisões que tomamos. A economia é a ciência da tomada de decisões. E penso que não é possível tomar decisões, caso não se tenha uma visão fundamental do que é valioso. E acredito que se esqueceram dessas importantes perguntas. Disseram: “Vamos a ver o que o mercado faz”. Mas os mercados nunca são neutros. Os preços nunca surgem no vazio. Sempre surgem em um contexto político e sempre há opções por trás disso. E essas escolhas podem ser contestadas. Não temos que concordar com essas escolhas. E acredito que em uma democracia adequada, podemos discutir tudo.

Em ‘Utopia’, você também defendeu uma semana de trabalho de 15 horas. Ainda considera que é uma boa ideia?

Acho que nisso mudei um pouco de opinião. Existem algumas coisas com as quais temos que lidar. E a primeira é, obviamente, as mudanças climáticas, o aquecimento global. E penso que se torna cada vez mais descabido falar em uma semana de trabalho de 15 horas, quando há tanto, tanto trabalho a ser feito. O que precisamos é falar sobre o fato de tantas pessoas estarem realizando um trabalho completamente inútil ou um trabalho que, na realidade, está piorando o problema. Penso que uma das maiores tragédias de nosso tempo é termos tantas pessoas, jovens que são realmente brilhantes, com currículos maravilhosos, que foram para grandes universidades da Ivy League nos Estados Unidos, mas que possuem um trabalho inútil que, na realidade, destrói a riqueza em vez de criá-la. Um exemplo simples são aquelas pessoas no Vale do Silício que desenvolvem todos esses aplicativos ou algoritmos tolos, para que outros cliquem mais nos anúncios, para que compremos coisas que não precisamos.

Mas também criam riqueza no Vale do Silício, concorda?

Criam riqueza para suas empresas. Note, imagine que alguém é um pirata no século XVII. É um trabalho difícil ser pirata, é preciso ir para a escola de piratas, onde ensinam a queimar, saquear, estuprar, etc. Investiram muito no capital pirata humano dessa pessoa. Então, ela consegue um trabalho bem remunerado em um dos melhores barcos piratas do mundo. E tem uma carreira maravilhosa matando pessoas, torturando e estuprando, etc., e gera muita riqueza para sua empresa, certo? E a empresa, muito satisfeita, diz: “Olha, contribuímos muito com o PIB, estamos fazendo um trabalho maravilhoso”. E depois alguém vem e diz: “Isso é realmente ruim, você está matando outras pessoas, etc. É preciso abolir a pirataria”. E a pessoa diz: “Não, não, não, não. Não é possível abolir a pirataria, isso custará muitos postos de trabalho e destruirá todo esse capital humano”.

O que equivale a isso?

Penso que, deixando de fora a pilhagem e o estupro, etc., muitos banqueiros modernos estão em uma situação semelhante. Dizem: “Trabalhamos tão duro para conseguir esse trabalho e estamos contribuindo muito com o PIB”. De fato, precisamos fazer um debate mais fundamental sobre quem são os verdadeiros geradores de riqueza. Isso é uma verdadeira riqueza? Ou é apenas a busca de rendas? É só um jogo de soma zero? Ou, pior do que isso, está tirando a riqueza dos outros? Algo pode ser benéfico para você, mas não benéfico para a sociedade. Penso que essa é a perspectiva que devemos adotar. Quem são os verdadeiros criadores de riqueza que estão jogando o jogo de soma positiva, do qual todos nós nos beneficiamos?

Finalmente, qual é a responsabilidade dos meios de comunicação nessa ideia tão disseminada de que a natureza humana é intrinsecamente má?

Sempre gostei de fazer uma distinção entre jornalismo e notícias. Precisamos do jornalismo, é incrivelmente importante e um dos pilares da democracia. Precisamos de jornalistas com a coragem de dizer a verdade ao poder, precisamos de jornalistas que nos ajudem a ter perspectiva e nos concentrar nas forças estruturais que governam nossas vidas. Precisamos de jornalistas que nos deem esperança, que falem do que vai bem, e que não falem somente dos problemas, mas que também se concentrem nas pessoas que estão trabalhando com soluções... Não estou falando que deve haver mais notícias “positivas”, não falo de otimismo. Aqui, você tem que fazer uma distinção entre otimismo e esperança. O otimismo é uma forma de complacência, mas a esperança trata da possibilidade de mudança. Não é a inevitabilidade da mudança, é a possiblidade de mudança. Então, isso é jornalismo. Mas, por outro lado, você tem as notícias e eu as defino como o foco implacável no que está acontecendo hoje, em incidentes, em coisas sensacionais e, muitas vezes, em coisas negativas. Isso atrai muitos olhos, conecta-se com uma parte de nossa psique ou trabalha com uma parte de nosso cérebro que inclusive está presa a esse viés de negatividade. E todas essas notícias que as pessoas consomem diariamente não ajudam a entender o mundo, não são boas. Desconecte-se, não as consuma, não as ofereça para seus filhos. Ofereça a eles um jornalismo construtivo. Assine um jornal de alta qualidade e o leia.

Com Alberto Acosta

'NÃO É MUDANÇA CLIMÁTICA, É COLAPSO CLIMÁTICO'

Não é possível falar sobre o processo constituinte no Equador e os direitos da natureza, incluídos em sua Constituição, sem mencionar Alberto Acosta (Quito, 1948), presidente da Assembleia Constituinte e um dos ideólogos da revolução cidadã. Foi ministro de Energia e Minas, durante o primeiro governo de Rafael Correa, mas renunciou para participar da assembleia constituinte. Pouco depois da conclusão da Assembleia, afastou-se do correísmo por sua defesa dos direitos da natureza, que se chocavam com as políticas extrativistas do governo e por sua posição radicalmente democrática em confronto com as práticas do governante. Há anos, dedica-se a recuperar a memória dos povos originários, a constituir outra relação dos humanos com a natureza, que não esteja baseada no utilitarismo e na mercantilização, e a lutar pelos direitos da natureza. Para ele, a abordagem do desenvolvimento sustentável não serve, pois considera que ficou antiquada. Aposta em uma visão biocêntrica que permita superar o Antropoceno. Para Acosta, não pode haver justiça ecológica sem justiça social e vice-versa. “Não é mudança climática, é colapso climático. Mudanças climáticas ocorreram ao longo da história. Isso é um colapso próprio do Capitaloceno, Faloceno e Racismoceno”. A entrevista é de Queralt Castillo Cerezuela, publicada por Público de Madrid. A tradução é do Cepat /IHU

Você é uma referência dos direitos da natureza. Um dos responsáveis por sua inclusão na Constituição de 2008. Qual é a origem?

A cosmovisão dos povos originários. Quando eles usam o conceito de Mãe Terra, não fazem isso como metáfora. Para eles, é uma realidade. Essa cosmovisão era a que estava em jogo em 2007. Nos anos 1990, o movimento indígena se organizou, ganhou força e emergiu como sujeito político. Colocaram as cartas sobre a mesa: Estados plurinacionais, direitos da natureza, o ‘bem viver’, os direitos coletivos, etc. Ensinam-nos que existe outra forma de entender o mundo. Em paralelo, no Equador, nas últimas décadas, haviam ocorrido processos de defesa da natureza contra atividades extrativistas. Nesse cenário, os movimentos ambientais e ecológicos se consolidaram. É feita uma distinção entre os direitos ambientais e os direitos da natureza. Os direitos ambientais vêm dos direitos humanos e nos garantem um ambiente adequado e saudável para viver. Os direitos da natureza garantem aos seres humanos o direito à vida. Ambos se complementam, porque fazem referência à justiça ecológica e a justiça social.

Algo inovador, mas não novo.

Os direitos da natureza são anteriores. Nisso, Spinoza e sua interpretação da natura naturans e a natura naturata têm um papel central. A natureza se faz. Isto também pode ser visto em O barão rompante, de Calvino [1957], ou na criação do Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza, em 2014, inspirado no Tribunal Russell-Sartre de 1966, que investigou os crimes de guerra na Guerra do Vietnã e que mais tarde se transformou no Tribunal dos Povos. Em 2010, na Bolívia, na Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra, adotou-se a Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra. Esta Declaração apresenta o direito de existência da Natureza. O Tribunal foi estabelecido para promover o respeito e a garantia dos direitos estabelecidos na Declaração.

Na América Latina, vocês levam vantagem, pois possuem a cosmovisão indígena.

A cosmovisão indígena não é generalizada, embora haja cada vez mais pessoas envolvidas e organizações trabalhando nessa linha, mas não é extensível à maioria da sociedade. Mas o artigo 71 de sua Constituição [direito à natureza] não é respeitado. Depois da Constituinte, as possibilidades se ampliaram, mas no Equador uma coisa é o discurso e outra é a prática. Não é de agora. Correa nunca se interessou pela Constituição, o único interesse que tinha era o de continuar concentrando seu poder de caudilho.

Aposta no fim da busca pelo desenvolvimento. O debate entre decrescimento ou capitalismo verde é falso?

A economia verde pode ter boas intenções, mas não atinge o problema: o capitalismo. Pode ser que seja útil em um processo de transição, mas precisamos de outro sistema econômico. A partir da cúpula de 1992, no Rio de Janeiro, foram pensadas estratégias para reconciliar o crescimento econômico com o meio ambiente e a redução da pobreza. Daí surge a ideia de alcançar um equilíbrio entre economia, sociedade e ecologia. Não funciona. A economia deve estar subordinada às demandas dos seres humanos e estes devem entender que para sobreviver é preciso estabelecer relações de harmonia e com a natureza.

Com Nancy Fraser

'O NEOLIBERALISMO COMO FILOSOFIA HEGEMÔNICA ESTÁ MORTO'

Nascida em 1947, em Baltimore, e professora da New School de Nova York, Nancy Fraser mantém diálogos críticos com Judith Butler sobre as políticas de identidade e de classe. Entre suas publicações, destacam-se Dominación y emancipación, com Luc Boltanski (Capital Intelectual), Contrahegemonía ya (Siglo XXI) e Capitalismo em debate: uma conversa na teoria crítica, junto com Rahel Jaeggi (Boitempo). Suas pesquisas giram em torno da problematização da sociedade e natureza, produção e reprodução, economia e política. Formada com Jürgen Habermas, coloca em questão o “público” e realiza diagnósticos sobre as intersecções entre as formas de produção e as de organização social. A entrevista é de Florencia Angilletta, publicada por Le Monde Diplomatique e reproduzida por Rebelión, 27-09-2021. A tradução é do Cepat /IHU

Com a pandemia, ocorre certo paradoxo entre a igualdade (todas as pessoas são vulneráveis ao vírus) e a diferença (as pessoas podem se proteger de acordo com o capital que dispõem), atravessada pela gestão estatal que oscila entre a volta do Estado (como marco normativo e institucional) e a crise do Estado (os Estados estão limitados pela distribuição geopolítica das vacinas). De que modo é possível continuar pensando sobre a desigualdade estrutural e a intervenção estatal?

É uma excelente pergunta e começarei minha resposta dizendo que vejo a Covid-19 como uma tempestade perfeita de irracionalidade e injustiça capitalista. A pandemia é o ponto no qual convergem todas as falhas e contradições do sistema, incluídas as que você menciona. Muitas vezes se diz, e com razão, que o vírus serviu como diagnóstico perverso, ao iluminar todas as lacunas de nossa sociedade. Mas não ouvimos falar o suficiente acerca do sistema social que gera essas lacunas, ainda que seja o mesmo sistema que nos trouxe o vírus, em primeiro lugar, e que está bloqueando nossos esforços para enfrentá-lo. Sendo assim, quero insistir nesse ponto: o que a pandemia diagnostica, na realidade, é a disfuncionalidade profundamente arraigada do capitalismo. Para ver o motivo, consideremos de onde veio o vírus. Ocorre que o SARS-CoV-2, há muito tempo, estava abrigado em cavernas remotas, sem efeitos nocivos para o ser humano. No entanto, recentemente, o vírus passou para uma espécie intermediária e depois para nós. Então, o que causou esta “transferência zoonótica”? O que aconteceu para que os morcegos entrem em contato com a espécie intermediária e depois conosco? Duas coisas, ambas resultado direto do capitalismo: o aquecimento global, em primeiro lugar, e o desmatamento tropical. Juntos, esses dois processos forçaram inúmeros organismos a sair de seus habitats naturais e a entrar em outros novos, onde começaram a interagir com espécies que nunca antes tinham encontrado, incluindo algumas que estão em contato conosco. O resultado foi uma série de epidemias virais entre os humanos, não “só” Covid-19, mas também AIDS, Ebola, SARS e MERS. Podemos estar certos de que virão mais, graças à persistência das mudanças climáticas e o desmatamento, que são impelidos implacavelmente pelo “desenvolvimento” capitalista. De fato, o sistema capitalista está desenhado para destruir o planeta. Incentiva as empresas a que se apropriem da riqueza biofísica da forma mais rápida e barata possível, ao mesmo tempo em que as exime da responsabilidade de reparar o que danificam e repor o que consomem. Empenhadas em aumentar suas ações e lucros, dizimam as matas tropicais, bombardeiam a atmosfera com gases do efeito estufa e desencadeiam uma cascata crescente de pragas letais. Em resumo, é o capitalismo que gerou a pandemia, e nos trará muitas outras, a menos que o detenhamos.

Agora, vejamos o aspecto que você mencionou, ou seja, o Estado. O que se joga aí é o aspecto político da crise, que convergiu com o aspecto ecológico de um modo que exacerbou ambos e nos colocou em perigo. É verdade, é claro, que a pandemia seria horrível para os seres humanos de qualquer modo. No entanto, foi muito pior devido os 40 anos de financeirização neoliberal que afetaram as capacidades políticas que, de outro modo, teríamos conseguido utilizar para controlar a Covid.

Durante esse período, “os mercados” exigiram e receberam investimento estatal em massa da privatização da infraestrutura pública. Isso é verdade para a infraestrutura em geral, e para a infraestrutura de saúde pública em particular. Salvo algumas exceções, os Estados reduziram as reservas de equipes para salvar vidas, destruíram as capacidades de diagnóstico e reduziram as capacidades de coordenação e tratamento. E o que acompanhou o desinvestimento estatal foi a privatização. Além disso, uma vez destruídas as infraestruturas públicas, os governantes transferiram funções sanitárias vitais para provedores e seguradoras, empresas farmacêuticas e fabricantes com fins lucrativos. Essas empresas controlam parte dessas capacidades, incluindo a mão de obra e as matérias-primas, a maquinaria e as instalações de produção, as cadeias de fornecimento e a propriedade intelectual, as instituições de pesquisa e os profissionais. E centrados somente em seus lucros e no preço de suas ações, importam-se muito pouco com o interesse público. Os resultados são trágicos, mas não surpreendentes. Um sistema social que submete os assuntos da vida e a morte à “lei do valor” estava estruturalmente preparado, desde o início, para abandonar milhões de pessoas à sua sorte diante da Covid-19.

Você também mencionou a desigualdade que ficou muito evidente sob as condições da pandemia. Um dos aspectos que ficou exposto é o racismo estrutural, que impregna todos os aspectos da crise atual. Em nível global, impacta na vertente ecológica, já que em grande medida o capital sacia sua sede de “natureza barata” retirando a terra, a energia e a riqueza mineral das populações racializadas, privadas de proteção política e de direitos acionáveis. Desproporcionalmente vulneráveis aos resíduos tóxicos, às “catástrofes naturais” e aos múltiplos impactos letais do aquecimento global, agora, estão no fim da fila da vacinação. Enquanto isso, em nível nacional, durante muito tempo foi negado às comunidades migrantes e BIPOC [em inglês, negras, indígenas e de cor] o acesso às condições que promovem a saúde: acesso a um atendimento médico de alta qualidade, água limpa, alimentos nutritivos, condições de trabalho e de vida seguras. Não causa estranhamento, portanto, que seus membros se infectem e morram de forma desproporcional por causa da Covid. As razões não são misteriosas: pobreza e atendimento à saúde inferior; condições de saúde preexistentes relacionadas ao estresse, desnutrição e exposição a tóxicos; sobrerrepresentação em trabalhos na linha de frente que não podem ser realizados de forma remota; falta de recursos que permitam que rejeitem trabalhos inseguros e de direitos trabalhistas que permitam que tragam proteções; moradias que não permitem o distanciamento social e facilitam a transmissão; acesso reduzido à vacina. Em conjunto, essas condições ampliam o significado do slogan Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), fazendo sinergia com sua referência original à violência policial e contribuindo para alimentar os protestos atuais. A cor, além disso, está profundamente entrelaçada com a classe, no sistema mundial capitalista em geral e no período atual em particular. De fato, os dois são inseparáveis, como demonstra a categoria “trabalhador essencial”. Se deixarmos de lado profissões da medicina, essa denominação abarca trabalhadores agrícolas migrantes, trabalhadores imigrantes dos matadouros e do empacotamento de carne, distribuidores dos depósitos da Amazon, motoristas de UPS (um sistema de envio de pacotes), auxiliares das residências de idosos, limpadores dos hospitais, repositores e caixas dos supermercados, aqueles que entregam comida para levar. Especialmente perigosos em tempos de Covid, esses trabalhos são em sua maioria mal remunerados, não sindicalizados e precários, desprovidos de auxílios e proteções trabalhistas, sujeitos a uma supervisão intrusiva e aceleração implacável. Embora exista uma diversidade de pessoas, são ocupados de forma desproporcional por mulheres e pessoas afro-americanas. Em conjunto, esses trabalhos, e aqueles que o desempenham, representam o rosto da classe trabalhadora no capitalismo financeirizado. Não se personifica mais na figura do homem branco mineiro, operário da fábrica e trabalhador da construção, mas, ao contrário, essa classe também inclui os trabalhadores e as trabalhadoras de serviços com salários baixos e a grande maioria de cuidadores/as. Pagos abaixo de seus custos de reprodução, quando são pagos, são expropriados/as e explorados/as. A Covid trouxe à luz também esse sujo segredo. Ao justapor o caráter essencial do trabalho dessa classe com a subvalorização sistemática que o capital faz dele, a pandemia evidencia outra das principais contradições da sociedade capitalista: a incapacidade do mercado da força de trabalho em calcular com precisão o valor real do trabalho. Em geral, a Covid é uma tempestade perfeita de irracionalidade e injustiça capitalista. Ao aumentar os defeitos inerentes do sistema até o ponto de ruptura, faz brilhar um raio de luz penetrante sobre todas as contradições estruturais de nossa sociedade. Tirando-as das sombras e expondo-as à luz, a pandemia revela o impulso inerente do capital em canibalizar a natureza até a beira da conflagração planetária, desviar nossas capacidades dos trabalhos verdadeiramente essenciais da reprodução social, eviscerar o poder público a ponto de não poder resolver os problemas gerados pelo sistema, alimentar-se da riqueza e a saúde cada vez piores das pessoas racializadas, não só explorar, mas também expropriar, a classe trabalhadora. Não poderíamos pedir uma lição melhor de teoria social.

Entre as diferentes medidas de isolamento anunciadas pelo governo na Argentina, uma das que mais gerou expectativa foi a relacionada às trabalhadoras em casas de família, se poderiam ou não se deslocar até seus locais de trabalho. Como essa crise e essa pandemia impactam na revalorização do que você chamou de “reprodução social” e o problema das “cadeias globais de cuidado”, junto com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya, em ‘Feminismo para os 99%: um manifesto’?

Assim como as outras dimensões da crise, o aspecto de gênero também tem suas raízes no capitalismo, que subvaloriza cronicamente as tarefas de cuidado e fomenta as crises de reprodução social. Hoje, vemos isso claramente. O mesmo regime neoliberal que se despojou da infraestrutura dos cuidados públicos, também quebrou os sindicatos e reduziu os salários, forçando a aumentar as horas de trabalho remunerado por lar, inclusive de cuidadores/as principais. Desse modo, descarregou o trabalho de cuidados nas famílias e nas comunidades justamente no momento em que também estava requisitando as energias sociais que necessitávamos para realizar esse trabalho. O efeito foi uma crise aguda de cuidados, que surgiu inclusive antes da pandemia e que se intensificou. Como sabemos, a Covid transferiu novas e importantes tarefas de cuidado para as famílias e comunidades, já que o cuidado das crianças e a escolarização foi repassado para os lares das pessoas, durante o confinamento. A carga recaiu principalmente sobre as mulheres, que continuam realizando a maior parte das tarefas de cuidado não remuneradas. Não causa estranhamento, portanto, que muitas mulheres empregadas tenham deixado o seu emprego para cuidar de seus filhos/as e outros familiares, enquanto muitas outras foram demitidas por seus empregadores. Os dois grupos enfrentam importantes perdas de posição e de salário, caso se reincorporem ao trabalho. Um terceiro grupo, que tem o privilégio de conservar o seu emprego e trabalhar de modo remoto, ao mesmo tempo em que realiza tarefas de cuidado, inclusive de crianças confinadas em casa, levou o multitasking a novos níveis de loucura. Um quarto grupo, que inclui tanto mulheres como homens, integra com honra os “trabalhadores essenciais”, mas recebem uma miséria, são tratados como se fossem descartáveis e é exigido deles que desafiem diariamente a ameaça de infecção, junto com o medo de levá-la para casa, para produzir e entregar as coisas que permitem que outros/as se refugiem em seu local. Está claro, portanto, que as tarefas de cuidado se cruzam com a organização do mercado de trabalho, a economia política, o cuidado social e os auxílios do Estado. O problema principal é que a sociedade capitalista nutre uma profunda tendência a se aproveitar da gratuidade do trabalho de cuidados, canibalizar as capacidades de cuidados e o preenchimento das mesmas. Isso se aplica ao capitalismo em geral. No entanto, o atual capitalismo neoliberal é especialmente predatório nesse aspecto. E a pandemia deixou claro como é importante o trabalho de cuidados, o quanto precisamos dele e como é irracional viver em uma sociedade que não o valoriza.

Dois extremos a ser considerados em torno da política e a economia são a dívida e os subsídios. A Argentina, por exemplo, está negociando suas capacidades de pagamento. Por outro lado, neste ano, vimos os anúncios históricos de Joe Biden sobre os subsídios. Quais são as possibilidades desse capitalismo entre o equilíbrio macroeconômico e a necessidade da economia injetada no bolso?

A dívida tem um papel especial no capitalismo neoliberal. Nas formas anteriores, as finanças eram um ramo da economia entre outros. Apoiavam o ramo produtivo, fornecendo créditos que permitiam a inovação e o crescimento. Mas esse não é o caso no neoliberalismo. Agora, as finanças não são simplesmente um ramo discreto da economia capitalista. Ao contrário, seus tentáculos se estendem por todas as partes da economia. Este é um exemplo disso: os fabricantes de automóveis, hoje em dia, ganham menos produzindo e vendendo carros do que oferecendo empréstimos aos compradores para que comprem carros. Em outras palavras, estão no negócio do crédito, que é um negócio mais rentável que o da produção. A dívida circula por todo o sistema econômico, não só através dos bancos, mas também das empresas, Estados, lares e instituições financeiras mundiais. Falamos de “dívida soberana”, mas é irônico porque são os detentores dos títulos que determinam o que o Estado tem que fazer para que o crédito continue fluindo. Vimos muitos desses exemplos na crise financeira de 2008, quando a União Europeia soltou a mão da Grécia para agradar os credores. Essa forma de capitalismo mudou dramaticamente o equilíbrio de poder entre Estados e investidores, corporações e mercados financeiros. Ao mesmo tempo, houve um grande aumento da dívida privada. As famílias trabalhadoras não ganham o suficiente para suportar seus gastos de manutenção por meio de seus salários. Dependem de cartões de crédito, de dívidas estudantis, hipotecas e créditos para o automóvel. Este é outro traço definidor do capitalismo atual, que não só explora as classes trabalhadoras, mas simultaneamente as expropria através do endividamento. Pais e mães não podem mais esperar que seus filhos vivam melhor que eles. Ao contrário, em muitos casos, estarão piores. A dívida é uma grande parte dessa história.

Você analisou o capitalismo não apenas como um sistema econômico, mas a partir do que chamou de “visão expandida do capitalismo”. As crises que vivemos atualmente não são apenas parte de um sistema econômico. Como, então, construir horizontes emancipadores?

O capitalismo não é apenas um sistema econômico, é uma forma de organizar a relação do sistema econômico com outras esferas da sociedade nas quais a economia se apoia. Organiza a relação da economia com a natureza, com a vida familiar e a reprodução social, e com a esfera política. Todos esses elementos são suportes necessários ou condições de fundo para uma economia capitalista. Não pode existir sem o trabalho não remunerado que sustenta os/as trabalhadores/as, os processos naturais que sustentam os sistemas ecológicos e uma grande variedade de bens públicos, incluindo os marcos legais, as forças repressivas, a oferta de dinheiro, a infraestrutura e as comunicações. No entanto, a sociedade capitalista institui uma relação perversamente contraditória entre sua economia e esses apoios necessários. Incentiva os capitalistas a canibalizar as próprias condições de fundo das quais dependem para devorar nossas capacidades políticas, ecológicas e assistenciais. Por isso, nossa crise atual é sobre tudo. Não é “apenas” uma crise econômica. Também é uma crise ecológica, política e de reprodução social. Não podemos entender o que está acontecendo, a menos que adotemos uma visão ampliada do capitalismo, que problematize a relação da economia com suas condições de fundo não econômicas. A visão tradicional do capitalismo como sistema econômico não pode esclarecer a situação atual. Em relação à emancipação, devemos ampliar nossa ideia do que conta como luta anticapitalista. Não são apenas as lutas nas fábricas entre os/as trabalhadores/as e patrões/as, ainda que sejam muito importantes. São também as lutas pela educação, moradia digna e saúde pública. Essas são lutas sobre a reprodução social, que envolvem o setor público e o privado. São lutas sobre a disfunção capitalista, por um novo sistema social, que repensaria toda a relação entre a sociedade humana e a natureza não humana, entre a produção e a reprodução, entre a economia e a política.

Em uma de suas últimas obras, dedicou-se a uma análise das “fronteiras”, e uma das fronteiras em seu trabalho se refere à existente entre os feminismos e a política. O que ocorre nessa “fronteira”?

Desenvolvi essa ideia sobre a luta de fronteiras para tentar me conectar com essa visão ampliada do capitalismo. Existem lutas não apenas dentro do setor econômico, entre o trabalho e o capital. Também existem lutas de fronteiras entre o sistema econômico e o Estado, e não só o Estado, mas também sobre capacidades estatais e instituições públicas. Algumas dessas lutas ocorrem em diferentes níveis. O caso da produção e a reprodução é de especial interesse para o feminismo porque tem a ver com fronteiras de gênero. Historicamente, a reprodução era uma esfera feminina e a produção uma esfera masculina. Hoje em dia, isso não está delimitado de modo tão claro e como as mulheres entraram em massa no mercado de trabalho remunerado, possuem duplo turno de trabalho. Por que as mulheres, hoje em dia, em muitos países, estão à frente nesta luta de fronteiras sobre a reprodução social? As mulheres que ensinam não lutam apenas por melhores salários, mais aulas e mais recursos para as escolas. Estão se alinhando com os pais e mães que têm trabalhos em outros setores e que querem uma educação melhor para seus filhos/as. As mulheres que trabalham nesses setores, diferente dos trabalhadores industriais que às vezes lutam apenas por melhores salários, lutam pela qualidade do serviço. As enfermeiras são outro exemplo: estiveram lutando não apenas por melhores salários, mas também pela quantidade de pacientes que podem tratar, para oferecer melhores condições. Esses são casos interessantes, porque não são lutas apenas pelas condições de trabalho, mas também pelos recursos e pela qualidade dos serviços. Envolve o Estado e a reprodução social, a esfera econômica e a social. Tudo está relacionado. As lutas pela reprodução social são também as lutas trabalhistas. Grande parte da militância trabalhista não vem dos trabalhadores industriais, mas de quem faz o trabalho de reprodução social. Essa é uma grande mudança na luta de classes, no que significa a luta de classes. Todas essas mudanças estão transformando a classe trabalhadora, que não é mais composta apenas pelos/as trabalhadores/as das fábricas, mas também por aqueles/as que trabalham em serviços, reprodução social, nas comunidades ou lares e que não recebem uma remuneração. Essas pessoas também fazem parte da classe trabalhadora. Não sofrem apenas a exploração, mas também a expropriação por meio da dívida. O problema da dívida também faz parte da luta de classes. Novamente, quando temos essa visão ampliada do capitalismo, é preciso levar em conta as formas de opressão, exploração e expropriação. Tem-se um panorama mais amplo sobre quais lutas são potencialmente ou diretamente anticapitalistas. E, depois, tem-se um panorama ainda maior de quais seriam as alianças possíveis. Se essa forma de capitalismo é a raiz de todas as crises, irracionalidades e injustiças, então, tem-se, ao menos potencialmente, a possibilidade de ter pessoas que estão situadas em diferentes lugares do sistema e, portanto, com diferentes preocupações existenciais pelas quais lutar. Isso significa que continua existindo possiblidades de que essas pessoas vejam as relações entre si, nesse sistema predatório.

Você escreveu sobre onde o neoliberalismo encontrou seu calvinismo, seu carisma, e a respeito dos vínculos entre neoliberalismo e progressismo. Quais são os desafios, em 2021, para continuar lendo a partir de classe e identidade, “redistribuição” e “reconhecimento”, pilares de seu trabalho?

Tenho um diagnóstico completo, uma espécie de diagnóstico ao modo de Gramsci, de como uma filosofia econômica tão daninha para tanta gente conseguiu suficiente apoio político e legitimidades para se tornar a força dominante e hegemônica para se apoderar dos governos em todo o mundo. Minha ideia é que isso nunca poderia ter acontecido, se a única história estimada tivesse sido o projeto econômico, já que é prejudicial para os pobres, a classe trabalhadora e a classe média. Nunca poderia ter tido êxito somente a partir de sua filosofia econômica. Precisavam de algo a mais. E isso é o que Luc Boltanski e Ève Chiapello chamaram de “novo espírito do capitalismo”, e graças ao qual o neoliberalismo conseguiu cooptar, em minha opinião, um setor importante dos novos movimentos sociais que têm carisma e legitimidade: o feminismo, os direitos LGBTQ, os direitos civis, movimentos antirracistas e, ultimamente, também os movimentos ambientalistas. O que o neoliberalismo fez foi sacudir os setores liberais convencionais dominantes, que nunca foram muito críticos, nem anticapitalistas, e deu um tapinha nas costas deles, fazendo-os sentir que tinham poder. Temos o feminismo corporativo liberal, como por exemplo Hillary Clinton, que fez tudo o que Wall Street queria e também promoveu um tipo de feminismo específico, concentrado em eliminar barreiras discriminatórias para que algumas mulheres talentosas ascendessem na hierarquia corporativa. Essa visão feminista não está relacionada a uma igualdade social real, está relacionada à meritocracia. Black faces in high places, um livro crítico sobre o racismo, também ressalta esses conflitos a partir da presidência de Obama. É a velha história sobre como o neoliberalismo obtém o seu carisma. Chamo essa aliança de “neoliberalismo progressista”, porque é muito diferente do que acontece com Bolsonaro, que é um “neoliberal reacionário”. Depois disso, houve alguns eventos importantes: 2016 foi um momento crucial nos Estados Unidos e, provavelmente, afetou o mundo todo. Naquele momento, Bernie Sanders enfrentou Hillary Clinton pela indicação democrata à presidência, e do outro lado estava Trump, que não era o típico republicano neoliberal. Havia dois desafios para o neoliberalismo, da direita e a esquerda. Por exemplo, alguns trabalhadores brancos que votaram em Sanders nas primárias, não votaram em Hillary Clinton nas eleições, mas, sim, em Trump. Houve uma rejeição popular contra o neoliberalismo, que é o neoliberalismo progressista. A verdade é que a rejeição mais forte partiu da direita. A esquerda também se manifestou, mas a direita a conseguiu capitalizar melhor. Agora, temos a pandemia e, como disse no início, é uma grande lição de teoria social. A pandemia nos mostra que o livre mercado não pode fazer o que é necessário para garantir que vivamos de maneira decente. Acredito que o neoliberalismo como filosofia hegemônica está morto: segue no poder, mas não tem mais credibilidade. Estamos nesse “interregno” de Gramsci, no qual aparecem todos os tipos de sintomas mórbidos. Joe Biden não é um neoliberal progressista. A ação transcorre no Partido Democrata, entre a velha facção Clinton e a facção Sanders. Sanders tem muito mais controle do que antes, embora não possua todo o controle. Essa é uma forma de ver o “interregno”. As contradições são graves, mas é um momento importante e há oportunidades reais para a esquerda. Não acredito que o fascismo esteja ao virar da esquina e que seja necessário correr para pedir proteção ao liberalismo. Se chegarmos a esse ponto, lutarei junto com os liberais contra o fascismo, mas isso depende do momento e agora não é o momento. O movimento de Sanders deveria construir um novo bloco anti-hegemônico com todos os setores anticapitalistas que já mencionamos. Penso que temos margem de ação, se não nos conformamos apenas com a política de reconhecimento. É preciso deixar de lado a cultura do cancelamento e as microagressões. Servem como proteína para a direita. É preciso se concentrar na estrutura, nas instituições, nas demandas e lutas que podem realmente melhorar a vida material da classe trabalhadora. Existe uma oportunidade aí.

Com André Aciman, refugiado

'A ALMA DOS ESTADOS UNIDOS MORRE COM AQUELES REFUGIADOS PERSEGUIDOS'

Fala o escritor sobre as imagens de migrantes haitianos perseguidos por guardas no Texas "Sem estrangeiros este país não teria prosperado. Foram eles que construíram os Estados Unidos." O refugiado André Aciman, olha incrédulo às fotos dos refugiados haitianos, que fogem no Texas perseguidos pelos guardas da fronteira dos EUA a cavalo: “A sensação é que este país perdeu sua alma. É horrível". O escritor André Aciman nasceu no Egito, foi forçado a emigrar primeiro para a Itália e depois para os EUA, e essa experiência pessoal o torna sensível às imagens que chegam de Del Rio. Milhares de haitianos estão acampados ali após o assassinato do presidente Jovenel Moïse, na esperança de cruzar o Rio Grande, antes que o governo Biden os capture para deportá-los. A entrevista com André Aciman é editada por Paolo Mastrolilli e publicada por La Stampa. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

O que você pensa, olhando aquelas fotos?

Existem dois pontos de vista. De acordo com o primeiro, todo país tem o direito de proteger suas fronteiras. Os refugiados estão atacando os EUA que, portanto, tem o direito de se defender, se essa é a interpretação correta, o que eu não acredito. Depois, há a longa tradição histórica, nos EUA como na Europa, de acolher os refugiados. Pessoas que fogem da pobreza, do crime, ou como você quiser chamar, têm o direito de ser hospedadas. Nesse sentido, a Itália sempre foi particularmente de ajuda. Os EUA, devido a Trump, desenvolveram uma atitude totalmente regressiva e arrogante, criando uma atmosfera entre as forças da ordem que as leva a serem muito mais hostis do que seria necessário. Ver as fotos de uma menina fugindo, perseguida por um cowboy a cavalo, deixa muita gente feliz, porque é um gesto viril e masculino, mas é um horror. Precisamos ajudar essas pessoas. Chegam da miséria mais absoluta, são pobres, alquebrados e já sofreram muito. Eu entendo aqueles que dizem que não podemos hospedar todos, mas penso que devemos deixá-los entrar.

Biden, que aumentou para 125.000 os refugiados aceitos pelos EUA, ele está imitando Trump?

Muitos exploram a hostilidade contra os migrantes e, portanto, tudo é condicionado pela política interna. Os EUA estão se tornando outra coisa. Basta olhar para o que acontece com os republicanos que se opõem a Trump: eles não concorrem novamente, porque suas vidas foram ameaçadas. Quando isso aconteceu antes nos EUA?

Na Estátua da Liberdade tem um verso pedindo ao mundo que envie suas massas abandonadas. Claro, e deveríamos continuar a aplicá-lo. Esqueça que essas pessoas são perseguidas pela polícia, ou peças pequenas do narcotráfico: elas não têm perspectiva, vivem amontoadas debaixo de uma ponte. O que você vai fazer, as deixar morrer de fome?”

Os EUA mudaram de alma?

Odeio ser simplista, mas um país onde quase 50% dos eleitores, 72 ou 73 milhões, votaram em Trump, foi contaminado por ideias hostis aos valores fundamentais da democracia, liberdade, tolerância, ser de benéfico para o resto do mundo. Italianos, irlandeses, judeus vieram para os EUA com a esperança de se reinventarem, e eles o fizeram. Muitos mexicanos trabalham sem segurança, aposentadoria ou assistência médica. Gente sem esperança, que construiu o país. O pai de Steve Jobs era um emigrante sírio, sem ele a Apple não teria existido. Nada teria existido. Este seria um país anglo-saxão branco e não teria prosperado como prosperou, precisamente graças aos estrangeiros que o enriqueceram. Veja os indianos, que hoje dirigem as maiores empresas de tecnologia.

Se você não tivesse sido acolhido, teria se tornado a pessoa que é hoje?

Não sei o que teria me tornado, talvez um empresário. Quem sabe? Mas o fato é que a Itália primeiro, e os EUA depois, me acolheram. Foi uma oportunidade maravilhosa, todas as portas se abriram. Não sou mais talentoso do que os outros, apenas tive sorte. Mas a sorte existe em alguns lugares mais do que em outros. Não acredito que uma criança nascida hoje na Síria tenha a chance de ter sorte, e negar essa esperança a pessoas em extrema necessidade é desumano.

Edição 170, setembro 2021

Com Chantal Mouffe

'DEMOCRACIA É RECONHECER QUE HÁ VOZES QUE NÃO PODEM SER HARMONIZADAS'

Nos últimos anos, cada vez mais vozes alertam sobre a crise da democracia liberal, devido, entre outras coisas, a ascensão de projetos autoritários em diferentes lugares do mundo. Do mesmo modo, com frequência se alerta sobre os riscos do populismo para a democracia, que é associado a posturas “extremistas” e demagógicas. Contudo, para Chantal Mouffe, renomada teórica política belga, o populismo, e particularmente um populismo de esquerda, longe de ser uma ameaça para a democracia, é a melhor chance que temos para restabelecê-la e aprofundá-la. Conversamos com ela a respeito da natureza da democracia, sobre as recentes jornadas de protesto social no país, sobre as possibilidades de consolidar a paz na Colômbia e sobre a relação entre a política e as práticas artísticas e culturais. Chantal Mouffe estudou Ciência Política e Filosofia nas universidades de Lovaina, Paris e Essex. É professora de teoria política na Universidade de Westminster, Reino Unido. Lecionou em muitas universidades da Europa, América do Norte e América Latina. Seu livro mais recente é Por um populismo de esquerda. A entrevista é de Julián Harruch, publicada por El Espectador. A tradução é do Cepat /IHU

Na Colômbia, um tema que causa muita preocupação em diversos setores políticos é a “polarização” do debate público, que é concebido como um grave risco para a democracia, pois, argumenta-se, pode conduzir à violência política. Você considera que a polarização é necessariamente negativa para a democracia?

As concepções consensualistas da democracia, ou seja, aquelas que veem na conciliação e na erradicação dos conflitos o objetivo da política democrática, de algum modo sempre são, na realidade, uma defesa da ordem estabelecida, porque não reconhecem a pluralidade de interesses em jogo. Ao contrário, a concepção de democracia que eu defendo, e que chamo de “agonística”, consiste em abrir a possibilidade de expressão para vozes e interesses distintos no interior de um marco de instituições que permitam o confronto, sem que se chegue à guerra civil. Muitos liberais pensam que a polarização necessariamente destrói a democracia, que a polarização é negativa em si. Eu não gosto do termo. Eu prefiro falar em uma fronteira política que envolve a distinção entre um “eles” e um “nós”, e a questão é como imaginar um conjunto de instituições e formas políticas que permitam essa distinção a partir de uma visão de uma vida comum, apesar das diferenças. A ideia de que a polarização é em si uma coisa negativa (ainda que esteja correto que envolve um risco) e de que o objetivo da democracia consiste em estabelecer um consenso omite o que é fundamental na política, que é o caráter inerradicável do conflito. A democracia é reconhecer a diferença, o pluralismo de vozes e o fato de que essas vozes não podem ser harmonizadas. Aqueles que defendem uma concepção consensualista da democracia dizem que não se deve excluir, mas pretender não excluir ninguém é uma maneira de excluir todo um setor ao qual não será dado voz. Em nome da inclusão, o que se faz é estabelecer uma fronteira com os que não têm direito a falar. Isso não permite uma concepção progressista da democracia.

Que fatores considera que são importantes para que, em um contexto com a história de guerra política como é o caso da Colômbia, sejam consolidadas instituições e práticas políticas de caráter agonístico, para usar seus termos, de modo que consigamos evitar que os conflitos desemboquem em uma nova guerra?

Existem os acordos de paz, o problema é que é preciso que sejam colocados em prática. Com a vitória de Iván Duque, houve um retrocesso muito forte na Colômbia. Fui convidada pela Universidade de Antioquia justamente após a assinatura do Acordo de Paz, em 2016, e havia um entusiasmo impressionante. Todo mundo dizia que se iniciava uma nova etapa. Houve um momento com uma possibilidade real de uma política agonística. E pela reação do uribismo essa possibilidade foi fechada.Isso de alguma maneira pode explicar um pouco o que está acontecendo hoje, a rejeição e o descrédito dos partidos tradicionais e da velha política, porque as pessoas tiveram essa esperança que depois foi frustrada. Isso acentuou uma atitude negativa em relação às instituições no movimento social. Mas nem tudo é negativo. Não é uma situação na qual é preciso começar do nada. É verdade que é difícil reabrir a janela de oportunidade aberta pelo processo de paz e que foi fechada durante o último governo. Mas já existem sementes de algo novo. E, afinal, assim é a política: avanço, retrocesso, avanço, retrocesso.

Justamente, em relação ao movimento de protesto social que sacudiu a Colômbia nos primeiros meses de 2021, há uma tensão interessante. Por um lado, as instituições da democracia liberal e os partidos políticos sofrem um tremendo descrédito entre as pessoas, particularmente entre os jovens. Mas, por outro, também vimos nesses protestos, em particular entre a juventude, um forte desejo de participar efetivamente do processo político. Como considera que podemos interpretar essa tensão? E que conexões tem com outros movimentos de protesto recentes no mundo?

Esse movimento continua, não terminou. Por outro lado, não concordo com a premissa de sua pergunta, porque acredito que há uma rejeição, digamos, da democracia liberal realmente existente na Colômbia, mas não do ideal de democracia liberal representativa. Há uma rejeição ao modo como está sendo praticada e ao fato, fundamentalmente, dessa democracia não ser realmente suficientemente agonística. O que se quer não é um modelo diferente de democracia, mas uma verdadeira democracia liberal representativa. O que existe na Colômbia é uma crítica ao velho sistema de partidos e da velha política. No mais, não é que as pessoas não esperem nada da política, mas, sim, que existe uma demanda muito positiva por um novo tipo de política. Por outro lado, o que me parece muito interessante sobre a situação na Colômbia é que muitas possibilidades se abrem, porque, segundo o que leio, quem hoje está mais inclinado a vencer a presidência em 2022 é Petro Para mim, é uma enorme promessa para a Colômbia, caso não seja impedido de chegar às eleições. É alguém que representa exatamente o tipo de populismo de esquerda que eu defendo. Colômbia Humana não é um partido tradicional, mas um movimento social que constrói uma vontade coletiva articulando o feminismo, o movimento camponês, o movimento indígena, etc. Seu triunfo seria o início de uma etapa completamente nova para a Colômbia. Outro caso que me parece muito interessante é o do Chile. A mobilização popular para acabar com a constituição de Pinochet foi incrível. Muitas pessoas que conheço no Chile também estão dizendo que existe uma possibilidade real de que Boric (2), o candidato da Frente Ampla, vença as eleições em novembro. Isso também seria o início de uma época. Imagine Petro na Colômbia e Boric no Chile. Seria um avanço formidável para a política democrática na América Latina. Sendo assim, não se deve ser pessimista.

No dia 23 de setembro, você dará uma conferência em ‘Fragmentos, Espaço de Arte e Memória’, que é uma instituição cultural criada a partir dos acordos de paz. Qual é o papel das artes e instituições culturais na construção de uma sociedade que possa lidar com seus conflitos de forma agonística? E, de modo geral, que papel desempenham na constituição de qualquer ordem política?

As práticas culturais e artísticas (o teatro, o cinema, as artes visuais, etc.) são lugares de produção da subjetividade. E por essa razão possuem um papel muito importante na constituição do que Gramsci chama de senso comum, a saber, o modo como se vê o que esperar, o que é possível. A aceitação de certa ordem, como a ordem neoliberal na atualidade, é algo que tem a ver com um regime de desejos e de visões do possível, e é aí que os artistas podem atuar. As práticas artísticas permitem a reprodução da ordem existente, pois não são por natureza transgressoras, mas também sua transformação. E isso porque a arte nos permite ver as coisas de outra forma, permite criarmos uma lacuna no consenso social e dar voz aos excluídos. Para estabelecer uma ruptura com o neoliberalismo, é preciso criar uma vontade coletiva, e para isso é preciso transformar as subjetividades, criar novos sujeitos políticos que desejem uma ordem diferente, que não aceitem passivamente a ordem imposta. Para mim, as práticas artísticas estão na vanguarda dessa tarefa, pois podem contribuir para a construção de outros mundos possíveis, com formas de subjetividade que permitam que as pessoas vejam as coisas de outra forma, comecem a desejar uma ordem diferente e agir para a realização dessa ordem.

Com Francesco Borgomeo

A REVOLUÇÃO DA ECONOMIA CIRCULAR: 'PROTEGER O AMBIENTE SALVA AS EMPRESAS'

A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular, lemos no Evangelho. Aquilo que Francesco Borgomeo – licenciado em Filosofia com estudos na Universidade La Sapienza e na Pontifícia Universidade Gregoriana, na Itália, presidente do grupo Sax Gres e há cerca de um ano da Unindustria Cassino-Gaeta – faz também é muito semelhante: ele lida com intervenções de resgate e de reconversão industrial, utilizando materiais de descarte para criar algo novo, respeitando o ambiente. Ele aplica a economia circular à green economy, salvando postos de trabalho e um certo “saber-fazer” no setor dos revestimentos cerâmicos. A entrevista é de Lorenzo Cipolla, publicada em In Terris. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Como nasceu a ideia de obter cerâmicas a partir de materiais de descarte?

Desde o início, eu me ocupava da produção de ladrilhos tradicionais, depois me dediquei aos produtos para exteriores. Também patenteei um paralelepípedo de grés porcelanato, o grestone, obtido a partir das cinzas dos termovalorizadores em substituição às pedras naturais. Evitamos, assim, destruir as montanhas, já não mais na Europa, mas em países distantes, onde, em alguns casos, existe um intenso uso do trabalho infantil. Com a economia circular, é possível salvaguardar a natureza, evitar tratamentos desumanos e favorecer a reconversão e o resgate de empresas, evitando a perda de postos de trabalho e de know-how. Além disso, a economia circular também permite pôr em segurança os resíduos, que se tornam matéria-prima a ser transformada. Retirados de negócios muitas vezes opacos, a fase de fim de vida dos resíduos se torna transparente e rastreável.

Qual é o futuro da economia circular?

A sensibilidade ambiental, de recuperação e de reutilização, ao invés da retirar materiais virgens da natureza, produzir, consumir e jogá-los nos aterros. Ao todo, no Plano Nacional de Recuperação e Resiliência, estão previstos cerca de 30 bilhões de euros [quase 190 bilhões de reais] para a economia circular e o ambiente, que se somam ao planejamento comunitário existente. É preciso uma mudança cultural, é preciso a coragem de todo o sistema, político, institucional, administrativo, industrial, para favorecê-la.

O mundo das empresas está se tornando mais ético?

A grande questão das mudanças climáticas e a preocupação ligada aos riscos que corremos pela situação ligada ao ambiente nos obriga a repensar os modelos econômicos. A responsabilidade ética da empresa se tornou um tema muito forte, e as gerações mais jovens entenderam que economia e ambiente, economia e ética devem ter um caminho comum, devem conviver. Hoje, a tecnologia permite alcançar os mesmos resultados de bem-estar sem penalizar o planeta. Então, está tudo nas nossas mãos.

Qual a importância dos valores para você, como pessoa e como empresário?

Aprendemos essas operações de reconversão industrial e de reutilização dos resíduos com o Evangelho: a pedra descartada pelos construtores se torna a pedra angular. Entre outras coisas, uma operação como uma reconversão industrial é difícil, cansativa e exige muito das pessoas em termos de sacrifícios. O trabalho é árduo, tanto que em algumas regiões da Itália os dois termos são até sinónimos. Devemos pensar que o tema do sacrifício é positivo, porque ajuda as pessoas a entenderem o valor das coisas que fazem. É graças ao sacrifício e ao facto de saber enfrentar as dificuldades com serenidade que se obtêm resultados extraordinários. Outra coisa muito importante é a capacidade de se colocar no lugar dos outros e de encontrar soluções para superar os problemas alheios. Isso, por sua vez, se traduz na capacidade de participar, de entender, de escutar e de se colocar de modo cristão a serviço dos outros na própria comunidade empresarial. Isso oferece uma vantagem, pois uma equipe coesa que trabalha serenamente é muito mais forte.

Como ocorreu a sua passagem da filosofia para o mundo dos negócios?

Para definir um novo modelo, é preciso a filosofia. A certa altura, comecei a entender que alguns paradigmas da empresa tradicional estavam entrando em crise. Pegar uma empresa que produz louças sanitárias para transformá-la em uma que fabrica paralelepípedos, utilizando matéria de recuperação em vez de matérias-primas, também deriva da capacidade de repensar categorias, algo que a filosofia lhe dá. Antes, pensava-se, como paradigma, que indústria e ambiente competiam, enquanto percebemos que a proteção do ambiente – que permite recuperar matérias-primas dos processos que antes poluíam – salva as empresas.

Como o seu grupo enfrentou a pandemia?

Todos trabalhamos para não fechar as empresas, utilizando luvas, usando máscaras e mantendo o distanciamento. Consegui manter as fábricas abertas, e a produção correu bem. Vivemos momentos de dificuldade, até porque ninguém sabia o que estava acontecendo, mas hoje estamos aqui, em plena serenidade. Vivemos em uma comunidade e não podemos pensar que temos direitos sem deveres, como o respeito pela saúde dos outros. Nós nos vacinamos e, se não conseguimos fazer com que todos se vacinem, queremos o green pass [passaporte da vacina] como instrumento que nos ajude a nos proteger.

Com Branko Milanović

'HOJE, ESTAMOS NA PRESENÇA DE UMA ELITE QUE SE AUTOPERPETUA NO TEMPO'

Branko Milanović é um dos especialistas mais proeminentes em nível mundial em matéria de desigualdade econômica, tema ao qual se dedicou a estudar por toda a sua vida. Como apontado no título, em seu último livro Capitalismo sem rivais (Todavia, 2020), Milanović argumenta que esse sistema se impôs como absoluto vencedor em nível mundial. Nele, analisa e contrapõe os dois modelos de capitalismo, o meritocrático liberal (cujo maior expoente seria os Estados Unidos) e o capitalismo político (representado fundamentalmente pela China). A entrevista é de Juan Manuel Telechea, publicada originalmente por Le Monde Diplomatique e reproduzida por Rebelión. A tradução é do Cepat /IHU

Iniciemos com esse conceito, que é uma das bases de seu livro. O que significa um capitalismo meritocrático liberal?
Para responder, convém dividir o conceito em duas partes, porque por um lado temos o componente liberal, que obedece a questões da esfera política e, por outro, o capitalismo, vinculado à organização econômica da sociedade. Começo por este último, que me parece o mais adequado para fins expositivos. Defino capitalismo do modo como Marx e Weber faziam, ou seja, como um sistema onde a maioria da produção é realizada pelo setor privado, onde esse capital contrata força de trabalho livre (do ponto de vista jurídico) e cuja coordenação está descentralizada. Os termos meritocrático e liberal provêm das definições de diversas formas de igualdade que John Rawls expõe em seu livro Uma teoria da justiça. Assim, a igualdade meritocrática se refere a um sistema onde o nível de renda das pessoas e o lugar onde estão na pirâmide de distribuição de renda depende exclusivamente de seu talento e dedicação. Ou seja, não existem obstáculos legais que impeçam os indivíduos alcançar uma determinada posição na sociedade. Mas, por outro lado, admite a total transmissão da riqueza de uma geração à outra. A igualdade liberal, ao contrário, é mais equitativa porque corrige, em parte, a transmissão de tal riqueza impondo elevados impostos às heranças e inclui a educação gratuita como mecanismo para igualar oportunidades e, assim, reduzir a transferência intergeracional de vantagens e privilégios. Desse modo, esse sistema levanta a questão de como são produzidos e intercambiados os bens e serviços (“capitalismo”), como são distribuídos entre os indivíduos (“meritocrático”) e o quanto de mobilidade social existe (“liberal”).

Em seu livro, você identifica uma série de transformações que esse sistema sofreu nas últimas décadas. Em particular, chamou muito a minha atenção o surgimento do que você denomina “homoplutia”.

Sim, isso para mim é uma das grandes mudanças que ocorreram nos últimos anos. Nas sociedades de meados do século passado, quando se analisava o estrato dos 10% mais ricos da população, encontrava-se rentistas e proprietários de grandes explorações industriais, ou seja, indivíduos que não eram contratados por ninguém e, portanto, sua renda não provinha do trabalho. Atualmente, uma porcentagem significativa desses 10% são pessoas que ocupam cargos diretivos em grandes empresas, dedicam-se à medicina, a ramos vinculados à tecnologia ou a outras profissões pelas quais recebem um salário em troca de seus serviços. Essas mesmas pessoas, seja por herança ou porque pouparam dinheiro suficiente ao longo de sua vida de trabalho, acumularam uma alta quantidade de riqueza que está investida em ativos financeiros que geram uma renda e que se complementa com seus salários. Ao analisar os dados para os Estados Unidos, observa-se que em 1980 apenas 15% dos indivíduos incluídos no decil mais alto da escala por sua renda do capital também ocupavam o decil mais alto da renda do trabalho, e vice-versa. Essa porcentagem dobrou nos últimos trinta e sete anos.

E aí surge outra questão muito importante que você estuda em seu livro, que é a dos casamentos entre essas mesmas pessoas que fazem parte dos 10% mais ricos.

Sim, alegra-me que você tenha mencionado essa questão porque, junto com a homoplutia, esse são dois temas nos quais venho prestando especial atenção, após publicar o livro. O interessante desses dois elementos é que, se os consideramos individualmente, não parecem ser mudanças negativas para a sociedade, mas ao combiná-los trazem novas causas para explicar o aumento da desigualdade. A homoplutia leva a uma menor estratificação social, ou seja, diferente do passado, hoje, não temos essa divisão tão nítida entre a classe trabalhadora e a empresarial. Por outro lado, o facto de que, atualmente, se observe que aumentaram os casamentos entre pessoas dos 10% mais ricos é resultado do maior acesso das mulheres a melhores níveis de educação e maior inserção laboral em postos melhor remunerados. Sendo assim, cada uma dessas questões, quando consideradas individualmente, é positiva para a sociedade. E mais, também reflete maior liberdade para escolher seu par. Não obstante, isso também se traduz em uma tendência a escolher uma parceira com um nível de educação e de renda semelhante, e isso contribui para o aumento da desigualdade na distribuição da renda. Nos anos 1950, os homens tendiam a se casar com mulheres de um status similar ao seu, mas quanto mais rico fosse o marido, menos era provável que a mulher trabalhasse e que tivesse sua própria renda. Atualmente, os homens mais ricos e com maiores níveis de formação costumam se casar com mulheres de renda e nível educacional semelhantes, quem mantêm seu trabalho. Sendo assim, hoje, nesses lares, você tem duas fontes de geração de renda muito altas (quando no passado você tinha apenas uma). Cerca de um terço do aumento da desigualdade nos Estados Unidos, entre 1967 e 2007, pode ser explicado por esse “casamento seletivo”.

Os elementos mencionados servem para compreender os mecanismos que geram desigualdade em um dado momento, mas em seu livro você identifica um processo de aumento da desigualdade que se transmite de geração em geração, certo?

Sim, eu acredito que a parte dinâmica desse processo é sumamente relevante, porque se você parte da homoplutia e do casamento seletivo e combina isso com a substancial soma de dinheiro que esses casais investem em seus filhos/as em termos de educação, observa uma transmissão dessas vantagens de uma geração para outra. Para se ter uma ideia, Daniel Markovits, em seu livro The Meritocracy trap, estima que um casal gaste de 5 a 10 milhões de dólares nessa formação. Ocorre que esse investimento permite que acessem as melhores escolas e universidades, o que, por sua vez, depois, lhes dá acesso a melhores postos de trabalho e a rendas mais altas.

E a tudo isso também é preciso acrescentar outro componente: a desigualdade na geração de riqueza.

Uma das motivações por trás do livro era identificar as forças que podem levar à criação de uma elite que se autoperpetue no tempo. Dentro desse processo, outro elemento central é a diferença nos rendimentos da riqueza acumulada. Em termos gerais, a riqueza é acumulada com ativos financeiros e em imóveis. Os 5% mais ricos da população mantêm a maioria de suas economias em ativos financeiros. Isso não significa que não tenham grandes casas cujo valor de mercado é altíssimo, mas em comparação ao total de sua riqueza representa uma parte menor. Ao contrário, para o resto da população com capacidade de poupar, sua moradia representa a maior parte de seu patrimônio. Ao estudar o que aconteceu com o rendimento médio, nesses dois tipos de ativos, verifica-se um canal adicional de aumento da desigualdade. Durante os trinta anos transcorridos entre 1983 e 2013, as famílias estadunidenses com maior patrimônio se enriqueceram mais porque os ativos financeiros deram maiores lucros que a moradia. A rentabilidade média anual (em termos reais) dos ativos financeiros foi de 6,3%, ao passo que a da moradia foi de um mero 0,6%. Mais ainda, se a sua moradia é o principal bem de seu patrimônio, mesmo que o preço gere um “efeito riqueza” em termos de valorização bem, na realidade, isso não se traduz em maior renda, dado que não gera juros, ao passo que, para o caso dos ativos financeiros, sim

E aí aparece o último elo de todo esse processo: a capacidade dessa elite de modificar as leis e regulamentos a seu favor.

Esse ponto é crucial, o controle do processo político. Por meio do financiamento e as doações para campanhas, essa elite consegue controlar boa parte da agenda política. Basicamente, o que acontece é que o dinheiro dessas pessoas vai para os candidatos que apoiam seus interesses. O controle político é um componente indispensável para a existência de uma classe alta que consegue se manter ao longo do tempo. Diferentes trabalhos dos cientistas políticos Martin Gilens, Benjamin Page, Christopher Achen e Larry Bartels forneceram, pela primeira vez na história, a confirmação empírica de que os ricos têm mais peso político e de que o sistema estadunidense passou de uma democracia a uma oligarquia. Para se ter uma ideia do volume de dinheiro, nas eleições estadunidenses de 2016, 0,01% dos mais ricos contribuíram com 40% do total das doações de campanha. Outra questão que também está presente nesses trabalhos é que é muito mais alta a probabilidade de que nas câmaras sejam debatidos e legislados temas de interesses para os estratos mais ricos, como, por exemplo, reduções nas alíquotas mais altas do imposto sobre os lucros ou menores regulações sobre as empresas, do que aqueles temas que interessam mais aos setores médios e baixos. Desse modo, o controle político é um componente indispensável para a existência de uma classe alta que consegue se manter ao longo do tempo.

Outra questão que achei muito interessante é a parte onde você destaca o poder discursivo dessa nova fase do capitalismo. Por exemplo, é muito difícil ir contra a ideia de mérito ou de que as mulheres tenham uma participação muito mais ativa no mercado de trabalho. Parafraseando Gramsci, esse sistema também domina o senso comum.

Sim, certamente é assim. E não só com nessas questões, mas também, por exemplo, com o tema dos impostos ou com a recusa em aumentar o investimento na educação. As pessoas mais endinheiradas utilizam cada vez menos a educação pública, então, seu raciocínio é que não deveriam pagar cada vez mais impostos por algo que não utilizam. Isso leva a uma redução da qualidade do sistema educacional público, reforçando o seu raciocínio. Desse modo, gera-se uma “profecia autorrealizável” que se torna muito difícil de combater.

Passemos para a outra parte de seu livro, onde analisa e compara o sistema “meritocrático liberal” com o “capitalismo político” da China.

Sim, na verdade, tomo a China como exemplo por ser o caso paradigmático, mas existem outros países que também poderiam ser agrupados dentro desse sistema. Esses casos não apenas se encaixam dentro desse sistema, mas também em sua gênese. No livro, analiso qual foi, em minha perspectiva, o papel global e histórico do comunismo. Nesse sentido, para mim, o comunismo foi uma ferramenta que permitiu aos países subdesenvolvidos e às colônias se livrar de seus colonizadores e da estrutura semifeudal de suas sociedades. Isto permitiu à China realizar uma transformação de todo o sistema político e econômico, que também poderia ser chamado de “capitalismo estatal”. No livro, apresento várias estatísticas que respaldam essa afirmação, sobretudo o fato de que hoje, na China, está vigente um modo de produção capitalista, mas com o Estado tendo um papel de protagonista. Isso significa que na China o Estado tem autonomia, algo que não acontece nos países ocidentais. Sendo muito simplista, o ponto seria que nos países ocidentais o Estado é controlado pela classe alta endinheirada, ou a burguesia, ao passo que na China tem autonomia. Isso não é necessariamente algo positivo, sabemos que existem sérios problemas de corrupção, mas lhe confere uma capacidade de ação e intervenção na economia muito mais rápida e efetiva.

E quais são as tensões que você nota nesse sistema? São as mesmas dos países ocidentais?

Não, não acredito que sejam as mesmas. Na China, a tensão maior está entre a necessidade de ter uma burocracia eficiente, mas que, ao mesmo tempo, seja regida pela lei. No capitalismo político (e aqui podemos incluir a Rússia), a lei se aplica de forma discricionária. O Estado pode utilizar a lei a favor – ou contra – um determinado grupo econômico, por exemplo. Isso incentiva a corrupção, porque a maneira de evitar que o Estado tome medidas contra você se dá por meio de subornos ou questões desse tipo. Sendo assim, a corrupção é inerente ao sistema. Fazendo um paralelo, é semelhante ao modo como a classe endinheirada nos sistemas meritocráticos liberais manipula o sistema a seu favor. A corrupção nesses países é menos evidente porque é praticada como parte do sistema, ao passo que na China é muito mais evidente porque inevitavelmente você precisa subornar os políticos para obter um benefício em troca.

Voltando ao sistema meritocrático liberal, é possível replicar essa categorização para os países latino-americanos, como a Argentina?

Não acredito que a mesma dinâmica seja observada nesses países. Justamente a Argentina me parece o melhor exemplo para mostrar por que não acredito que se aplique aqui. A questão é que nesses países se observa uma desigualdade muito alta que é estrutural e que, sobretudo, no caso argentino, não responde a outras clivagens (como pode ser o tema étnico, na Europa, ou a cor da pele, no Brasil). Portanto, a Argentina é um caso muito “puro”, onde vejo uma desigualdade muito alta na distribuição de renda, que é a raiz dos ciclos políticos e econômicos observados desde meados do século passado, ou mesmo antes, entre governos de esquerda e de direita. Agora, a pergunta então é quando e como termina com esse ciclo. Na minha opinião, termina quando são alcançados níveis de renda mais altos que permitem reduzir a desigualdade de modo permanente.

E como é possível romper esses ciclos?

Eu acredito que as diferenças entre as preferências políticas e os partidos em países como Argentina são muito grandes, justamente porque a estrutura subjacente é muito desigual. Se você tem dois grandes grupos sociais muito distantes entre si, isso fará com que as políticas econômicas que sejam reivindicadas e representadas por seus partidos políticos também estejam muito distantes. Ao contrário, quando a distribuição de renda é mais equitativa, os grupos – ou classes – sociais se assemelham mais entre si, o que reflete em políticas públicas menos distantes entre as diferentes facções políticas. Sendo assim, uma maneira de romper com esses ciclos é tendo um governo (ou vários) que se mantenha no poder por um tempo suficiente, digamos 20 anos, e que consiga um crescimento sustentado da economia, combinado com políticas que levem a uma permanente redução da desigualdade. Essa transformação socioeconômica permitiria aproximar os polos, conseguindo que na alternância política não sejam observadas mudanças tão bruscas nas políticas econômicas.

E qual avalia que deveria ser a agenda, em termos de políticas econômicas, para se chegar a isso?

Eu acredito que a base dessas políticas deveria almejar alcançar a igualdade de oportunidades. Esse deveria ser o eixo orientador das políticas. Isso significa equiparar as probabilidades de “subir” na pirâmide social, que todas as pessoas tenham as mesmas possibilidades, algo que hoje evidentemente não acontece. A igualdade de oportunidades levaria à redução da desigualdade na distribuição da renda. Mas, aqui, também aparece outro círculo vicioso porque, como vimos, a (desigual) distribuição de renda afeta as probabilidades de acesso a melhores salários. Então, para alcançar isso, é preciso começar corrigindo as disparidades atuais com impostos sobre a riqueza, a herança e as rendas altas. Não obstante, não se deve ficar apenas nos impostos, porque são uma ferramenta limitada e que causa muita resistência na sociedade, obviamente nas pessoas mais endinheiradas, mas também na classe média. Por isso, deveria ser complementado com outras políticas, como, por exemplo, um alto investimento em educação pública e a regulamentação do financiamento das campanhas eleitorais (em particular, no caso dos Estados Unidos). Em relação à educação, e pensando em países de renda média e alta, como a Argentina, a questão primordial não é tanto o acesso à educação, mas alcançar maior qualidade e igualar a remuneração obtida pelas pessoas com o mesmo nível educacional. Hoje em dia, as desigualdades salariais não se devem apenas às diferenças nos anos de escolaridade (elas vêm diminuindo sustentadamente), mas também à diferença na qualidade das escolas e as universidades, públicas e privadas. Portanto, o gasto em investimento público não apenas requer garantir o acesso de toda a população, mas aumentar a qualidade da educação pública ao mesmo nível da privada.

Com Pedro Bustamante Teixeira /IHU

CAETANO VELOSO: UMA POLÍTICA MUSICAL DE MÃOS LIMPAS

A obra de Caetano Veloso sempre foi um manifesto em favor da diversidade do pensamento. “A questão de sujar as mãos para fazer política como um político jamais passou pela cabeça de Caetano. Para ele, o engajamento do artista tem que se dar em relação a sua arte, a sua entrega. A valorização do artista engajado acabava por fazer que o engajamento fosse mais importante que a arte em si”. Pedro Bustamante Teixeira é graduado em Língua Portuguesa e Língua Italiana e suas respectivas literaturas pela Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF, instituição onde é professor pela qual também obteve os títulos de especialista em Estudos Literários, mestre e doutor em Letras: Estudos Literários. Entre suas publicações destacam-se Do samba à Bossa Nova: inventando um país (Curitiba: Appris, 2015), tema de sua pesquisa de mestrado, depois o livro Transcaetano: Trilogia Cê mais Recanto (São Paulo: Fonte Editorial, 2017) e, ainda, Sonhe com os sonhos ou o ano em que tive 18 anos (Animula Vagula Blandula, 2000).

Considerando a longa trajetória cultural e política de Caetano Veloso, qual sua relevância social no contexto brasileiro?

Ainda antes da fama nacional, que viria, de fato, com a apresentação de “Alegria, Alegria”, no Festival da Record de 1967, Caetano Veloso já despontava como um arguto teórico da bossa nova, ao responder às críticas insistentes de Tinhorão ao movimento. Corajoso, o jovem desconhecido Caetano enfrentaria o grande historiador da música popular brasileira dando pistas importantes do que estaria por vir quando o seu pensamento ganhasse uma voz e um corpo. Entre 1966 e 1968, Caetano ficaria cada vez mais conhecido devido, principalmente, a suas polêmicas participações nos festivais e nos programas de música da televisão brasileira. No dia 13 de dezembro de 1968, essa história acabaria abruptamente com o AI-5 e a prisão de Caetano Veloso e de Gilberto Gil. Do artigo em que defende a bossa nova dos ataques “histéricos” de Tinhorão, à alucinante sequência: chegada ao Rio, como um desconhecido, à fama na televisão, o Tropicalismo e à prisão política, não se passaram mais de três anos. No entanto, nesse brevíssimo espaço de tempo, Caetano Veloso e Gilberto Gil intervieram decisivamente no modo de ser homem, cantor, compositor, artista, no Brasil. No clássico livro Balanço da Bossa, lançado por Augusto de Campos em 1968, João Gilberto dizia que Caetano era para ele um pensamento. E é esse pensamento que começava a se revelar no pequeno artigo em que Caetano responde a Tinhorão. Desde então, esse pensamento, em uma curva ascendente que se encontraria com outros tantos de mesmo teor culminaria na Tropicália, suplantaria o velho paradigma do modernismo musical brasileiro e tornar-se-ia, ele mesmo, o novo paradigma que por muitas décadas, mutatis mutandis, nortearia o debate cultural brasileiro. Hoje, esse pensamento ainda tem muita força. Silviano Santiago disse em uma entrevista que enquanto Gilberto Gil e Caetano Veloso estiverem vivos e ativos não haveria como encerrar o tropicalismo, já que era algo que continuava existindo com eles. Na sequência do livro 1968: O ano que não terminou (São Paulo: Editora Objetiva, 2013), Zuenir Ventura escreveria, 50 anos depois, o livro 1968: o que fizemos de nós (São Paulo: Editora Objetiva, 2013); nesse, Caetano não poderia ser menos enfático: “O tropicalismo está vivo: o sonho não acabou”. Além disso, o Tropicalismo veio a socorrer teoricamente muitos dos mais interessantes projetos musicais nos anos 90 que destruíam o muro que separava o Rock dos anos 1980 da MPB. E ainda reverberou nos principais cenários musicais da contemporaneidade com a redescoberta dos Mutantes , de Tom Zé, do Tropicalismo que, mesmo passados mais de 30 anos da sua deflagração, ainda teriam o que mostrar à cena dos anos 1990 e ao século XXI.

Como compreender a obra de Caetano, em seus diferentes momentos, à luz da história política do Brasil, especialmente na segunda metade do século XX?

O tempo reverbera em Caetano Veloso. É possível entender muita coisa das décadas de 1960, 1970, 1980, 1990, 2000, 2010, ouvindo os discos de Caetano Veloso. Pode-se, de fato, viajar no tempo, em cada audição mais concentrada. O tempo está sempre ali, e Caetano, qual um Ulisses Dantesco, não se contenta com o glorioso retorno a Ítaca, que se dá com o sucesso clamoroso de Fina Estampa e de Prenda Minha; quando Caetano, que vendia em média 150 mil cópias, ultrapassa a marca de um milhão de discos vendidos, o errante navegante ainda busca o mar aberto sem fim. No entanto, desde o início da carreira, antevira o perigo de querer fazer da música popular um instrumento para um determinado propósito político. E o tempo logo traria as provas que comprovariam a razão de seus medos. Aparelhada pela cartilha do Centro Popular de Cultura - CPC, a música popular empobrecia-se esteticamente, ganhava dogmas, tabus e via pouco a pouco a sua popularidade se esvair. Novamente o modernismo musical brasileiro, muito mais Mário Andradiano do que Oswaldiano, se propõe a ensinar ao povo o que é ser povo. No entanto, pelas frestas, ainda escapava-se desse estereótipo. O Tropicalismo de Caetano vem para, enfim, confrontar esse modernismo musical brasileiro, tão contraditório se comparado ao que se apresentara na literatura, no teatro e nas artes plásticas a partir da Semana de 22. É essa a política que interessou Caetano enquanto artista. A política de lutar por uma arte autônoma, livre, desamarrada. Quando disse que era preciso “retomar a linha evolutiva da música brasileira”, Caetano pensava na Bossa Nova, em Jorge Ben e na fossa que se tornara o programa televisivo “o fino da bossa”, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues. Pensava no ridículo muro que separava a MPB, “politizada”, da Jovem Guarda, “alienada”, e em como destruí-lo, para que os eflúvios de um Roberto Carlos, também ele um herdeiro do canto de João Gilberto, pudessem confluir em um mesmo grande e vigoroso rio da música popular brasileira. A questão de sujar as mãos para fazer política como um político jamais passou pela cabeça de Caetano. Para ele, o engajamento do artista tem que se dar em relação a sua arte, a sua entrega. A valorização do artista engajado acabava por fazer que o engajamento fosse mais importante que a arte em si. Ainda secundário em um cenário em que brilhavam figuras como Elis Regina, Chico Buarque e Geraldo Vandré , Caetano tinha o tempo para observar a conjuntura e para organizar, com Gilberto Gil, o movimento que deflagraria uma dissidência profunda dentro da MPB. Por outra perspectiva, há de se lembrar que a ditadura que se estabeleceu no Brasil a partir do dia 31 de março de 1964, devido ao grande apoio popular que teve, também é chamada de Ditadura Civil-Militar. Se a canção de protesto tinha a pretensão de derrotar os militares, o Tropicalismo, com seu pessimismo alegre, vinha para questionar essa sociedade que sustentava um regime militar, questionar as tais pessoas da sala de jantar, que poderiam, vistas dessa nova perspectiva, reunir-se, independentemente do posicionamento político, na caretice habitual. A Tropicália vem para questionar toda uma tradição, uma série de tabus, crendices e mitos do Brasil. O confrontamento do elemento civil dessa ditadura é que levará Caetano Veloso e Gilberto Gil à prisão. Será a partir de um novo jeito de fazer canções e de ser no mundo que Caetano Veloso continuará confrontando a base civil da ditadura até que ela pereça e deixe de sustentar o regime militar que, sem ela, não parará mais de pé. Existir plenamente, ser um artista libertário, entregar-se ao fazer artístico, à vida; dar-se todo, foi o modo que o artista Caetano encontrou para intervir, inclusive na política.

De que forma o disco Tropicália, que é produzido por vários artistas, e meses mais tarde a promulgação do Ato Institucional - AI-5 são dois eventos antagônicos e marcantes do final da década de 1960 no Brasil? Como estão inter-relacionados?

Como dizia, aquele pensamento que começava a se revelar no artigo escrito para defender a bossa nova do crítico marxista Tinhorão, se faria voz e corpo e, em um espiral ascendente, culminaria na tropicália e, mais especificamente, neste álbum conjunto Tropicália ou Panis et Circensis em que se encontram os mais importantes personagens desse movimento musical. E é justamente a crítica que se faz às pessoas da sala de jantar, isto é, das pessoas da tradicional família brasileira que leva dois dos grandes líderes do Tropicalismo às grades. O Tropicalismo choca tanto a esquerda quanto a direita. Por conta disso, Caetano se considerava à esquerda da esquerda, pois observava tanto na esquerda quanto na direita um entendimento muito limitado do que seria ou do que poderia ser o Brasil e do que se poderia fazer aqui. O disco Tropicália, em que a união de forças tão díspares faz a força, tensiona ainda mais esse dissídio entre os artistas e os militares que, autorizados pelo AI-5, tentarão apagar os rastros de Caetano e Gil no Brasil.

Como a vida no exílio, depois de ter sido preso, juntamente com Gilberto Gil, impactou artisticamente a obra de Caetano Veloso?

A prisão foi o ponto final de uma história que, felizmente, ainda não teve um fim. Foi a pedra no meio do caminho de um poeta que o colocou em uma tenebrosa selva escura da qual demoraria tanto para escapar. O exílio aqui também, como para Dante, é uma experiência de dor: “eu não sou daqui, eu não tenho amor, eu sou da Bahia, de São Salvador”. O primeiro disco londrino é, sem dúvida, o mais melancólico dos discos de Caetano, e, se não fosse pelo socorro da banda de Jards Macalé, Transa não seria menos tristonho. Ainda assim, o exílio acabou por restringir o trabalho de Caetano Veloso à música; até a prisão ele pensava que a sua intervenção na música popular seria pontual e que depois ele seria diretor de cinema ou outra coisa dentro da área artística. Limitado à música, por não ter forças de fazer mais do que já tinha feito e pela condição de desterro em que se encontrava, acabou por se concentrar mais e mais no canto e no seu instrumento. Em Londres, o violão de Caetano começa a ser mais valorizado, e é a partir de então que o artista também passa a tocar nos discos. Esse passo é decisivo para o artista Caetano Veloso que poderá inclusive se apresentar sozinho e contribuir nos arranjos musicais de seus discos e shows. Na Inglaterra, Caetano e Gil, além de receberem em suas casas tantos artistas brasileiros que confluíam de toda parte, ainda puderam presenciar in persona a nata do rock contemporâneo, tendo assistido a shows de Jimi Hendrix, John Lennon, The Doors e dos Rolling Stones, e de terem participado do lendário Festival da Ilha de Wight em 1970. No show dos Rolling Stones, Caetano conta que presenciara a mais impressionante performance de um astro de rock, a de Mick Jagger , e no citado Festival viu também que a música que fazia com Gil e seus colegas brasileiros também poderia entusiasmar essa turma. De fato, não passa despercebida a apresentação desse grupo de brasileiros. Um artigo publicado no New York Times saudou o show brazuca como aquele que, dado o esgotamento de um estilo, a saber o rock dos grandes festivais, parecia com mais frescor. Pudera, em 1970, o sonho que começara a ser experimentado a partir do verão power flower de 1967 no hemisfério norte, tornava-se um grande pão bolorento, do ideal de paz e amor passava-se à fórmula fácil: “sexo, drogas e rock’n’roll”. Pouco tempo depois, Gilberto Gil leria um artigo para Caetano em que John Lennon fazia o seu conhecido anúncio: “o sonho acabou”. Depois de um breve silêncio, Caetano retrucaria: “acabou para ele”. Mas não é no exílio que esse sonho será buscado. Se como disse Caetano: “ninguém é profeta longe de sua terra”, embora o disco Transa já lhe apresentasse excelentes perspectivas no exterior, a volta ao Brasil se fazia mais necessária para a saúde do artista do que qualquer projeto artístico internacional. Após esse corte que se dá com o retorno de Caetano em 1972, o projeto artístico internacional ainda continuaria, mas, desde então, sempre a partir do Brasil.

Por que as canções A outra banda da Terra e Estrangeiro são importantes no contexto da trajetória de Caetano?

Acho as duas canções belíssimas, no entanto, acredito que seja difícil analisá-las destacadas dos discos em que estão inseridas. Enquanto a “Outra Banda da Terra” é uma das últimas canções do disco Uns de 1983, Estrangeiro abre o disco homônimo de 1989. Se em 1982, Caetano comemorava a felicidade decorrente de sua feliz experiência de banda com A Outra Banda da Terra, o momento mais alegre de sua vida, quando enfim ultrapassava as dores do exílio e se reencontrava com o Brasil, com o sucesso, com a alegria; em 1989, já desconfiado com os destinos da redemocratização, mais um processo de modernização que ocorria, mas que, por não ser suficientemente acabado, ainda traria consigo tantas carcaças de outros tempos que acabariam por garantir a manutenção dos mesmos atores por trás de uma maquiagem democrática. A Outra Banda da Terra é a canção de despedida desse grupo que se formou no final da década de 1970 para acompanhar Caetano e que irá gravar com ele Muito - Dentro da Estrela Azulada (1978), Cinema Transcendental (1979), Outras Palavras (1981), Cores e Nomes (1982) e Uns (1983). O título é uma forma de registrar o nome da banda formada por Vinicius Cantuária, Tomás Improta, Perinho Santana e Arnaldo Brandão, que Caetano lembrará como aquela que o acompanhou em seu momento mais feliz com a música. Quando se refere à canção, Caetano costuma se lembrar do “r” retroflexo que dá um tom caipira à música. O que não se ouvia, mas existia em um Brasil profundo, seria registrado enfim pela indústria fonográfica brasileira. Caetano ainda enfatiza a presença na canção da técnica de contrabaixo denominada Slap, introduzida no Brasil por Arnaldo Brandão, ainda antes da formação de A outra Banda da Terra, na gravação de Odara (1977). Se a canção de Uns é gozo, Estrangeiro é o seu oposto: aflição, angústia, dor. É quando Caetano irá falar das dores de ser brasileiro, de ter que conviver com todas as contradições que nos habitam, com a coisa bela e com o horrível, “com o macho adulto, branco, sempre no comando”, que mesmo após a vitoriosa campanha pelas Diretas Já, ainda se repetiria ad nauseam, assim como os casos de machismo, de racismo e da manutenção da enorme desigualdade social. Se A outra banda da terra encerrava uma fase, Estrangeiro inaugurava uma outra em que o Tropicalismo voltaria ao debate com uma longa revisão de sua história que culminaria em Verdade Tropical (São Paulo: Companhia das Letras, 1997). Se a redemocratização não trazia consigo tudo que prometia, ela pelo menos dava a Caetano a oportunidade de começar a conversar com o seu público sobre o Tropicalismo e sobre o que tinha acontecido com ele e com Gil após o AI-5. Enquanto ele não conseguisse isso, permaneceria um estrangeiro no lugar e, ainda mais, no momento, e o tropicalismo não seria mais que um espectro. No entanto, como esclareceria Derrida no final dos anos 1990: “o espectro é sempre um retornante”.

Sua tese de doutorado versa sobre a “Trilogia Cê” de Caetano. Como se caracteriza poética e musicalmente esse trabalho e por quais discos ele é composto?

Entre os anos de 2006 e 2013, Caetano Veloso vive uma outra experiência de banda, dessa vez com a Banda Cê, composta por Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcelo Callado. Depois de um longo e glorioso período em que conduzido por Jaques Morelenbaum lançou discos e espetáculos primorosos, que passaram pelos principais teatros do Brasil e do mundo, Caetano ainda partiria para mais uma empreitada. Se até então, se apresentava com orquestras, naipes de cordas e metais e grandes bandas, ele agora, o nosso Odisseu Baiano voltaria ao mar aberto com uma pequena embarcação elétrica com apenas três tripulantes. Com a Banda Cê viria enfim um álbum de inéditas, o que não acontecia desde Noites do Norte (2000). Um não, três. O que era para ser um disco, o disco Cê (2006), acabou se tornando uma banda que ainda gravaria Zii e Zie (2009), após uma temporada de ensaios abertos no Rio, e Abraçaço (2012), que culminaria na turnê de despedida em que canções como O Império da Lei e Um Comunista já antecipavam um pouco o clima das jornadas de junho de 2013 . Esses discos trazem um Caetano renovado pela experiência com os jovens da Banda Cê e pelo contato direto com os jovens em casas de espetáculos mais acessíveis a eles. É quando o monumento Caetano Veloso recobra o movimento e se faz novamente contemporâneo. O que se vê é um Caetano que se quer menor para estar vivo e escapar da máscara mortuária que já lhe aprisionava a um tempo pretérito, a vibrações vencidas. E é por isso que ele diz já na primeira canção do primeiro disco da trilogia: “você não vai me reconhecer, quando eu passar por você”. O novo Caetano provoca estranhamento com muitas das canções dos discos, mas também sabe ser espelho da beleza e, equalizando as diferenças, vai trazendo para sua obra toda uma nova geração que se reconhece no rock setentista de Transa, na Banda Cê e nas canções que a banda inspira Caetano a recordar. Zii e Zie é já a maturação desse processo. Se em Cê, Caetano se aventurava no indie rock dos jovens da Banda Cê, em Zii e Zie, Caetano irá trazê-los, se aproveitando do modo que Pedro Sá criou para acompanhar, com uma guitarra distorcida, o samba, para a sua casa: a música popular brasileira. Mas eles viriam com os seus instrumentos e a sua própria linguagem provocando uma nova síntese que será também chamada de Transambas. Por fim, se Cê e Zii e Zie podem ser lidos como narrativas, Abraçaço, um disco de celebração, é uma coleção de singles que compõe algo mais próximo de um livro de contos do que um romance.

Como a amizade com Gil é, também, uma dimensão importante na obra de Caetano e como essa relação produziu uma mútua troca artística entre estes personagens?

Gilberto Gil também é Caetano Veloso. Caetano Veloso também é Gilberto Gil. Essa amizade transcendental é um dos grandes acontecimentos da música popular brasileira. E não é pelo fato de terem sido parceiros em composições importantes. A amizade deles não envolveu uma parceria estável. Ao longo de mais de 50 anos de amizade e parceria, não foram tantas as canções que eles assinaram juntos. A parceria é, sobretudo, afetiva, por muitos anos foi mesmo familiar, e ainda foi musical e intelectual. Enquanto Caetano aprendeu com Gilberto Gil os segredos da bossa nova, Gilberto Gil absorveu em seu trabalho o pensamento inovador de Caetano Veloso e o desenvolveu nas mais variadas frentes. A virada Tropicalista de Gil não aconteceria sem a insistência de Caetano; sem Gil, Caetano não se estabeleceria como um artista da música. São muito diferentes, mas se complementam, pois há, no berço dessa amizade, a devoção por João Gilberto e o sonho de correr mundo, de correr perigo (viver) juntos.

Quais são as principais semelhanças e diferenças entre o “jovem” Caetano e o “velho” Caetano do ponto de vista artístico e político?

Caetano está entre os artistas que mantêm a coerência daquilo que faz com aquilo que fez. A necessidade de trazer às claras o tropicalismo, o seu exílio e o retorno ao Brasil, decorrem da importância que o artista dá a essa coerência. O tropicalismo não foi somente uma intervenção pontual na cultura a partir da configuração de um cenário nacionalista na cultura popular brasileira. O movimento é também um projeto dinâmico que requer muita perspicácia e coragem para que se continue fiel a ele. E é esse movimento que deve se renovar a todo momento que impulsiona Caetano a permanecer atento e forte para continuar trazendo consigo esse sonho de Brasil e essa vontade de, a partir dessa utopia, refazer o mundo. Caetano sempre diz: “quero ser lúcido e alegre”, e complementa: “é muito difícil, mas eu fico tentando”. O desafio é de sustentar a alegria, alegria diante do tempo, tempo, tempo, tempo. Mas é esse desde o início de sua vida artística o seu posicionamento diante da vida, da arte e do Brasil. As questões que foram colocadas nos anos sessenta ainda continuam significando muito para Caetano Veloso, e ele desde então se mantém firme no sonho de refazer o mundo a partir da singularidade do Brasil. Hoje, esse pensamento pode até mesmo parecer ridículo, mas Caetano insiste em seu otimismo programático, que, como diz Thiago Amud: “o Brasil tem que ter jeito”.

Edição 169, junho 2021

Com Riane Eisler

'AINDA PENSAMOS QUE A NORMA DOS HOMENS É A NORMA DAS MULHERES'

É possível viver em um mundo sem relações de dominação entre os seres humanos? Para a socióloga e escritora austríaca Riane Eisler (85 anos) a resposta para esta pergunta é um sim categórico. Bastar olhar para o passado para comprovar: segundo as evidências arqueológicas, antropológicas e científicas, durante um longo período convivemos com um sistema de cooperação e associação. Esta é a tese principal de seu livro O cálice e a espada: nosso passado, nosso futuro, escrito em 1987. Nestes 34 anos, o texto vendeu mais de meio milhão de exemplares em todo o mundo e se tornou uma referência mundial no campo da evolução humana. Chegou-se a afirmar que sua importância é comparável ao de A origem das espécies, de Charles Darwin. Eisler nos exorta a nos afastarmos da visão patriarcal com a qual estudamos a história das relações humanas, não só como uma forma de justiça, mas como o único caminho possível para imaginar futuros melhores. A entrevista é de Berta Gómez, publicada por El Diario. A tradução é do Cepat /IHU

Enquanto concebemos os contos e mitos como ferramentas morais, que contêm uma mensagem concreta, a história se apresenta como uma disciplina objetiva. De facto, é assim?

A história não é uma disciplina objetiva, longe disso. Basta ver como agora a história oficial dos Estados Unidos está começando a incluir as vidas dos escravos afro-americanos, dos povos indígenas e das mulheres, mesmo que contando com eles apenas nas margens. Precisamos mudar as lentes pelas quais olhamos a história, percebermos que foram utilizadas para transmitir normas, formas de vida e valores morais. Isto requer que os historiadores usem uma lente mais ampla, que não marginalize mais ou simplesmente ignore a maioria da humanidade: mulheres e crianças. Esta é a lente holística do estudo que me levou até O cálice e a espada e livros posteriores.

Por que considera que conhecer o passado, em uma perspectiva holística, é imprescindível para constituir o nosso futuro?

Para assentar as bases de uma forma de vida futura mais eficaz, mais justa e menos violenta devemos prestar atenção em todo o sistema social, sem marginalizar ninguém. O uso desta abordagem no estudo do passado nos permite ver que em nosso sistema de valores de dominação se desvaloriza tudo o que é considerado feminino, como o cuidado, a atenção ou a não violência. Observar apenas como a nossa velha economia, histórias e linguagem funcionam nos prende, fazendo-nos pensar que este sistema é normal, quando, na realidade, desvalorizar o trabalho que sustenta a vida é anormal, patológico, e tanto a teoria capitalista como a socialista reforçam este pensamento defeituoso, relegando o cuidado das pessoas e da natureza, e separando o trabalho reprodutivo do produtivo. Entre as muitas descobertas da história, reveladas em seu livro, é devastador como foi implantada a ideia de que só existia no direito o vínculo dos filhos com o pai, mas não com a mãe, mera receptora dos filhos de seu esposo. De fato, ainda sobrevive essa cultura, quando as crianças recebem, sistematicamente, apenas o sobrenome do pai... Todos herdamos esta forma de pensar, onde o que é considerado a norma ideal para os homens se torna a norma ideal para todos. Nosso sistema econômico, seja capitalista ou socialista, foi construído em conformidade com este homem como norma universal, incluindo a nossa definição de trabalho produtivo que ainda é ensinado nas escolas de economia, sem abarcar o trabalho de cuidados nos lares. É preciso considerar que nem Smith e nem Marx incluíram o trabalho feminino, cuidar das crianças, doentes e idosos, como trabalho produtivo, nem tampouco alertaram sobre o cuidado da natureza. Manter um ambiente limpo e saudável era para ambos um trabalho que deveria ser feito de forma gratuita. Mais uma vez, a boa notícia é que estamos começando a ver políticas governamentais e comerciais que oferecem certo apoio para este trabalho humano essencial, como a licença paternidade remunerada e a atenção médica universal. Mas isso é apenas o começo. Precisamos reconstruir nossas regras, recompensas e práticas económicas.

Também expõe que as estatuetas femininas do Paleolítico são sexualizadas quando interpretadas a partir de um marco patriarcal atual. Mas, por acaso, é possível fazer de outra forma? De fato, podemos chegar a saber qual era a sua intenção?

O problema é que os arqueólogos, como você disse, projetaram sua cosmovisão sobre o que descobriram. É verdade que não podemos saber qual era a intenção dessa arte, mas, sim, existem coisas que podemos entender ao juntar várias das descobertas feitas e compará-las. Por um lado, essas figuras femininas eram estilizadas de modo concreto, não tinham rosto e as capacidades de dar e sustentar a vida, inerentes aos corpos das mulheres, eram deliberadamente ressaltadas: possuem seios grandes e possivelmente estão grávidas. Sendo assim, está claro que não eram uma forma de pornografia antiga, como foi sugerido. Alguns especialistas reconheceram isto e, no entanto, mais uma vez presos ao paradigma da dominação que desvaloriza as mulheres e seus corpos, decidiram chamá-las de ‘bonecas’. Esta também é uma interpretação absurda. Pensemos na Vênus de Laussel, esculpida na boca de uma caverna: não poderia ser uma boneca portátil. Além disso, tem uma vulva claramente gravada e na outra mão segura uma lua crescente com doze frisos: o número dos ciclos lunares e dos ciclos menstruais da mulher. Portanto, embora seja possível que nunca saibamos todos os detalhes, sim, podemos concluir que a mulher foi uma figura central para uma história religiosa e espiritual na qual a menstruação das mulheres e os ciclos da lua eram celebrados nos santuários das cavernas.

Apesar destas descobertas, não considera que essas sociedades fossem matriarcais. As mulheres não tinham mais poder sobre os homens. Não é inevitável que sempre existam relações de poder entre os indivíduos?

Sempre existem relações de poder entre os indivíduos, mas a forma como o poder é definido é diferente nos sistemas de dominação e no de associação. O título O cálice e a espada utiliza duas metáforas diferentes para explicar o poder. A espada é um símbolo do poder de controlar, dominar, tirar a vida, conforme o poder é definido nas sociedades orientadas para a dominação. O cálice é um símbolo do poder de dar, nutrir e iluminar a vida. Esta é a norma geral para o poder em sociedades orientadas para a associação. Hoje vemos sinais de uma mudança. Por exemplo, as feministas fazem uma distinção entre ‘poder sobre’ e ‘poder com’, e na literatura corporativa, o bom gerente ou líder não se define mais como um policial ou controlador, mas como alguém que inspira e facilita. Nosso paradigma ou cosmovisão está mudando, ao menos para algumas pessoas. Mas devemos avançar e deixar para trás o conhecimento convencional sobre o nosso passado, presente e as possibilidades de nosso futuro, e isto também requer deixar para trás nossas categorias sociais convencionais.

Qual é a alternativa?

Em primeiro lugar, é preciso deixar para trás as velhas categorias com as quais todos estamos familiarizados, como direita ou esquerda, religiosa ou secular, capitalista ou socialista, oriental ou ocidental, e olhar o mundo pelas lentes da escala de associação ou dominação. Isto é essencial: não podemos resolver problemas com o mesmo pensamento que os criou. E os psicólogos linguísticos nos dizem, há muito tempo, que as categorias proporcionadas pelo idioma de uma cultura canalizam o nosso pensamento. Por exemplo, como categoria social específica de gênero, só recebemos o patriarcado e o matriarcado, seja com o governo dos pais ou mães, sem associação ou alternativa gilânica.

Em seu livro, explica que houve um momento de caos ou desequilíbrio em nossa história que mudou o sistema de forma abrupta para dar lugar a algo totalmente diferente. Vivemos agora um momento semelhante?

Graças à teoria do caos e da dinâmica não linear, sabemos que nos períodos de desequilíbrio econômico, social e ambiental os sistemas podem mudar de maneira fundamental. Isto aconteceu quando a revolução industrial se acelerou, após a Idade Média religiosa, com sua Inquisição, as cruzadas, a queima de bruxas, a tortura pública, etc. Depois, vimos muitos movimentos desafiando as tradições de dominação que diziam ordenadas por Deus. Agora, parece que vivemos a passagem para uma era pós-industrial. No entanto, conforme destaco nos dois capítulos finais de 'O cálice e a espada', isto não significa que nos aguarde, com certeza, um futuro baseado na associação. Parece lógico que o sistema de dominação que acompanha o alto nível de desenvolvimento tecnológico esteja chegando a seu fim, mas também pode levar com ele a nossa espécie.

Embora este livro chegue até nós pela primeira vez traduzido ao espanhol, na realidade, foi publicado em 1987 e gerou um enorme impacto. Naquele momento, você afirmava que continuava havendo razões para a esperança. Continua pensando assim?

O certo é que o livro teve um impacto: infiltrou-se na consciência. Ainda que o movimento tenha sido lento e desigual, marcado por regressões periódicas à dominação. Para mudar isto e continuar avançando, é preciso uma nova forma de pensar, um novo marco conceitual de sistemas integrais da escala social de dominação-associação. Minhas razões para a esperança, que ainda se mantém, estão baseadas na abissal evidência que temos agora de que, durante milénios, a evolução cultural humana caminhou em uma direção de associação, que a guerra tem no máximo 10.000 anos e que as mulheres e homens viviam como iguais. Contudo, precisamos ser agentes ativos dessa transformação, divulgando esta evidência. Devemos demonstrar que estas questões não são apenas questões de mulheres, mas sociais e econômicas fundamentais e que, a menos que prestemos uma atenção especial, continuaremos tendo regressões cada vez mais perigosas.

Com Walter Isaacson

'AS PESSOAS TERÃO QUE ENTENDER A FORÇA DESTA REVOLUÇÃO BIOLÓGICA'

Walter Isaacson escreve sobre gênios. Um de seus livros aborda a vida e obra de Leonardo da Vinci, outro se centra em Benjamin Franklin, outro, em Steve Jobs, e o mais recente, “El código de la vida”, concentra-se em Jennifer Doudna, a bioquímica que desenvolveu um método para editar o genoma humano, abrindo um mundo de possibilidades para a cura de doenças como o câncer ou para enfrentar a Covid-19. “Precisamos de um novo Renascimento, baseado na crença na ciência, no bom governo, na democracia e nas liberdades individuais”, disse, de Nova Orleans, sua cidade natal, para a qual retornou para dar aulas na Universidade Tulane, após percorrer o mundo como jornalista, editor-chefe da revista Time e CNN, e escritor. A entrevista é de Hugo Alconada Mon, publicada por La Nación. A tradução é do Cepat /IHU

Escreveu sobre algumas das maiores figuras da história. De Da Vinci a Franklin e Jobs. Por que se concentrou em Doudna e por que agora?

Porque acredito que a revolução das ciências da vida e a biologia será um evento mais importante que a revolução digital produzida pelos computadores e a Internet. Queria abordar tanto as promessas como os perigos que podem surgir da biotecnologia e da edição de genes humanos e, para isso, Jennifer Doudna era uma grande personagem central, pois esteve envolvida desde o início na descoberta da estrutura do RNA. E como sabemos pelas vacinas contra o coronavírus e as ferramentas para a edição de genes, o RNA é uma molécula fascinante que nos ajudará a determinar nosso futuro genético. Sendo assim, quis contar a história desta revolução através de seus olhos, mais ainda quando também esteve envolvida nas questões políticas e éticas que surgem da engenharia genética.

Em seu livro, você destaca que enfrentamos a terceira revolução dos tempos modernos. A primeira foi a revolução dos átomos, a segunda a dos bits e agora a dos genes. É otimista sobre o que prevê?

Sou otimista que as moléculas se tornem os novos microchips, seremos capazes de reprogramá-las para combater vírus e bactérias ou o câncer. Poderemos usá-las para curar doenças genéticas, seremos capazes de usá-las para criar bebês mais saudáveis, e isso me dá otimismo. Mas também me preocupa que isto possa ser mal utilizado. Jennifer Doudna teve um pesadelo após ter criado esta tecnologia e esse pesadelo foi que alguém queria conhecê-la para descobrir como esta tecnologia funciona e quando essa pessoa entrou na residência, essa pessoa olhou para cima e era Adolf Hitler. Depois disso, Doudna começou a reunir cientistas do mundo todo para lhes fazer uma pergunta: Como podemos evitar que esta tecnologia seja utilizada para maus propósitos?

Aprendeu algo sobre as pessoas, enquanto fazia a pesquisa para este livro?

Acredito que o livro expõe que temos uma curiosidade natural. Este livro trata de uma viagem de descoberta realizada por dezenas de cientistas, ao longo de 20 anos, que tinham a curiosidade sobre como funciona a vida e o que acontece dentro das células humanas. Essa curiosidade levou à invenção de ferramentas poderosas, que muitas vezes é o que acontece quando prestamos atenção ao que nos é intrigante. Estas ferramentas afetarão a espécie humana porque nos permitirão guiar nossa própria evolução. Então, este livro aborda como os humanos são uma espécie curiosa, criativa e inventiva. E também é um livro sobre como devemos ter cuidado quando arrebatamos o fogo dos deuses para não abusar dele.

Em seu livro, aborda a rivalidade entre Doudna e outros cientistas, e como essa rivalidade os obrigou a avançar. Nesse sentido, convido você a responder à luz da pandemia que enfrentamos: O que podemos aprender de seu livro sobre os processos científicos?

Temos que aprender a apreciar mais a ciência, esta pandemia global foi um desastre, mas poderia ter sido ainda pior se não tivéssemos tido a possibilidade de investir e desenvolver vacinas. Portanto, espero que isto faça com que as pessoas apreciem mais o que os cientistas fazem. E que também leve a respeitar mais as vacinas e a evidência científica sobre como combater os vírus.

Liderou ‘Time’, CNN e o Aspen Institute, dá aulas na Universidade de Tulane, assessora uma empresa de Wall Street... Dada sua perspectiva única, quais são os desafios que temos pela frente, quando estivermos todos vacinados?

Acredito que nosso maior desafio será salvar a democracia da tentação do autoritarismo. Vemos muitas pessoas pelo mundo que se voltaram contra a ciência, a democracia e que se manifestam a favor de líderes autoritários, acreditando inclusive em teorias da conspiração. Devemos buscar recuperar a nossa fé nos fatos e nas evidências, e recuperar o respeito pelas outras pessoas que não pensam como nós. Essa foi a base de nossa democracia.

Permita-me uma digressão, estes desafios são semelhantes a alguns dos desafios que Da Vinci enfrentou? Penso, em particular, na obscuridade que o precedeu e cercou, na falta de informação consistente, nas multidões que ignoravam evidências científicas... Ou minha comparação é infeliz?

Bom, acredito que o que aprendemos da época de Da Vinci é como os humanos começaram a pensar baseados em fatos científicos comprovados. Leonardo fez parte do próprio início da revolução científica. Tinha teorias sobre coisas como se o dilúvio bíblico aconteceu ou não. Também analisou camadas de fósseis e teve a ideia de como a Terra foi criada ao longo de centenas de milhares de anos. Ele acreditou em formar suas teorias baseado nos fatos e provar essas teorias com experimentos, o que ajudou a assentar as bases para a revolução científica. Penso que devemos voltar a esse tipo de pensamento, já que foi esse tipo de pensamento que ajudou a criar o Renascimento, que estava surgindo em Florença, durante o tempo em que Leonardo Da Vinci viveu lá. Mais ainda, acredito que precisamos de um novo Renascimento baseado na crença na ciência, no bom governo, na democracia e nas liberdades individuais. Quer tomemos Da Vinci, Benjamin Franklin ou Doudna como nossos heróis, espero que meu livro celebre esse tipo de pensamento.

Sendo escritor e jornalista, sabe que acaba de me dar o título...

[Riso] Sim, sei.

Como combina essa ideia de que precisamos de um novo Renascimento com a cultura do cancelamento que se espalha por universidades dos Estados Unidos e outras semelhantes desses tempos?

Penso que temos que encontrar um equilíbrio entre a liberdade de expressão e a necessidade de ser amáveis e respeitosos com aqueles que nos cercam. Acredito, também, que os dois extremos geram problemas. Certamente, é uma má ideia “cancelar” ou marginalizar alguém porque não concordamos com seus pontos de vista, por outro lado, acredito que as pessoas deveriam expressar seus pontos de vista de uma maneira que seja respeitosa com os outros e que não tenha apenas a intenção de enfurecer ou provocar os outros. Por isso, considero que temos que voltar a um diálogo mais civilizado, que por sua vez respeite a liberdade de expressão.

Há alguma figura contemporânea que avalia que encarne este ideal?

Sim [silencia e pensa durante alguns segundos]. Mas mais do que destacar uma figura, prefiro destacar que, em nível comunitário, em todo os Estados Unidos, as pessoas estão sendo empreendedoras e muitas trabalham juntas para resolver problemas. Essas pessoas tentam melhorar suas vidas e as comunidades em que vivem, ao mesmo tempo em que procuram ser muito respeitosas com seus vizinhos, com aqueles que as cercam. Pelo que observo, é principalmente em nível nacional que as redes sociais ampliam nossos ressentimentos e estimulam aqueles que promovem ódios. Por isso também acredito que o ressurgimento do sistema político estadunidense virá de baixo para cima, comunidade por comunidade.

Em seu livro, também aborda as questões éticas que surgem destes avanços. Corremos o risco de um neonazismo, com sua obsessão em criar uma raça pura de humanos superiores?

Penso que o perigo que enfrentamos não virá da mesma forma como os nazistas tentaram fazer, que era a eugenia ordenada e coordenada a partir do governo. Penso, ao contrário, que o perigo seria se permitirmos que seja um mercado livre absoluto, com um sistema sem regulamentação alguma, no qual os ricos podem comprar genes melhores para seus filhos. Isso conduziria não só a uma maior desigualdade em nossa sociedade, mas à codificação genética da desigualdade. Teríamos como resultado uma espécie humana formada por uma elite genética e uma subespécie humana geneticamente desfavorecida.

Permita-me um desafio. Por que um argentino ou latino-americano deveria ler o seu livro? Por acaso estes desafios que você traça não são muito futuristas ou próprios de uma sociedade hiperdesenvolvida, quando nosso hemisfério enfrenta desafios mais urgentes?

Acredito que as pessoas do mundo todo terão que entender e apreciar a força desta revolução biológica. A Argentina conta com alguns dos cientistas mais criativos do mundo. Um dos heróis de meu livro, por exemplo, se chama Luciano Marraffini, é argentino. Por isso, acredito que especialmente uma nação como a Argentina, com pessoas tão talentosas, pode estar na vanguarda desta nova revolução biológica, mas também acredito que o cidadão médio ao redor do mundo deve entender esta revolução para que todos juntos possamos decidir as regras e regulamentações que queremos fixar.

De facto, quais são as perguntas que deveríamos nos fazer agora?

Penso que durante os últimos 40 anos deveríamos ter feito perguntas mais difíceis sobre as redes sociais e se seriam uma força que nos conectaria e uniria ou se seriam uma força que dividiria e polarizaria. Em relação ao segundo eixo, penso que a grande questão que devemos nos fazer no futuro é dupla: Como utilizaremos a biotecnologia para ajudar o maior número de pessoas possível? Que papéis teremos quando tivermos que definir até onde chegaremos, interferindo na espécie humana?

Pensa em escrever sobre outra figura histórica ou contemporânea?

[Risos] Ainda não. Estou fazendo um descanso.

Há alguma pergunta que não fiz para você e que gostaria de abordar?

Você fez um bom trabalho. Leu muito para esta entrevista e eu agradeço. Foram perguntas muito inteligentes. Agora, vejamos o que ficou pendente que valeria a pena abordar... [Silencia alguns segundos] Penso que um dos perigos que o mundo enfrenta é que as pessoas rejeitem a ciência e o método científico. Isso é perigoso quando as pandemias aparecem, mas também é perigoso para a nossa democracia porque depende de as pessoas terem a mente aberta e observarem a evidência, antes de chegar a conclusões. No entanto, grande parte da política atual se baseia e é impulsionada pela ideologia, em vez de manter a mente aberta. Isso é muito preocupante. Podemos aprender da ciência. Como? Abordando a política com a mente aberta, do mesmo modo que abrindo nossas mentes poderemos aprender a apreciar mais e melhor o que os cientistas fazem.

Com Thomas Piketty

'É HORA DE REDISTRIBUIR A RIQUEZA

Em Trento para o Festival de Economia, Piketty intitulou sua conferência "Socialismo participativo contra Socialismo de Estado". Ele faz questão de esclarecer que além da palavra com o S que tanto medo causa nos Estados Unidos, sua proposta olha mais para as sábias social-democracias de molde europeu, a Suécia na frente, com um poderoso Estado de bem-estar, tributação das rendas fortemente progressiva, participação de trabalhadores na gestão de empresas como no modelo alemão. Dito isto, suas propostas são decididamente radicais, com um imposto sobre a renda que - teoriza - deveria chegar a 90% para quem tem uma renda superior a 10.000 vezes a renda média (na Itália significaria quem declara mais de 200 milhões) e um patrimonial permanente de igual dimensão cuja função deveria ser a de tornar “temporária” a propriedade, distribuindo através do sistema fiscal uma “herança para todos” de 120 mil euros para cada cidadão. A entrevista é de Francisco Manacord, publicada por la Repubblica. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

Você publicou “Capital e ideologia” em 2019. O que mudou com a pandemia?

A pandemia, para além dos seus terríveis efeitos em todo o mundo, mostrou a fragilidade do nosso modelo econômico e social. Todos compreenderam que precisamos de serviços públicos, como os serviços de saúde, fortes e que existem problemas mais importantes do que respeitar a relação dívida/PIB e as regras orçamentais. A crise de 2008, e agora esta, marcam a saída de uma certa forma de hipercapitalismo e neoliberalismo extremamente otimista sobre a capacidade dos mercados de regular todos os problemas.

As desigualdades econômicas são o foco de seus estudos. Já temos as provas de seu aumento por conta da pandemia ou é muito cedo para percebê-las?

É um pouco cedo, mas já constatamos que as rendas mais baixas e as situações mais precárias no mercado do trabalho perderam mais do que as pessoas que tinha situações mais estáveis, empregos que lhes permitiam trabalhar de casa, enquanto ao nível dos patrimônios foi fácil perceber que os bilionários do planeta, em setores como o de alta tecnologia, são ainda mais ricos. Isso tudo leva a um debate que está evoluindo rapidamente sobre como distribuir essa riqueza.

Um debate provocado pela crise Covid?

Não, acelerado pelo Covid. Mas o debate estava ganhando impulso antes mesmo da pandemia. Em particular, fiquei impressionado com a campanha para as eleições presidenciais dos EUA de 2020 em comparação com a de 2016. Quando falei com a senadora democrata Elizabeth Warren no primeiro turno sobre a necessidade de introduzir um imposto anual de 5 a 10% sobre a riqueza de bilionários ela era muito cética. Quatro anos depois, Warren e Bernie Sanders estavam competindo para saber quem proporia o imposto sobre a riqueza mais alto. O mesmo aconteceu na Alemanha com a SPD, onde em 2014-2015 Sigmar Gabriel não quis reintroduzir um imposto sobre a riqueza enquanto agora Olaf Scholz e os Verdes alemães estão pensando nisso. E também Enrico Letta fez recentemente uma proposta para aumentar o imposto sobre a herança e dar um capital inicial a todos os jovens.

Uma proposta que você obviamente aprova ...

Eu faria mais: o imposto sucessório deve ser aumentado, mas um imposto anual sobre grandes fortunas também é necessário. Se realmente queremos redistribuir, antes de criar ‘a herança para todos’, que eu defendo, é preciso um sistema de garantias como o salário mínimo para os trabalhadores ou a renda básica. E devemos ter cuidado para que essa ‘herança para todos’ não seja uma forma de abolir outras formas de estado de bem-estar, da saúde pública à educação estatal. Sempre existe o risco de que algum liberal veja uma oportunidade para gerar dinheiro: ‘Pegue seus dez mil euros e pare de nos incomodar’.

Mas a proposta de Letta não foi bem recebida na Itália. Até o primeiro-ministro Mario Draghi disse que não é hora de falar sobre novos impostos.

Eu realmente aprecio Draghi, mas não acho que ele pensa que pode financiar tudo por meio das dívidas. Depende de qual horizonte é dado. Se ele pensa que ficará lá por mais um ano, sua resposta é compreensível. Mas o que interessa a mim é o horizonte de cinco ou dez anos em que esses problemas surgirão inevitavelmente.

Hoje, porém, a Europa parece capaz de sair da crise.

Acredita-se que se possa sair da crise somente através do Banco Central europeu que empresta dinheiro para estados com juros zero. Mas esta situação, que à primeira vista parece funcionar, é na realidade muito frágil.

Por que é que as taxas vão necessariamente subir diante de um reinício da economia?

Não só isso. Mesmo enquanto as taxas permanecem em zero, eles resolvem um problema de dívida pública, mas criam um problema de desigualdade dos patrimônios. Para os pequenos poupadores, as taxas zero não são necessariamente uma coisa boa, enquanto para aqueles que têm patrimônios muito maiores e podem investir em mercados financeiros ou imobiliário, as taxas zero podem ser um ótimo negócio. Acho que seria necessária uma nova forma de política monetária em que o dinheiro seja dado diretamente às pessoas normais e não aos bancos e àqueles que podem tomar empréstimos. E, depois, um dia certamente será necessário ter a contribuição dos mais ricos.

O imposto, temido por muitos, que na Itália se chama patrimonial ...

Veja bem, todas as grandes crises de dívida pública também se resolveram assim. Por exemplo, na Alemanha, após a Segunda Guerra Mundial, em 1952, foi instituída uma taxa excepcional sobre os patrimônios privados mais altos que podia chegar a 50% e isso permitiu reduzir a dívida pública alemã de forma acelerada e financiar a reconstrução do pós-guerra.

Com Ilaria Gaspari

'E SE APROVEITÁSSEMOS PARA RETOMAR A IDEIA GREGA DE FELICIDADE?'

Numa entrevista concedida ao Le Monde, a filósofa italiana explica como a sabedoria dos Antigos, sejam epicuristas, estoicos ou pitagóricos, pode nos ajudar a vivenciar tanto os colapsos do confinamento como os alívios do desconfinamento. A entrevista é de Nicolas Truong, publicada por Le Monde. A tradução é de André Langer /IHU A filósofa e romancista italiana Ilaria Gaspari publicou Lições de felicidade. Exercícios filosóficos para o bom uso da vida (Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2020), um conjunto de exercícios de filosofia aplicada que narra como os preceitos das escolas de sabedoria antiga podem nos ajudar a superar as rupturas e as feridas da vida. E explica como esses pensamentos nos permitem apreender os tormentos e os impulsos de uma existência perturbada pela actual pandemia.

Como outros países, a França está levantando algumas das restrições ligadas à crise de saúde. Como apreender esta alegria e estas felicidades redescobertas, que apesar de tudo permanecem muito condicionadas?

Como Sócrates diz no Fédon, o prazer nasce também da cessação de uma dor. Ou seja, nada é mais agradável do que o alívio... E acredito que se tratará, justamente, de um momento de tranquilidade que tanto esperávamos. Essas coisas que antes considerávamos quase banais, como compartilhar um copo no terraço, obter um sorriso, ouvir conversas de vizinhos, sair com os amigos, ir comer no bistrô, viver um ao lado do outro... Depois dessa interminável interrupção, elas voltarão como novas. E tenho que admitir: mal posso esperar para experimentar esse momento.

Existe uma atitude filosófica que poderia nos preparar para esse súbito “excesso” de prazeres?

Certamente! Toda a filosofia antiga, em certo sentido, é uma educação para a moderação, um princípio que perdemos de vista, mas que poderia muito bem nos ajudar agora. O que tentarei fazer todas as manhãs é sondar quais são as minhas necessidades de acordo com a prescrição de Epicuro: perguntar a mim mesmo, em relação a cada um dos meus desejos despertos, a que categoria ele pertence. Se é uma necessidade, uma necessidade natural ou mesmo imperiosa ou, pelo contrário, se não corro o risco de sofrê-la – de me tornar “escravo” deste novo prazer e, assim, desenvolver uma dependência. Já sei que não será fácil, mas este momento, este acontecimento que se avizinha, parece-me uma boa oportunidade para se testar e prestar-se a um novo exercício espiritual.

Por que você procurou os pensadores gregos da Antiguidade para encontrar maneiras de sobreviver ao desespero?

Depois de uma ruptura amorosa dolorosa, decidi ir para a escola dos filósofos gregos, seguindo suas regras de conduta de vida às vezes misteriosas. Após estudar a doutrina de seis escolas antigas diferentes, bem como a vida dos mestres, tentei seguir seus preceitos durante seis semanas: fui sucessivamente pitagórica, eleata, cética, estoica, epicureia e finalmente cínica. A minha ambição era perder os automatismos e os hábitos diários para me reorientar e modificar a ideia que tinha da vida.

Por que faz bem ler Pitágoras ou Epicuro, Epicteto ou Diógenes ao passar por uma provação, como a de uma pandemia?

Durante o primeiro confinamento, fiquei impressionada com a forma como os gregos falaram connosco neste momento crítico. Porque essas escolas, em particular as escolas helenísticas, também floresceram em um período de crise, se por crise entendemos uma mudança seguida de uma perda de pontos de referência: a época das conquistas de Alexandre marcou uma passagem traumática através da qual os cidadãos da polis se tornarão sujeitos, à medida que as fronteiras do mundo se expandiam. Os gregos têm uma palavra para falar do tempo, não num sentido cronológico, mas qualitativo: kairós. Na medicina antiga, o kairós, o momento certo para intervir, é o momento da crise. Estamos em uma crise coletiva que nos obriga a nos repensarmos. Pensar filosoficamente significa sentir a tensão do desejo de compreender, sem esperar respostas prontas, receitas a aplicar. Não se trata de desenvolvimento pessoal, mas de um ideal pedagógico de educação de si mesmo. Entre os filósofos antigos, existe a ideia de uma filosofia viva, vivida como um “exercício espiritual”, como muito bem disse o filólogo e filósofo Pierre Hadot (1922-2010).

Pode nos dar exemplos desses exercícios espirituais?

Refletir sobre os fragmentos de Pitágoras no contexto do confinamento significa concentrar-se em minúsculas mudanças de hábito, na extensão do rastro que deixamos em nossas vidas. Ler Epicuro, para refletir sobre a natureza de nossos desejos, para não nos deixarmos governar pelo medo. Fazer-se discípulo de Epicteto, lendo seu Manual, para distinguir as coisas que dependem de nós daquelas que estão além do nosso alcance, para concentrar nossos esforços naquilo que realmente podemos mudar. Sem esquecer o cinismo de Diógenes que nos estimula a questionar nossa tendência ao conformismo, e nos obriga a nos perguntar: “do que realmente temos necessidade?” É assim que a filosofia pode nos ajudar a viver os infortúnios, bem como as alegrias de nossos tempos difíceis.

Como não ceder ao medo, mas também superar o sentimento de opressão e às vezes até de colapso que estamos passando neste período?

Sobre este ponto, o filósofo que mais claramente nos fala é Epicuro, um personagem revolucionário à sua maneira, que abriu sua escola não só para as mulheres, o que já era muito raro, mas também para as escravas! Por meio de seus ensinamentos, ele garantiu que ninguém fosse exposto à chantagem do que temia. Ele inventou um tetrapharmakos, uma espécie de medicina lógica, um pensamento racional para ajudar aqueles de nós que o medo aliena: o medo dos deuses, da morte, da dor, de não poder alcançar o prazer da vida, etc. Medos que persistem ainda hoje, seja você um politeísta ou não. É um patrimônio precioso, sobretudo porque testemunha um grande amor pelos outros: o amor de um filósofo generoso que, apesar das perseguições de que foi alvo, nunca desprezou a fraqueza dos homens. Epicuro também aprende a fazer um exame muito sério de seus desejos, sem, no entanto, reprimi-los.

Por que a amizade é um dos laços mais importantes em tempos de provação?

“De todas as coisas boas que a sabedoria nos oferece para a felicidade de toda a nossa vida, a amizade é a maior”, diz Epicuro. Mas ele não fala apenas da amizade entre amigos, mas de uma atenção devotada aos outros, até mesmo aos desconhecidos. É um vínculo subterrâneo que permeia qualquer relação: sempre se pode adotar a postura da amizade, isto é, de uma atitude generosa, semelhante à benevolência desinteressada que constitui o segredo de toda amizade verdadeira. Essa disposição decorre do reconhecimento dos sinais universais da condição humana no outro. Penso que essa terrível pandemia, que nos obriga a admitir nossa própria vulnerabilidade, nos oferece uma oportunidade valiosa de exercer esse olhar e essa atitude.

Por que nossa relação com o tempo e inclusive com o espaço pode ser compreendida de forma diferente graças aos pensadores antigos?

Ao tentar interpretar os paradoxos de Zenão como uma chave existencial, eu refleti sobre o que a pandemia nos apresentou na sequência: que o tempo é apenas uma coleção de momentos que estão todos presentes. O esforço que os anos 2020 e 2021 nos exigiram, nomeadamente o de desistir de nos projetarmos no futuro, é difícil. A menos que você seja um sábio estoico, acho que é impossível para um ser humano viver completamente no presente; mas pensar criticamente sobre a forma que damos ao tempo em nossa própria imaginação pode ser de grande ajuda. Graças aos gregos, que eram muito apegados ao tempo livre (schole é a palavra para designá-lo, da qual deriva nossa “escola”), aprendi (um pouco) a me libertar das injunções contemporâneas para capitalizar o tempo, para investi-lo. Devo acrescentar que tive outro mestre para isso: meu cachorro, adotado após minha semana cínica. Os cães têm um sentido maravilhoso do presente: observar outras formas de vida, partilhar momentos de vida com eles, é um excelente exercício de filosofia!

Depois deste ano doloroso, a felicidade pode voltar a ser uma ideia nova na Europa?

Penso – espero, embora seja uma atitude pouco estoica – que sim. Nossa imagem muito fotogênica de felicidade, concebida como um momento de euforia, um sorriso no Instagram, mostrou seus limites. E se aproveitássemos esse momento para retomar a ideia grega de felicidade? Ou seja, a eudaimonìa, “o apaziguamento do seu daemon pessoal”. Uma jornada repleta de armadilhas, certamente, mas que leva a se conhecer, a se tornar o que se é.

P.S.

Alguns dados que ajudam a entender mais e melhor a entrevistada

Ilaria Gaspari, a filosofia conjugada no futuro do pretérito

Nascida em Milão em 1986, Ilaria Gaspari estudou primeiro filosofia na Escola Normal de Pisa. Neste ambiente ao mesmo tempo “gentil e competitivo”, a jovem filósofa tem a impressão de viver “como numa escola socrática”. Ela extrairá de suas memórias de impetuosa erudita, ao mesmo tempo alegre e melancólica, um romance sobre essas portas fechadas de estudante, L'Ethique de l´aquarium (Grenelle, 2017). Depois de um mestrado dedicado à teoria dos afetos de Spinoza, ela parte para Paris e obtém o doutorado na Universidade de Paris-I – Panthéon-Sorbonne, sob a supervisão de Chantal Jaquet, uma especialista do corpo e particularmente conhecida por seu estudo filosófico da passagem de uma classe social para outra (Les transclasses ou la non-reproduction, PUF, 2014). Instalada entre 2012 e 2016 em um estúdio de 17 m2 próximo à estação de metrô Pireneus – “Um paraíso”, lembra-se ela –, Ilaria Gaspari não abre mão da literatura. Fã de Mark Twain, Denis Diderot e Charles Dickens, ela agora dá cursos de redação autobiográfica em Turim e Roma, e colabora com vários jornais on-line, mas também com o jornal Corriere della Sera, no qual escreve crônicas filosóficas.

Prazer perdido”

Um rompimento amoroso brutal leva-a a retornar aos filósofos antigos. E perceber que “a filósofa se tornou acadêmica demais”. Porque Epicuro ou Epicteto não são apenas teóricos, mas mestres de vida. “Desesperada, escreve, largada da noite para o dia após dez anos de amor”, ela tem que se mudar e se encontra diante de “trinta caixas de pura sabedoria humana”, que a reenviam à sua história, porque “esvaziar uma biblioteca é como se inventar arqueólogo de si mesmo”, mas também à sua relação com o saber: uma disciplina estudada no “tanatófilo” como uma “ciência morta”. Ela então decide literalmente desempacotar tudo e a viver de acordo com os preceitos dessas escolas, algumas das quais, como a de Pitágoras, “não são tão diferentes de uma seita”, admite.

Seis semanas de questionamentos depois, ela volta a se encontrar com as cores, à semelhança das suas roupas e de seu interior: “Desde que perdi minhas velhas certezas e aprendi a me deixar dominar pelas regras das escolas antigas, encontrei um prazer há muito tempo perdido”, escreve esta jovem que adora os clássicos, ao mesmo tempo se mantém firme nas preocupações de sua geração e de seu tempo. Este desejo de lutar contra as paixões tristes continua no seu último livro, Vita segreta delle emozioni (A vida secreta das emoções), que acaba de ser publicado pelas Edições Einaudi na Itália. Não surpreende, vindo de uma autora que se arrisca a “redescobrir a juventude da filosofia”.

Edição 168. maio 2021

Com Franco “Bifo” Berardi

'HÁ UMA CRISE DA MENTE CRÍTICA'

A filosofia de Franco Berardi – teórico e ativista emblemático do movimento insurrecional italiano de 68, melhor conhecido como “Bifo” – é incendiária. Diz que é necessário desacelerar e pensar. Parafraseia Marx na contramão: pede para que voltemos a interpretar o mundo, antes de transformá-lo. Exercer a crítica é, segundo Bifo, um desafio em tempos em que a informação caminha mais rápida do que a capacidade de processá-la. Faz tempo que se preocupa com os modos como a aceleração informática está mudando a sensibilidade e a capacidade de deliberação. Berardi tem 68 anos e neste livro relata que vive no mesmo bairro onde vivia, há 50 anos, quando era estudante. “Praticamente, nada mudou na paisagem, exceto os estudantes. Eu os vejo de minha janela: solitários, olhando as telas de seus smartphones, correndo para não chegar atrasado na sala, voltando com rostos tristes aos quartos caros alugados por suas famílias. Sinto sua melancolia, sinto a agressividade latente em sua depressão. Sei que essa agressividade pode brotar e se expressar sob o estandarte do fascismo. Não do velho fascismo que explodiu da energia futurista, mas do novo fascismo que resulta da implosão do desejo, da tentativa de manter sob controle o pânico e a raiva depressiva da impotência”. A entrevista é de Dolores Curia, publicada por Página/12. A tradução é do Cepat /IHU

Não há nas formas de conexão – por sua globalidade, por sua velocidade – possibilidades emancipatórias?

Claro que sim. Claro que há enormes potencialidades de emancipação, tanto nos meios digitais como no progresso técnico em geral. Mas a transformação técnica e mediática implica uma mutação antropológica, e particularmente psíquica, que precisamos avaliar. Certamente, eu perco muito do potencial da nova tecnosfera, mas a geração que mais sofre é a nova. Há toda uma literatura (penso no livro de Jean Twenge sobre a geração hiperconectada, por exemplo) que mostra como a mutação conectiva está produzindo uma onda de psicopatia que atinge, sobretudo, a geração que aprendeu a dizer mais palavras graças a uma máquina que à voz da mãe.

Disse que não resta alternativa à humanidade: comunismo ou extinção. Pede para que nos preparemos para quando acontecer o imprevisto, a irrupção de um neo-comunismo que pouco tem a ver com o de 1917. Contudo, não diz como chegaremos a ele...

Marx disse, não me lembro quando, que não estava interessado em escrever receitas para o restaurante do futuro. E, de facto, não é possível encontrar uma descrição utópica do futuro comunista em sua obra. Por quê? Porque o comunismo não é um estado futuro, é a tendência possível. Não a necessária - cuidado -, a possível. Hoje, no buraco negro que vai se revelando com a pandemia, e sobretudo após quarenta anos de devastação sistemática de tipo nazi-liberal, parece-me que a perspectiva mais provável é um processo caótico de autodestruição do gênero humano. Mas também vejo uma tendência à formação de comunidades igualitárias e frugais. Igualdade e frugalidade são os caracteres essenciais do comunismo possível e urgente (mas em nível maioritário, não muito provável). Frugalidade não significa sacrifício, nem pobreza. Ao contrário, significa uma relação concreta com o útil. Uma autonomia na relação de intercâmbio abstrato de valor, e autoprodução comunitária do concreto útil. Não há uma terceira alternativa. Ou a frugalidade igualitária ou a barbárie desencadeada, a violência totalitária, a guerra global, a devastação mortífera. Comunismo ou extinção.

Sobre o conceito de consciência de classe hoje: ainda existe? Onde reside, atualmente, a consciência de classe? Que formas assume?

“Consciência de classe” é um conceito que precisamos especificar. O que é? O efeito intelectual da pertença a uma classe social? Um efeito determinista? A possibilidade de compartilhar formas de pensamento, de comportamento? Não sei. Eu prefiro pensar em termos de composição de classe para me referir à estrutura material do trabalho e da sociedade, e de subjetivação para me referir ao processo de formação de um movimento fundado sobre a condição material, mas carregado de inconsciência, de mitologias comuns, de imaginação, de desejo. Temos que pesquisar mais o inconsciente coletivo que a consciência de classe. O processo de subjetivação contemporânea é o resultado de uma longa época de agressão mediática ao cérebro coletivo, de desagregação do trabalho, de concorrência entre trabalhadores, provocada pela precariedade e, como se fosse pouco, o resultado de um longo tempo de isolamento, de distanciamento.

A pandemia produziu uma desaceleração do fluxo de informação e estimulação permanente, ao menos durante o primeiro momento. É possível falar em uma desaceleração hoje, um ano depois?

A deflação do ritmo cognitivo, psíquico e social é um aspecto que se manifestou claramente no início da pandemia, mas que depois não desapareceu mais. A maioria dos trabalhadores, e sobretudo das trabalhadoras, não conseguiu relaxar muito na fase pandêmica. Apesar do perigo de contágio, foram obrigados e obrigadas a continuar com o seu trabalho. O ‘efeito deflação’ continua sendo dominante na mente coletiva, não só porque existem muitas coisas que não podem ser feitas, mas sobretudo porque as expectativas da época neoliberal (crescimento constante, competência ininterrupta, mitologia da energia competitiva e agressiva, mitologias publicitárias) se viram dissolvidas. Acredito que a euforia agressiva produzia pela ideologia neoliberal não voltará. Só pode retornar a tristeza agressiva, a raiva depressiva que se manifesta como histeria da liberdade individualista. A força da direita, hoje, funda-se nesta tristeza: o fascismo como reação histérica à depressão.

Falando em subjetivação contemporânea e mitologias..., o filósofo francês Jacques Rancière disse que houve exagero em relação ao efeito das 'fake news' e que estas não representam necessariamente um engano. Disse: “Não acredito que as pessoas que aderem às teorias conspiratórias tenham sido enganadas. Aderem porque concordam, seu problema não é se é verdade ou não, mas se gostam ou não”. Qual é a sua opinião?

Concordo. A noção de fake news está vazia. Sempre houve notícias falsas no discurso público. Hoje, há muitas mais porque o volume de informação se ampliou. O que mudou não é a falsidade do discurso: há uma crise da mente crítica. A crítica não é uma faculdade natural da mente humana, manifesta-se quando a comunicação pública se torna comunicação escrita. A crítica se torna uma modalidade do discurso público quando uma parte ampla da população pode ler e reler textos escritos. A crítica precisa do ritmo da comunicação. Quando o ritmo da comunicação se acelera até o rumor alvo, a mente perde sua capacidade de distinguir entre o verdadeiro e o falso. Não podemos contar muito com a mente crítica. No futuro, a capacidade crítica terá desaparecido da mente humana, será privilégio apenas de uma minoria que possa ler e se abstrair do rumor.

Então, como podemos pensar em produzir efeitos de solidariedade, de emancipação, se não há crítica?

Este é o ponto... No passado, a mente crítica era a condição da subjetivação progressiva e solidária. Hoje, acredito que apenas a sensibilidade pode ser, um tipo de sentimento muito mais subtil, que não concerne à razão, que sobretudo concerne à emoção, ao sofrimento, ao prazer. Por isso, parece-me que a comunicação política precisa se transformar em comunicação essencialmente estética, em um sentido mais amplo da dimensão da arte. Estética não é apenas a faculdade de entendimento da arte, é também a faculdade de entendimento da percepção psíquica, da dor, do desejo...

Há uma sensação de que a rebeldia e a irreverência se tornaram de direita e que a esquerda ficou ligada ao politicamente correto. Ou, como é dito por aí, que as esquerdas não aprenderam a fazer memes. Como você enxerga esta questão?

Não concordo! Pelo contrário, nos últimos cinquenta anos, do Maio Francês ao black power, do Movimento Antiglobalização ao Occupy Wall Street, os memes mais poderosos e mais significativos foram produto do progressismo. A direita não é mais inventiva, nem mais inteligente.

Contudo, não avalia que existe algo na forma de convocar que está falhando?

Penso que hoje a direita pode fundar sua comunicação sobre uma verdade profunda que a esquerda não sabe interpretar: a impotência, a agressividade que nasce da impotência. A direita fala diretamente do sofrimento dos homens brancos envelhecidos, e dos homens brancos que são jovens, mas que estão deprimidos e furiosos por sua impotência política, psíquica e sexual. Não fala de maneira sincera, naturalmente. Fala dos impotentes exaltando a potência infinita da raça, da violência, do trabalho, da concorrência. A esquerda segue repetindo palavras cada vez mais vazias sobre a democracia. A democracia está morta, é um ritual ineficaz cooptado por automatismos técnicos e financeiros. É um ritual inútil porque as condições de formação do pensamento coletivo e da decisão coletiva são manipuladas pelo predomínio mediático do capital. A democracia é uma condição política muito boa e favorável ao progresso social, quando há força cultural para impor os interesses dos explorados. É uma metodologia. A esquerda transformou a democracia em um valor. E a democracia não é um valor, é uma condição de possibilidade. E agora esta condição foi destroçada.

Em ‘La segunda venida’, escreveu que, “nos anos 1960, os partidos de esquerda e os sindicatos viram na tecnologia um perigo, em vez de uma oportunidade a ser assumida em favor do interesse da sociedade”. Qual é a situação atual deste problema?

O movimento operário e progressista percebeu as tecnologias conectivas como um perigo. Elas eram, mas ao mesmo tempo também eram a condição para entender a nova composição social. Agora, é tarde demais para isso, porque as novas tecnologias já se consolidaram como infraestruturas de um poder transpolítico. A força e a própria pertinência da política se dissolveram. Hoje, o problema da subjetividade social se mede em termos psicanalíticos, não políticos. Não existirá no futuro o objetivo de governar o conjunto da sociedade. O foco estará no problema de proteger comunidades autônomas, capazes de viver em condições de isolamento, mas, ao mesmo tempo, capazes de interagir em condições de autossuficiência alimentar, educacional, tecnológica.

Também disse que a humilhação, como conceito, não foi suficientemente abordada pela teoria política. Por que é crucial hoje? Como fazer para oferecer aos humilhados outras rotas de fuga que não sejam o fascismo?

Günther Anders, um judeu da Alemanha que se casou com Hannah Arendt, foi o pensador que melhor compreendeu esses temas da humilhação como efeitos da omnipotência dos automatismos técnicos e como causas do fascismo. Nos anos 1960, sob o influxo do que ocorreu em Hiroshima e da proliferação das armas nucleares, Anders publicou um livro intitulado Die Antiquiert der Menschen. Nele, diz que os homens percebem a omnipotência da máquina (que é um produto da inteligência humana) como algo que supera e aniquila a própria inteligência humana. Existe aí um núcleo profundo da humilhação como conceito político. Hoje, devemos acrescentar à intuição de Anders uma nova dimensão da humilhação masculina: a impotência psíquica e sexual ligada ao envelhecimento da população branca no planeta.

Com Jacques Attali

'NÃO PODEMOS VOLTAR À VIDA DE ANTES, QUE NOS LEVOU À CATÁSTROFE'

É preciso reconhecer, Jacques Attali é uma pessoa fora do comum. Um homem com uma capacidade intelectual e uma carreira profissional que causam assombro. Até seus críticos mais ferozes o reconhecem. Alto funcionário, conselheiro de Estado, professor na prestigiosa Escola Politécnica francesa, fundador e primeiro presidente do Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento - BERD, cofundador da Ação Contra a Fome, hoje dirige o grupo Positive Planet. Mas, sobretudo, Jacques Attali é conhecido pelo público internacional por ter sido o conselheiro especial do presidente socialista François Mitterrand, entre 1981 e 1991. Hoje, algumas fontes dizem que ele possui uma autêntica simpatia pelo atual chefe de Estado francês, Emmanuel Macron A entrevista é de Luisa Corradini, publicada por La Nación. A tradução é do Cepat /IHU

Você não é uma Cassandra que, há anos, prega no deserto?

E qual é o problema?

Gostaria de saber que efeito essa falta de reação produz em você.

Vai chegando, vai chegando. As pessoas tomam consciência dos perigos do clima. Com a pandemia, tomam consciência da importância da higiene. Esta crise é muito cara em números de vidas, mas acelera a tomada de consciência da importância do que eu chamo de “uma sociedade positiva”. Um conceito fundamental nessa sociedade é o altruísmo, ou seja, ocupar-se do bem-estar de todos, inclusive das gerações futuras. E outro é a economia da vida, que se refere aos setores da economia úteis a essa sociedade positiva.

Na França, seu livro foi publicado em junho de 2020. Há algo que gostaria de mudar? Há alguma região ou país que o surpreendeu, com sua gestão da crise?

O diagnóstico sobre a importância da economia da vida, setor que é necessário desenvolver, continua sendo correto. O que digo sobre o lugar da morte em nossa sociedade ou o risco de proletarização mantém vigência absoluta. Talvez insistiria mais no fato de que agora que temos a vacina a prioridade máxima é, justamente, vacinar todo o planeta. Mas quando falo em transformar a economia também incluo esse ponto.

Em seu livro, você é muito severo a respeito da gestão econômica da crise pelos governos.

Há uma grande mentira geral em todas as partes. Finge-se que tudo vai bem e não se quer ver a realidade. Tanto na vida privada como na pública só é possível avançar aceitando e reconhecendo os próprios erros, intimamente e na frente dos outros. No entanto, não vemos isso em lugar algum. Bolsonaro o admitiu nesses dias, mas a situação em seu país é dramática. Na Europa, ninguém é capaz de dizer algo assim. Os líderes europeus repetem que fizeram tudo muito bem, que a reação foi a adequada, o que é grotesco. Erraram. Fascinaram-se com o exemplo da China e com o seu confinamento, o mal exemplo a ser seguido. Hoje, precisamos reconhecer que a Coreia do Sul foi o bom exemplo, com máscaras, testes e rastreamentos, mas sem confinar o conjunto da população, nem parar a economia. Esse país teve pouquíssimas mortes porque impôs imediatamente a estratégia da máscara-testes-isolamento. Não há razão para que a França, que tem 65 milhões de habitantes, tenha tido muitos mais mortos que a Coreia do Sul, que hoje conta com 2.000 mortes. Hoje, a China pretende ter triunfado e ser a grande potência planetária, mas foi a causa da pandemia. E escondeu a pandemia do mundo. Primeiro a escondeu de si mesma. Durante muito tempo, os chineses no mais alto nível governamental não sabiam o que acontecia devido à censura interna, extremamente forte, e deixaram a pandemia se desenvolver, apesar de que tinham muito mais mortos do que eles próprios reconhecem.

Além da questão da crise, você também não parece acreditar que a China será a grande potência que substitua os Estados Unidos.

Esse argumento é falso, mesmo quando o crescimento chinês é indiscutível. Não acredito na perenidade do regime atual da China, uma nação com uma cultura magnífica, que admiro. A lição de tudo isso é que a democracia é menos ruim que a ditadura. Nas democracias, os que mentem são maus.

Como a pandemia impactará na economia global e o que os países devem fazer a esse respeito?

A prioridade é reorientar a economia aos setores da economia da vida. Antes de tudo, ao setor da saúde, da higiene, a educação, a digitalização, a agricultura, a alimentação saudável.

Antes de passar à economia da vida, você disse que não suporta que as pessoas digam que querem voltar “à vida de antes”. Não é normal que as pessoas pretendam voltar à suposta liberdade que sentiam antes da pandemia?

É que “a vida de antes” era uma vida sem preparação alguma para os riscos, em que se permanece poluindo e criando condições para um desastre climático. Em que não há investimento na economia da vida, ou seja, em pesquisa e inovação. Em que se permanece desenvolvendo uma indústria têxtil delirante, uma indústria petroleira delirante, uma indústria do plástico delirante, uma indústria automobilística delirante. Essa é a vida de antes que nos levou à catástrofe e provocará outras catástrofes.

Podemos desenvolver um pouco mais esse conceito que está no título de seu livro: a economia da vida?

O altruísmo é verdadeiramente o modelo ideológico que me parece importante. É perceber que é do nosso interesse nos ocupar com o outro, que o outro tenha uma máscara, que esteja bem cuidado, que receba sua vacina, que tenha educação. É do nosso interesse que o outro seja feliz. Uma sociedade que não tem futuro é aquela em que as pessoas pensam que a única coisa que importa é o interesse próprio, esquecendo o dos outros. É o que vemos nas redes sociais, esse egoísmo geral. É um grande debate ideológico, decidir entre o altruísmo e o egoísmo. O segundo conceito dessa sociedade positiva é a necessidade de um altruísmo particular, não para com ossos vizinhos ou nossos contemporâneos, mas para com as gerações futuras. Isto é menos evidente, mas não devemos esquecer que as gerações futuras chegarão em um piscar de olhos. São elas que irão trabalhar, pagar as nossas aposentadorias, criar a sociedade tecnológica do futuro. Todos nós necessitamos delas. E o terceiro conceito nessa sociedade positiva é que não pode se desenvolver, se a economia não estiver focada nos setores que mencionei mais acima: saúde, educação, segurança, cultura, mundo digital, agricultura, pesquisa, liberdade, meios de comunicação, democracia, energias limpas, água e ar limpos. São os grandes setores do futuro que devem crescer em detrimento de setores que precisam ser abandonados como as energias fósseis, o plástico, o têxtil (as pessoas não precisam se trocar 14 vezes por dia), a mecânica, o turismo, conforme praticado atualmente, as indústrias aeronáutica e automobilística, que são suicidas em termos de mudança climática.

Mas como chegar a isso, em um mundo dominado pelos gigantes da internet que são, em termos econômicos, mais poderosos que os Estados, e em que os jovens se sentem distantes da política?

É verdade. Mas, ao mesmo tempo, as redes sociais criam as condições para uma aproximação entre as pessoas. Podem ser instrumentos de reunião, de projetos positivos.

De tal modo que, em sua avaliação, os GAFAM (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft) poderiam desempenhar um papel benéfico nessa sociedade positiva. O governo chinês tomou consciência do perigo que representavam seus GAFAM próprios e tomou as medidas necessárias para garantir que sejam controlados. O governo dos Estados Unidos deveria alertar que é de seu próprio interesse controlar esses gigantes da tecnologia, e isso, claro, seria do interesse de todos.

Em seu livro, você diz que é a relação com a morte que define uma civilização. Qual é essa relação em nossa civilização ocidental?

De negação. A morte deve ser ignorada, não vista, escondida. Não vemos os mortos, nós os esquecemos. Mas a pandemia nos lembrou dessa realidade, tornou-a visível para nós. Não podemos ocultá-la, porque todos sabemos que há uma grande quantidade de mortos e quase todos perderam alguém próximo. E se deu o caso de que as pessoas morriam sem poder ver seus entes queridos, uma realidade dolorosa que, paradoxalmente, nos coloca em uma espécie de paroxismo da sociedade atual.

Quer dizer?

Se continuarmos neste caminho, podemos imaginar uma situação na qual, a partir do momento em que as pessoas se aproximarem da morte, serão apagadas, não serão mais vistas e não se falará mais delas. Em que até mesmo os ritos funerários desapareçam. Quando se nega a morte, vive-se na abstração. Em consequência, deixa-se de colocar dinheiro na saúde ou nas gerações futuras. A pessoa se transforma em um simples receptor utilizável pelo poder, um instrumento que o permite perdurar.

Agora que Joe Biden substituiu Donald Trump, qual é a sua leitura em relação ao futuro político dos Estados Unidos?

Os Estados Unidos continuam se considerando os donos do mundo. Nesse sentido, os novos dirigentes norte-americanos não são diferentes dos precedentes e continuam falando como se fossem aqueles que decidirão tudo, o que é um absurdo. A sociedade estadunidense se fechará cada vez mais em si mesma, ao passo que o país se orientará para o Pacífico, distanciando-se do Atlântico. Estamos falando de uma sociedade que tem enormes problemas para resolver e por isso recuará sobre si mesma, a fim de criar as condições de sua sobrevivência. Em todo caso, os Estados Unidos continuarão sendo, por muito tempo, uma grande potência.

Por acaso, a Europa está perdendo a grande oportunidade de se transformar em um poder alternativo de equilíbrio? Perdeu a oportunidade que teve, durante os anos Trump, de se organizar de forma independente dos Estados Unidos?

A Europa continua tendo os meios de se transformar em uma grande potência. Para isso, não precisa mentir para si mesma. Não pode, por exemplo, dizer que é a melhor no terreno das vacinas, quando na realidade é muito deficiente.

Mas que outra coisa a União Europeia poderia fazer nesse terreno, levando em consideração que a questão sanitária nunca esteve dentro de suas prioridades? Você acredita que ela agiu mal em optar por uma compra conjunta de vacinas para os 27 países do bloco, por exemplo?

Acredito que a Europa fez muito bem em decidir pela compa comum, porque separadamente os franceses levariam vantagem, os alemães também e os espanhóis teriam sofrido um desastre. Mas isso não suprime o que fez mal. Ignoramos que havia laboratórios, por exemplo, na Alemanha, subvencionados pelo bloco e que fizeram acordos com países estrangeiros e venderam primeiro para eles. Fomos incapazes de fazer como a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, que disseram “já que nós demos para vocês o dinheiro para a pesquisa, teremos prioridade na distribuição de suas vacinas”. Foi isso que os ingleses fizeram com a AstraZeneca e os norte-americanos com a Pfizer. Mas a vacina Pfizer foi desenvolvida pela BionTech, uma empresa alemã. A verdade é que foram cometidos grandes erros.

Tanto a China como a Rússia aproveitaram a pandemia para praticar a diplomacia da vacina, um ‘soft power’ que permitiu sua presença em todo o mundo em vias de desenvolvimento, e na América em especial. Você acredita que a Europa, por meio do programa Covax ou por conta própria, poderia estar muito mais presente?

É justamente o que estamos buscando fazer, com muitíssimo atraso. Mas reconheçamos que é muito difícil dar vacinas que você mesmo não tem. A verdade é que a Europa nesta crise se comportou muito mal. De qualquer modo, eu não acredito que essa influência chinesa ou russa, por meio de sua diplomacia das vacinas, tenha consequências duradouras em todos esses países.

Com Pablo Servigne

'NOSSA CIVILIZAÇÃO É UM CARRO SEM FREIOS E COM O VOLANTE TRAVADO'

Deixemos claro, desde o início: o colapso não é o fim do mundo. É o fim deste mundo, conforme hoje o conhecemos. Não é o apocalipse. Um colapso, segundo a definição de Yves Cochet, é “o processo a partir do qual uma maioria da população não conta mais com as necessidades básicas (água, alimentação, abrigo, vestimenta, energia, etc.) cobertas [por um preço razoável] pelos serviços previsto pela lei”. Pablo Servigne (Versalhes, 1978) é autor, junto com Raphaël Stevens, de um best-seller que encara de frente o futuro: Colapsología (Arpa, 2020). São muitos os dados (climáticos, mas não só) que apontam que caminhamos para o afundamento de nossa civilização. A entrevista é de Manuel Ligero, publicada por La Marea-Climática. A tradução é do Cepat /IHU

É possível considerar seu trabalho como uma continuação do que Jay Forrester, Donella Meadows e muitos outros intelectuais fizeram, nos anos 1970. Eles já avisaram sobre ‘Os limites do crescimento’. Por que, 50 anos depois, ninguém quer ouvi-los? Há um obstáculo de caráter psicológico para além do político e o econômico?

O obstáculo psicológico é um a mais. Ciência e crença assumem caminhos diferentes. Passou meio século e os trabalhos científicos contribuíram com uma enorme quantidade de dados. No entanto, não conseguimos fazer com que se acredite neles. Existe um grande problema aí: não acreditamos completamente no que, efetivamente, já sabemos. Há uma grande variedade de obstáculos, de empecilhos, que poderiam explicar esse fenômeno. Empecilhos políticos, econômicos, psicológicos, jurídicos, financeiros... Há empecilhos individuais, pelo simples fato de se ter medo ou de não compreender o que está acontecendo, e também empecilhos coletivos. Existem pessoas que recebem milhões de dólares, por meio de seus think tanks, para fabricar e propagar dúvidas. São os chamados mercadores da dúvida. Mas, apesar de todos esses fatores, após 50 anos de trabalho, a ciência vai abrindo passagem, pouco a pouco. Hoje, as pessoas sabem mais e acreditam um pouco mais. Esse limiar de medo e dúvidas vai ficando para trás, também porque temos visto como os desastres naturais se sucedem.

Você é doutor em Biologia, engenheiro agrônomo e especialista em mirmecologia [a ciência que estuda a vida das formigas], mas um dia decidiu deixar seu trabalho como pesquisador universitário. Afastou-se das publicações científicas e da competição que as caracteriza para assumir um ativismo popular. Sente-se mais útil do que em seu trabalho anterior?

Não sei se sou mais útil. O que, sim, sou é mais feliz. Deixei a concorrência da pesquisa científica há oito anos, afastei-me de tudo isso do publish or perish [publique ou pereça]. Adorava esse ofício, mas precisava me afastar desse ambiente. Não queria permanecer na torre de marfim de nosso laboratório. O que queria de verdade é informar o máximo de pessoas. E ao fazer isso, sentia-me cada vez mais alegre e mais útil, ao poder escrever para o grande público, em francês ou em espanhol, em vez de escrever complicados artigos acadêmicos em inglês que, por fim, ninguém lia. Para mim, foi muito gratificante ir ao encontro de um público popular, de diferentes classes sociais e com diferentes atividades, para adaptar o discurso científico e o tornar mais acessível.

Você está entre os especialistas que dizem que o colapso não ocorrerá somente pelas causas climáticas, mas também pela desigualdade. Por que insiste tanto nesse ponto?

Essa é uma parte importante de nosso livro Colapsología. Há muito estudos que mostram até que ponto a desigualdade é tóxica, corrosiva para uma sociedade. Destrói a confiança, a democracia, o bem comum, o conceito de uma narrativa, de um horizonte comum. É um fator decisivo para o colapso. Há um modelo estatístico muito interessante, o modelo HANDY [Human and Nature Dynamics, desenvolvido em 2014], que estabelece a relação entre a sociedade e seu meio ambiente. Pela primeira vez incluiu a desigualdade em seus parâmetros e o que indica é que quanto mais uma sociedade é desigual, mais possibilidades têm de entrar em colapso, e de forma mais rápida. E por quê? É muito simples. Porque a desigualdade cria uma casta de ricos que extrai recursos do povo e da natureza, e essa exploração combinada de bens, recursos humanos e recursos naturais propicia um risco irreversível de colapso. Dito de outra maneira, a prioridade hoje para evitar riscos e danos maiores é compartilhar, é reduzir as desigualdades.

Logicamente, a maior parte da opinião pública, em todo o mundo, recebeu a vacina contra o coronavírus com alegria e alívio. As pessoas querem voltar ao mundo de antes, assim como era, sem mudar nada. Você refletiu a esse respeito?

Questão difícil. Ainda nos resta muito a conhecer sobre a COVID-19. Como biólogo, eu diria que temos que aprender a viver com o vírus, assim como antes fizemos com a gripe. A vacina ajuda a minimizar a comoção, por assim dizer, mas a sociedade irá mudar. Existe a tentação de pensar que voltaremos ao mundo de antes, mas é difícil. Sobre esta questão, tenho dificuldades em falar de crise porque os desastres se superam e as crises passam. Na narrativa do colapso o que causa medo é justamente o seu lado irreversível. Para mim, o medo está no núcleo deste problema, e o importante é saber de que maneira afetará as pessoas. Pode perturbar as pessoas mais velhas até o ponto de congelar suas vidas. No caso dos jovens, ao contrário, o medo pode ser uma motivação, pode ativá-los.

Mas por que provoca tanto sofrimento pensar que, inevitavelmente, caminhamos para outro tipo de sociedade? Esta ânsia em voltar ao mundo de antes não é um sintoma de nosso vício pelo capitalismo?

Sim, claro. Há um vício pelo crescimento econômico, os recursos naturais, o petróleo, a energia... Não sei se todo mundo sofre com isso, mas o que é indubitável é que a mudança sempre causa medo. Há pessoas que não querem mudar porque têm medo e outras que não querem mudar por causa de seu próprio interesse econômico. O mundo se tornou muito grande e está muito interconectado. A menor perturbação pode provocar danos consideráveis em toda a economia. Em inglês, são utilizadas as expressões too big to fail [muito grande para quebrar] e too big to jail [muito grande para ir para a prisão]. Esse é um dos principais problemas da transição ecológica. O capitalismo é um dos empecilhos dos quais falávamos antes. No livro, utilizamos a metáfora do carro sem controle: nossa civilização industrial é um carro com o tanque prestes a se esgotar; é noite e estamos cercados pelo nevoeiro; os freios não funcionam, não podemos tirar o pé do acelerador, saímos da estrada e os buracos danificam a estrutura do veículo; e, por fim, percebemos que o volante não funciona. Esse volante travado que nos impede de mudar de direção é o capitalismo.

Em seu livro, recomenda consumir produtos culturais que falem da mudança climática. Trata-se, em sua avaliação, de aprender a imaginar o futuro por meio de documentários, filmes, romances, gibis... Já se passou algum tempo desde que escreveu isto. Sua opinião mudou? Não fica preocupado com o medo e a ansiedade que essas narrativas, quase sempre apocalípticas, possam gerar?

Não, continuo opinando a mesma coisa. O medo faz parte da vida e é lógico que esteja nessas narrativas. Mas também é preciso imaginar outros futuros melhores, outros horizontes, e sobretudo falar de clima, de biodiversidade. A série ‘O Colapso’ se concentra em coisas mais alarmantes. Mostra fundamentalmente o lado violento e egoísta do ser humano. Os criadores da série [o coletivo Les Parasites] são amigos. A história surgiu a partir de uma entrevista que fizeram com o astrofísico Jacques Blamont e eu e que dirigiram para Thinkerview. Escreveram o roteiro buscando ser positivos, a intenção inicial não era provocar medo, mas... não conseguiram. Compreendo que é difícil quando se fala em colapso, porque nesse contexto o medo ocupa todo o espaço. O tema do clima, por exemplo, não está muito presente na série. Há um escritor indiano, Amitav Ghosh, que faz ficções sobre o clima e que escreveu um ensaio intitulado The Great Derangement, no qual questiona a ausência deste tema na literatura. Como cientistas, nós que falamos sobre colapsologia chegamos apenas aos números, ao plano mental, mas para o grande público isso é difícil de digerir. É preciso também falar a partir do coração, das emoções, da imaginação. As lágrimas são proibidas para o cientista. É difícil ver lágrimas quando você acaba de dar uma palestra. Mas quando toca o coração, provoca uma tomada de consciência muito mais poderosa do que a possível com os números. O ideal é combinar o rigor científico com o calor da narrativa. Os dois elementos são necessários para conseguir o fundamental: levar à ação.

É possível dizer que você começou escrevendo diretamente ao intelecto e que depois, nos livros posteriores, como ‘L’entraide: l’autre loi de la jungle’ [‘O apoio mútuo: a outra lei da selva’], toma um caminho mais emocional e mais político?

Não exatamente. O plano inicial era fazer uma trilogia. O primeiro volume, que é Colapsología, é efetivamente um livro denso, frio, seco, racional, composto fundamentalmente por dados que falam à cabeça antes que ao coração. Raphaël [Stevens] e eu ficamos muito surpresos com o fato de ter contado com uma acolhida tão emocional, que tenha comovido tanta gente. O plano seguia, posteriormente, com um segundo volume que seria a colapsosofia, que falaria da sabedoria, das histórias e as emoções. Porque não se trata apenas de sobreviver à tempestade, é preciso aprender a viver na tempestade. Intitulou-se Une autre fin du monde est possible [Outro fim do mundo é possível]. E o terceiro volume é a colapso-práxis, no qual estamos trabalhando agora e que será um livro mais coletivo e de ordem prática, dedicado à questão política e a organização. Nele falaremos do corpo em um duplo aspecto: o pessoal, de quem sofre o choque em seu próprio corpo, e o do corpo social. Ao concebê-lo assim, em uma trilogia, queríamos seguir a célebre estrutura de Gilles Deleuze: conceito, afeto, percepto. L’entraide foi um livro que surgiu em paralelo a estes e que contribuiu para que o público tenha uma imagem do futuro um pouco mais positiva e que aceite o discurso do colapso.

O confinamento provocado pela COVID-19 despertou certa solidariedade entre as pessoas dos bairros e das pequenas comunidades rurais. Acredita que este apoio mútuo pode ser um comportamento permanente ou está limitado a momentos de crises?

As duas coisas. A experiência nos mostra que quando há catástrofes pontuais e inesperadas as pessoas colaboram de maneira altruísta. E não apenas isso: reagem de uma forma extraordinária. Surge uma auto-organização quase perfeita e se age com uma calma incrível. Ou seja, ocorre totalmente o contrário do que esperamos. Acreditamos que após a catástrofe se espalha o pânico, começa uma luta de poder para conduzir a organização das coisas e se age de forma egoísta. É falso. É cientificamente falso. Sim, quando os efeitos da catástrofe se alongam no tempo, o apoio mútuo se derrete. Nós escrevemos sobre os mecanismos que o ser humano adotou ao longo de milhares de anos para estabilizar estas redes de apoio. O apoio mútuo é muito poderoso, mas também muito frágil. Também pode entrar em colapso em um instante. A desigualdade, obviamente, faz parte dos fatores de dissolução, de desagregação social. A perda de confiança, o sentimento de injustiça, o sentimento de insegurança, todos estes são fatores que podem arruinar a solidariedade e a cooperação. Por isso, mesmo que surja de forma espontânea nos piores momentos, é preciso trabalhar em uma cultura cotidiana de apoio mútuo. E também, é claro, deixar para trás a cultura da competição e do egoísmo que hoje é a dominante por conta da ideologia neoliberal.

Quando sofrermos a primeira crise climática grave, o normal será que os cidadãos reajam com ira pela inação dos governos. Essa irritação, politicamente falando, pode se traduzir em uma ascensão dos movimentos fascistas?

É muito provável que sim, mas não é inevitável. Ainda há margem de manobra. Mas se nos fixarmos na história, vemos, com efeito, que o autoritarismo costuma ser uma das etapas habituais nos colapsos. Nos momentos de caos, sempre há uma busca colérica de culpados. Inventam-se bodes expiatórios para canalizar a violência, como os judeus, os refugiados, os estrangeiros... E também se busca a proteção paternal de um homem forte, com o fator agravante de que este ditador não acalma a situação, mas, pelo contrário, participa do caos e traz mais desigualdades, mais conflito e mais violência. Mas a cólera também pode assumir outras direções. A raiva é o que anima, por exemplo, os e as jovens de Extinction Rebellion. Possuem dois slogans muito descritivos: “Amor e raiva” e “Quando a esperança morre, a ação começa”. Eles vão além das promessas e esperanças. Não possuem mais tempo para isso. Na França, despertam a memória da luta contra o nazismo, daqueles garotos que se alistavam na Resistência com 15 ou 16 anos. Há algo muito belo neste desespero ou na raiva que representa, por exemplo, Greta Thunberg. Politicamente falando, é preciso cultivar o lado bom da cólera, do medo e da desesperança. Apelar às emoções é arriscado, sei disso, o sucesso não está garantido, mas também não temos muitas outras opções.

Dado que o colapso parece inevitável, seu trabalho de ativismo se baseia em dizer às pessoas que devem se preparar para o sofrimento que está por vir. Alguma vez teve dúvidas sobre este ponto? Pensou na possibilidade de diminuir o tom para explicar esta realidade de uma forma menos dura?

Não. Como cientista, sempre tive paixão pela verdade. Além disso, tento compartilhar a maior parte da informação de uma forma benéfica, embora seja verdade que não costumo ser muito emocional nas conferências. E sim, é preciso aceitar o sofrimento, a morte, o luto, o medo. No budismo, e também em outras escolas espirituais, é ensinado justamente isso: a viver com a dor, para viver melhor. Eu prefiro não mentir e tentar aprender a administrar o sofrimento. O curioso disto é que os meninos, as meninas, os e as adolescentes que comumente estão presentes no público me agradecem. Isso me emociona muito. Me agradecem pela sinceridade e a franqueza, e de repente o problema passa a ser uma questão de coragem, não de medo ou de dor. Pois bem, a priori alguém poderia dizer que não estamos em uma época muito propensa ao sacrifício e à aceitação da dor, menos ainda entre os jovens. A geração de nossos pais e de nossos avós, sim, estava mais acostumada a lidar com o sofrimento. Eles não se assustariam com um discurso como o seu. Também não acredito que eu tenha um discurso tão severo. Há outros muito mais duros e mais sombrios do que eu. De qualquer modo, acredito que há 50 anos o discurso suave não mudou muito as coisas. Neste tempo, a única coisa que conseguimos é nos fazer ouvir. Nosso discurso antes era inaudível e agora é audível. E antes era dirigido ao futuro, agora não. Trata-se do presente, de nós. A geração atual teve um clique. Os jovens acordaram, com amor e com raiva, e querem fazer as coisas de outro modo, aceitando o combate, o sofrimento, a resistência. Aconteceu em outros momentos de crises. Pense nas juventudes da CNT ou nos jovens que se alistaram nas Brigadas Internacionais, durante a Guerra Civil. Não estavam pensando em hedonismo e alegria. Sabiam, por convicção moral, que havia chegado a hora de lutar. Neste momento, a metáfora do incêndio é muito útil. Imagine que você vê fumaça perto de sua casa. Você tentará saber de onde vem essa fumaça, se as chamas podem chegar até o seu domicilio, se os vizinhos que há dentro daquele edifício são vulneráveis, como pode ajudá-los, como se organiza a evacuação... Evidentemente, sentirá medo, mas o que fará? Retirar-se? Não. Bem, a colapsologia é exatamente isso. Há décadas que estamos vendo a fumaça e sabemos que já existem pessoas que estão morrendo.

Com John S. Dryzek

O VOTO DA TERRA: RUMO A UMA DEMOCRACIA ECOLÓGICA

John S. Dryzek (1953), professor honorário do Centro de Democracia Deliberativa e Governança Global, na Universidade de Camberra, doutor em Ciência Política pela Universidade de Maryland, Washington D.C., é um dos cientistas políticos de referência em sustentabilidade e governança global. Sempre apoiado na ciência e se antecipando aos acontecimentos, contribuiu, desde os Estados Unidos e a Austrália, para o desenvolvimento filosófico e ético de uma teoria política que tratasse de situações como a que sofremos desde que a pandemia foi declarada. Conversamos com ele. “A primeira coisa que devemos fazer é não desanimar quando as ciências sociais criticam a limitada capacidade de avaliação dos indivíduos”, afirma. Entre os seus livros mais notáveis estão The Politics of the Anthropocene [A Política do Antropoceno], Rational ecology [Ecologia racional] e The politics of the Earth [A política da Terra]. A entrevista é de Alberto Pereiras, publicada por El Asombrario-Público, 29-04. A tradução é do Cepat /IHU

Você disse que a democracia liberal enfrenta, hoje, uma crise sem precedentes, ameaçada pela ascensão do populismo e de líderes autoritários, que, diferente de outros tempos, utilizam as tecnologias e as redes sociais. Também acrescenta que frente à liberdade de expressão, hoje, temos uma “sobrecarga de expressão” e uma infinidade de opiniões que os demagogos utilizam para polarizar a ideologia e minar o conceito de verdade: “O comportamento incivil das elites e a comunicação de massas patológica se reforçam mutuamente (...). É muito fácil se expressar, mas muitas vezes estas mensagens são informativamente falsas. Este é o problema mais grave da crise contemporânea da democracia”. Tivemos uma prova disso com a invasão ao Capitólio dos Estados Unidos. Como a democracia deliberativa poderia responder melhor a estes desafios?

Tradicionalmente, a democracia deliberativa foi vista como uma forma de se aprofundar nas qualidades das democracias liberais existentes, mas certamente assistimos a uma situação bastante nova com o desafio do populismo, a política da pós-verdade e os líderes autoritários, e tudo isso está acontecendo nas redes sociais. André Bächtiger e eu escrevemos sobre isso em um artigo publicado na Science com o título The crisis of democracy and the science of deliberation [A crise da democracia e a ciência da deliberação]. A primeira coisa que devemos fazer é não desanimar quando as ciências sociais criticam a limitada capacidade de avaliação dos indivíduos. Na ciência política, há uma longa tradição que questiona a capacidade das pessoas em avaliar com eficácia sobre política. O que agora sabemos é que as pessoas avaliam muito melhor juntas do que individualmente, mas apenas em circunstâncias adequadas, e eu diria que essas circunstâncias devem ser deliberativas. Há muitas experiências das quais é possível vislumbrar eficácia em ambientes de pequena escala, como públicos reduzidos, assembleias cidadãs ou júris de cidadãos. Por exemplo, a deliberação em tais ambientes reduz a polarização, e isto vale mesmo quando os participantes de determinada ideologia só falam com pessoas afins e não com os do outro lado. Quando atuam em condições deliberativas, temos evidências de que se tornam muito mais moderados em seu pensamento sobre a outra parte. Tais formas de públicos reduzidos oferecem oportunidades para a reflexão e para pensar as coisas com calma. E isto pode ajudar a neutralizar a “sobrecarga de expressão” que vemos em redes sociais e em outros lugares. A questão é que podemos identificar estes efeitos em deliberações de pequena escala, mas, claro, o desafio da democracia deliberativa é como ampliar isto para um público mais amplo. O conceito de “ciência da deliberação” neste artigo, sugere que a deliberação é mais próxima a uma forma científica de pensar: consciente de nossa falibilidade, procura racionalizar o debate democrático, tão carregado de rótulos. Você destaca que os meios de comunicação contribuem para reforçar as opiniões ou os preconceitos das pessoas, e que a democracia deliberativa busca romper essa polarização, o que me lembra seu artigo sobre a “retórica ponte”. Segundo o que li em outro artigo, Habermas reconhece que os consensos que não conseguimos na “linguagem pública” poderíamos conseguir, caso façamos o esforço de traduzir nossas “linguagens privadas”, às quais estamos apegados emocionalmente (por exemplo, os crentes com a noção de “pecado” nos debates sobre o aborto). Vemos, no entanto, uma preguiça que nos polariza em redes sociais, ao passo que sua ideia de “retórica ponte” tenta ir além de nossas bolhas semânticas para chegar até o outro. Escrevi o artigo sobre a retórica há onze anos e a ideia básica é que as pessoas que pensam na deliberação, muitas vezes, têm uma ideia muito negativa sobre a retórica, porque não apela à razão, mas às emoções e foi historicamente utilizada pelos demagogos. Mesmo que isso esteja correto, a ideia do artigo é diferenciar dois tipos de retórica: a retórica do apego e a retórica ponte. A do apego é a retórica que tenta reforçar a solidariedade entre um grupo particular de pessoas. A “ponte” é a que tenta chegar até as pessoas que têm um ponto de partida diferente, uma religião diferente, uma ideologia diferente, uma nacionalidade diferente... Alguém como Trump, por exemplo, especializa-se em uma retórica do apego, criando esta imagem de uma só comunidade estadunidense nacionalista branca. Mesmo que a retórica ponte busque transcender as divisões, é muito mais difícil, mas podemos avaliar esse tipo de retórica em termos do que faz pelos sistemas deliberativos.

E qual é a sua opinião sobre o controle da liberdade de expressão pelas redes sociais e o debate que foi reaberto desde que bloquearam a conta de Trump?

Talvez o problema esteja em que mesmo quando o Twitter ou o Facebook tomam medidas que parecem positivas, estão exercendo um enorme poder político e esse poder político não presta contas a ninguém. Talvez a solução seja a democratização do controle das redes sociais, integrando Twitter e Facebook e outros em sistemas democráticos.

É claro, estas empresas não têm o menor interesse nisso, e é muito difícil imaginar os governos as obrigando a isso. Mas é possível tentar imaginar o Facebook estabelecendo algum tipo de mecanismo participativo que determinaria os princípios pelos quais a empresa opera. De facto, uma de minhas colegas, Nicole Curato, está trabalhando em um projeto para propor um júri cidadão global no Facebook.

Em seus livros, fala da biosfera como um “agente” que condiciona nossas vidas e isso se acentuará ainda mais no Antropoceno, motivo pelo qual devemos reaprender a escutar ou a ler seus sinais, pois a comunicação não é um traço exclusivamente humano, mas da interação natural da qual fazemos parte. Como começou a relacionar a “razão comunicativa” de Habermas com os sinais da natureza?

Há muito tempo, quando eu era estudante no doutorado, descobri Habermas e achei sua abordagem fascinante. Influenciou-me muito. Mas, ao mesmo tempo, está bastante claro que para ele a racionalidade comunicativa deveria ser limitada às comunidades humanas, e quando se tratava do mundo não humano, uma dominação instrumental deveria ser adotada. Para mim, isso era muito arbitrário. Naquele momento, eu já era ambientalista e estava interessado na ética ambiental, que era algo incipiente em fins dos anos 1970 e inícios dos anos 1980. Na ética ambiental, o domínio humano da natureza é um problema. Se é um problema para a ética, deveria ser também para a política. E se queremos contrapor a dominação humana da natureza, não é apenas uma questão de ética ambiental, deve ser também de política ambiental. Foi então que comecei a pensar mais seriamente em como a natureza poderia ser um “sujeito” na política e não apenas na ética. Isso me levou à democracia ecológica. Foi há mito tempo, há cerca de 40 anos, mas, hoje, vemos uma crescente evidência científica sobre a comunicação significativa dos sistemas naturais, o que nos conduz à democracia em sistemas não humanos. O desafio é como conectar formas de comunicação humanas e não humanas.

Sugere também que qualquer comunidade pode se organizar mais ou menos de maneira racional e que a comunidade biótica não é uma exceção, razão pela qual devemos promover esta racionalidade: a capacidade desta comunidade para produzir o sustento vital do qual dependem todos os seus membros (incluído o ser humano). Como integrar esse nível biorregional com o geopolítico? Como empoderar a regiões em desenvolvimento em relação a seus recursos naturais, se atualmente dependem de outros países e grandes empresas, ou encontrar um equilíbrio entre essas empresas, comunidades e ecossistemas?

É uma grande questão, porque as empresas são muito poderosas e, muitas vezes, muito dominantes quando operam em países em desenvolvimento... Suas atividades deveriam ser democratizadas e talvez existam mais oportunidades para isso com as fundações do que com as empresas, porque as fundações querem ser vistas como éticas, ao passo que as empresas tentam ganhar dinheiro. É um grande desafio. Qual é a solução? Realmente não sei, mas podemos ver algumas iniciativas democráticas locais que poderiam ser constituídas para exigir que as empresas prestem contas. Por exemplo, no contexto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, houve um projeto que não fazia parte do processo da ONU, aconteceu por fora, e que se chamava Participa, organizando painéis nas ruas de países em desenvolvimento. Era um tipo de democracia deliberativa tentando averiguar o que as pessoas realmente querem quando falamos em Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O que pode ser muito diferente dos negociadores em Nova York. Às vezes, as pessoas dizem que a democracia deliberativa é algo apenas para países desenvolvidos e ricos ocidentais, mas a maior instituição deliberativa do mundo está na Índia e é o sistema de deliberação das aldeias ou “conselhos de aldeias”, chamados Gram Sabhas. Em algumas partes da Índia, são exemplos de uma democracia local muito vibrante e, o que é mais importante, envolveram a participação das pessoas em nível local. Poderíamos imaginar instituições deliberativas que se façam responsáveis pelo desenvolvimento local e que não apenas aceitem os ditados das corporações.

As instituições, os meios de comunicação, a indústria e filantropos como Elon Musk, Jeff Bezos e Bill Gates vão orientando nossa forma de lutar contra a mudança climática e conceber o desenvolvimento sustentável: reduzindo emissões ou mudando nosso sistema alimentar. Você alerta: “Quanto mais assiduamente cultivarmos os princípios éticos para uma ação benigna sobre o meio ambiente, mas ainda instrumental, menos provável será que sejamos capazes de nos reconciliar com esse meio de modo produtivo. Ou seja, a natureza se tornará ainda mais firmemente esse ‘outro’ do qual estamos distantes, ainda que nossas ações instrumentais sobre ela tenham boas motivações. O desafio é encontrar uma epistemologia menos propensa à subversão da ética ambiental (...) ou buscar o que Habermas desdenha como a ‘ressurreição da natureza’”. Parece que a forma como enfrentamos o progresso segue a lógica instrumental. Poderia explicar a ideia de ‘ressurreição da natureza’ e como faria a diferença?

A “ressurreição da natureza” é apenas outra forma de expressar a ideia de que a natureza deve ser tomada como um sujeito, quando falamos em comunicação política. Se você olha ao seu redor, hoje, inclusive muitas pessoas que tentam mudar as coisas, como Elon Musk, Jeff Bezos ou Bill Gates, pode ser que tenham intenções muito boas. Mas se pensa em como triunfaram em sua própria vida empresarial e ganharam milhares de milhões de dólares, fizeram isso utilizando a razão instrumental de um modo implacável. Jeff Bezos, em particular, em termos de eliminar todos os tipos de negócios que alguma vez tenham competido com o que ele tentava fazer. Parece, então, que todos têm uma atitude instrumental no desenvolvimento sustentável, que em muitos sentidos implica simplesmente em maior dominação da natureza. Por exemplo, penso na Fundação Gates, que é imensa. Acredito que gasta 4 bilhões de dólares por ano. Mas o que faz não é de modo algum democrático. Não presta contas a ninguém, exceto ao próprio Gates e talvez ao seu conselho. Informado pela ciência, parece muito mais orientada aos enfoques da dominação. Uma das coisas que Gates buscou fazer, nos últimos anos, gira em torno da engenharia genética, em particular adaptando a edição do genoma dos mosquitos para controlar a malária, o que envolve a liberação de mosquitos geneticamente modificados na África. Mas fez isso sem consultar as populações locais e sem ter informações suficientes sobre os possíveis efeitos secundários no meio ambiente, que desconhecemos. Isto me faz pensar no filósofo Nassim Taleb, autor de termos como “cisne negro” e “antifrágil”, que acredito que de alguma forma se aproximam dos princípios que você propõe para as instituições do Antropoceno, como a resiliência ou a reflexividade ecossistêmica. Afirma que nossas instituições são muito rígidas, inconscientes da fragilidade e incerteza em que atuam, sem levar em consideração como funciona a estatística e o risco, e defende, por exemplo, aplicar o Princípio da Precaução aos transgênicos. Na Science, você tem outro artigo, ‘Global citizen deliberation on genome editing’ [Deliberação cidadã global sobre a edição do genoma], que mostra como as “assembleias cidadãs” melhorariam estes debates. A primeira coisa que é preciso fazer é democratizar as atividades que pessoas como Gates e as grandes fundações controlam. Escrevi outro artigo sobre as atividades das grandes fundações com um de meus ex-bolsistas de pós-doutorado, intitulado Democratic altruism [Altruísmo democrático], publicado na International Theory, e, como digo, a primeira coisa é integrar as atividades destas fundações em processos democráticos que envolvem os cidadãos. A partir daí, é claro, eu acrescentaria que devemos pensar na democratização ecológica dessas atividades, na medida em que também afetam o sistema Terra e o resto dos seres vivos.

Diante da dependência do caminho ou da inércia das rígidas instituições tradicionais do Holoceno, você propõe novas instituições caracterizadas por essa reflexividade ecossistêmica, a resiliência, a prevenção... O que nos ensina a reação política durante a pandemia sobre esses novos princípios?

De algum modo, ensina-nos algumas coisas positivas, como algumas coisas que pensávamos que não poderiam mudar muito rapidamente, como o que os governos podem fazer. Os governos se dispuseram a fechar grande parte da economia para enfrentar a pandemia, mas se viram obrigados a fazer isso em um curto espaço de tempo e almejando retornar às abordagens econômicas convencionais, sem questionar os fundamentos do sistema. Por isso, na perspectiva da reflexividade é um pouco ambíguo. Um traço da reflexividade é a previsão e a capacidade de antecipar as crises e tomar medidas para preveni-las. Acredito que o que ilustra a pandemia é a falta de previsão na maioria dos governos. Porque os cientistas alertaram para a possibilidade de pandemias, durante décadas, e os governos deram muito pouca atenção. Pode ser que os governos, agora, pensem um pouco mais no que se aproxima. Na Austrália, foi um pouco deprimente, porque imediatamente antes da pandemia tivemos um dos verões mais secos e quentes de nossa história, nesta região do país. Tivemos incêndios florestais em massa, grande parte desta região ficou em chamas e em Camberra nos afogamos em fumaça, durante três meses. Muitas pessoas relacionaram o fato à mudança climática, porque isto nunca havia acontecido. Incêndios, sim, mas nada como isto. Isso reiniciou o debate político na Austrália sobre a mudança climática. Mas depois veio a pandemia, tivemos talvez duas semanas entre o final dos incêndios e o início da pandemia, e a abordagem do governo e dos meios de comunicação se deslocou para a pandemia. Os incêndios florestais pareciam esquecidos, desse modo, a mudança climática foi deixada novamente de lado. E o que é ainda pior, o primeiro-ministro nomeou um comitê de recuperação econômica, após a pandemia, dirigido por alguém da indústria dos combustíveis fósseis. Seu relatório dizia: “O gás deve impulsionar a recuperação, sendo assim, consumam mais gás, mais combustíveis fósseis”. Isto é uma espécie de antirreflexividade: tentar prender a Austrália na velha economia padrão baseada em combustíveis fósseis.

Cita um artigo na Science escrito por Frank Biermann e outros membros do Earth System Governance Project, ressaltando que o principal problema da governança global é a falta de integração entre políticas econômicas e ambientais, além da fragmentação institucional e a fragilidade dos pilares do desenvolvimento sustentável. Como melhorar esses pilares e a governança global?

O artigo de Biermann destaca que a resposta à fragmentação são instituições globais centralizadas mais fortes, embora muitos de seus coautores não necessariamente concordem com a ele. Eu concordo em que um grande problema é a subordinação atual da governança ambiental à econômica, em nível mundial. Escrevi muito sobre como melhorar a governança global e a tornar mais deliberativa e democrática. As possibilidades incluem: um papel aprimorado para a sociedade civil global; assembleias cidadãs globais; fazer com que os regimes internacionais sejam mais abertos, transparentes e responsáveis; democratizar os painéis científicos (como o IPCC) ao incluir a participação cidadã informada em relação a eles; e pensar em envolver os cidadãos nas redes de governança. Há muitas formas de fazer com que a governança global seja mais democrática sem eleições globais, que não são factíveis em um futuro próximo.

Você destaca que nossa cultura se baseia em uma razão instrumental herdada da dialética do Iluminismo, que legitima a dominação dos recursos naturais. O ecofeminismo vê nessa dominação uma epistemologia patriarcal; a ecologia espiritualista, o resultado da religião judaico-cristã que coloca o homem acima da natureza. Certamente, existem diferentes causas sistêmicas, e há aqueles que verão uma consequência evolutiva da própria Natureza, a partir da perspectiva do darwinismo social. Você se posiciona com a ciência e toma certa distância de todos eles, do espiritualismo ao totalitarismo ecológico, explicando que a natureza muitas vezes foi utilizada para justificar modelos sociais. Como a noção de “limites planetários”, proposta por Johan Rockström, pode nos ajudar a definir um marco racional de progresso respeitando a natureza?

Tenho desacordos pontuais com o ecofeminismo e com o espiritualismo, mas também tenho uma considerável simpatia por eles em relação aos problemas de dominação que identificam. Sobre os modelos tomados da natureza, foram utilizados por muitos, de fascistas à anarquistas, para justificar suas próprias posições políticas. Sendo assim, acredito que devemos tomar cuidado e não olhar a natureza como uma fonte de modelos. Deveríamos pensar nela como um agente que podemos tentar compreender e com o qual coexistir. E isso é muito diferente. Pense nos limites planetários em particular. Na verdade, um dos principais defensores dos limites planetários é Will Steffen, meu amigo aqui em Camberra. Existe uma espécie de potencial ambíguo quando falamos das implicações políticas dos limites planetários. Penso que para algumas pessoas, os limites planetários parecem muito tecnocráticos, identificados por cientistas. Implicitamente, deveríamos dar algum grau de poder políticos às pessoas que compreendem os limites planetários para que sejam respeitadas. Acredito que Rockström e Steffen falam de uma instituição de “arbitragem global”. No entanto, os limites planetários também podem ser utilizados de muitas outras formas, como uma espécie de “dramatização” das ameaças do sistema terrestre e, nesse sentido, são geniais.

E para você, na verdade, não são os únicos desafios que o Antropoceno nos apresenta...

Sim, é verdade, não refletem tudo, mas também acredito que é possível integrar os limites planetários em um diálogo mais democrático, porque não são em si mesmos um conceito científico. São um apelo ou critério informado pela ciência, mas não um conceito científico em si. Há um grande artigo argumentando isto, escrito por meu colega Jonathan Pickering, com quem escrevi The politics of the Anthropocene [A política do Antropoceno]. Ele escreveu junto com Åsa Persson e tem como título Democratising planetary boundaries [Democratizando os limites planetários]. Åsa Persson também é uma das coautoras do artigo original sobre limites planetários de Rockström. O que argumentam é que podemos conceber um diálogo democrático sobre como especificar os limites planetários e quais seriam as implicações para as práticas humanas, as instituições, etc.

Em seu livro ‘Onde aterrar’, Bruno Latour sugere que devemos superar a velha dicotomia esquerda-direita, pois uma realidade transversal como a natureza pode integrar as identidades tradicionais localistas ou nacionalistas com a Terra, assim como o progressismo global. Qual é a sua opinião a respeito dessa divisão esquerda-direita e da possibilidade de integrá-las?

É uma pergunta interessante. Muitas vezes, o meio ambiente foi associado à ala esquerda. Mas há muito tempo, quando os Verdes alemães foram fundados, disseram: “não estamos nem à esquerda e nem à direita, estamos à frente”. Acredito que em muitos sentidos é assim que gostaria de ver as preocupações ambientais, nem à esquerda, nem à direita, mas à frente. Devo dizer que não li o livro de Latour, apenas resenhas, mas pelo que compreendi contém uma forte recomendação de que nós, humanos, devemos ser seres “terrestres” e a política deveria se mobilizar em torno disso. E é claro que concordo com isso.

Edição 167, abril 2021

Com Rob Wallace

O AGRONEGÓCIO E OS CELEIROS DAS PRÓXIMAS DOENÇAS

Epidemiologista evolutivo descreve a fórmula que ameaça furacão de novas epidemias, com a nefasta indústria das Big farms. E como o governos neoliberais as reforçam, ao sentenciar população à contaminação deliberada Não é de hoje que o epidemiologista evolutivo Rob Wallace alerta para a relação entre o agronegócio e o surgimento de patógenos mortais aos seres humanos. No livro “Big Farms Make Big Flu”, de 2016 – lançado no ano passado em português como “Pandemia e Agronegócio” –, ao analisar surtos do vírus influenza em fazendas de porcos e aves, o norte-americano comparou o vírus a furacões e escreveu, em tom quase premonitório, que “um Katrina de influenza poderia estar engrossando seus braços na fila das epidemiologias”. A entrevista é de Anna Beatriz Anjos, publicada por Outras Palavras /IHU

O Brasil é visto neste momento como o epicentro da pandemia, com o número mais alto de mortes diárias no mundo. Além disso, novas cepas têm sido detectadas por aqui – primeiro a P1, em Manaus, e agora outra variante, que combina 18 mutações, identificada por pesquisadores em Belo Horizonte. Você acredita que o Brasil é uma ameaça para todo o planeta no que diz respeito ao enfrentamento da pandemia?

O Brasil é apenas mais um dos países onde houve negligência, ela está em todos os lugares, em alguns mais do que em outros. Nos países onde a negligência foi adotada como política oficial, vimos surgir novas variantes: nos Estados Unidos, temos uma que apareceu na Califórnia; há o caso da Inglaterra, com a B117; a P1 no Brasil; além da cepa da África do Sul. Em sua maioria, esses são regimes neoliberais de direita. No início do surto, o pensamento nesses lugares era: “O que vamos fazer? Imunidade do rebanho. Vamos deixar o vírus se espalhar e aí todo mundo vai ficar protegido por ter sido exposto.” Essa é uma abordagem malthusiana, porque permite que milhões de mortos sejam deixados pelo caminho, e também um completo fiasco, já que a resposta imune das pessoas à exposição ao vírus é diferente da resposta gerada pela vacinação – a vacina provoca uma resposta muito mais forte. Por outro lado, há países politicamente bastante diferentes entre si – China, Islândia, Vietnã, Taiwan, Nova Zelândia, Austrália – que usaram a governança para seu fim básico: intervir para que uma grande pandemia não matasse seu próprio povo. É importante analisar a complexidade do contexto geral para perceber que, ainda assim, o Brasil é único, por ter como presidente um incompetente e fascista que vê o genocídio como parte de seu programa de governo. A filosofia política genocida já ocorria muito antes do surgimento da Covid-19, portanto, de certa forma, não nos surpreendemos com ela. Mesmo assim é horrível, por que do que vale um governo que não consegue proteger sua população? Nós tiramos o Trump da presidência aqui, mas mais de 70 milhões de eleitores votaram em um homem que matou meio milhão de norte-americanos. Trump e sua filosofia derivam da própria história colonial e genocida dos EUA, que perdura até hoje e se manifesta no assassinato de indígenas e na escravização de pessoas negras. Vemos a mesma política no Brasil, de muitas maneiras. Portanto, de certa forma, os EUA e o Brasil são espelhos um do outro.

Você vê com preocupação o potencial de surgimento de novas variantes no Brasil, por conta da alta circulação do vírus?

Nosso grupo de pesquisa batizou a variante B117, que surgiu no Reino Unido, de “cepa BoJo”, em homenagem ao primeiro-ministro Boris Johnson. Isso tem um aspecto de sátira política, mas queremos chamar atenção para o fato de que o aparecimento de doenças não tem a ver só com o vírus. Sim, é importante fazer análises moleculares e acompanhar as mutações, mas há uma razão bastante explícita pela qual as novas variantes surgiram em países negligentes: eles permitiram que o vírus circulasse. Em vez de imunidade de rebanho, tivemos a “multiplicidade de rebanho”, que é quando você permite que o vírus circule em meio às pessoas e faça experimentos com o sistema imunológico humano de forma a driblar a imunidade. Certamente isso aconteceu no Brasil, onde a P1 emergiu mesmo com alguns esforços de promover o lockdown. Esses patógenos normalmente evoluem em um local e se espalham para o resto do mundo, superando as outras variantes. Portanto, a resposta é sim, isso é perigoso.

Em sua análise, no Brasil há locais com condições favoráveis ao aparecimento de um novo patógeno perigoso para os humanos, como aconteceu em Wuhan, na China?

Com certeza. Muitos dos patógenos transmitidos por vetores se urbanizaram. Sei que o Zika tem a reputação de ser um patógeno urbanizado – foi da África para a Ásia e depois para o Brasil, principalmente nas cidades –, mas isso não significa que não tenha nada a ver com desmatamento, tem muito e em vários aspectos. O primeiro deles é que o Zika teve alguns dos piores resultados clínicos, principalmente se co-infectado com dengue e febre amarela – é o que chamamos de ativação recíproca, quando as proteínas de um patógeno ativam as proteínas do outro. Nas duas últimas décadas, cientistas brasileiros têm mostrado que o desmatamento está impulsionando a disseminação de várias espécies de mosquitos que atuam como vetores de doenças, e alguns entomologistas brasileiros descrevem em detalhes como muitas dessas espécies estão chegando às áreas urbanas. Em segundo lugar, a distinção entre urbano e rural não é mais o que era antes: há a propagação do continuam urbano para dentro da floresta a ponto de cidades estarem surgindo encravadas na floresta. Isso expande o circuito de produção e leva a uma simplificação da floresta em termos ecológicos.

Assim como o SARS-Cov-2, pesquisadores acreditam que os coronavírus causadores da SARS, cujo surto eclodiu em 2002, e da MERS, que apareceu em 2012, vieram de morcegos. Por que os morcegos estão envolvidos no surgimento de patógenos que conseguem quebrar a barreira de espécie e infectar humanos – processo conhecido como spill over?

Em condições normais, a maioria dos patógenos leva um tempo para passar de hospedeiro a hospedeiro, e isso deve ser um limite para o quão “durão” ele pode ser. As exceções a essa regra são os patógenos de animais como os morcegos, os únicos mamíferos que voam. O sistema imunológico dos morcegos tem que ser muito bom porque eles não podem se dar ao luxo de ficar doentes, já que um morcego que não voa é um morcego morto. Os morcegos e seus patógenos, portanto, vivem numa espécie de guerra evolutiva, o problema é que, em humanos, esses patógenos causam danos consideráveis porque nós não estamos no mesmo nível. Quando a SARS surgiu em 2002, pesquisadores encontraram na floresta vários tipos de coronavírus parecidos com o SARS-Cov-1 [causador da SARS]. Tivemos três eventos terríveis de SARS nos últimos oito anos porque os coronavírus estão evoluindo a partir das defesas que os morcegos estão desenvolvendo contra eles. Nós definitivamente não queremos entrar no meio dessa briga. Imagine só, a gente entra num bar e vê dois caras, um segurando uma garrafa quebrada e outro com uma arma. O que fazemos? Saímos do bar, não queremos ficar entre eles, certo? Mas é exatamente isso que estamos fazendo.

Em que sentido estamos “entrando nessa briga”?

Quando vemos um morcego com uma arma na mão e o SARS com uma garrafa quebrada, nos afastamos. A mesma coisa com os mosquitos: queremos garantir que as pessoas não sejam picadas por eles dando-lhes moradia e saúde adequadas e o que mais for necessário. Só não queremos nos expor a potenciais danos com os quais não podemos lidar. O que as florestas fazem é trabalhar para nós por conta própria. Em virtude de sua complexidade, elas são como uma caixa que guarda alguns dos patógenos mais perigosos e garante que eles não se espalhem para as comunidades ao redor. Ainda assim, às vezes acontece o spill over para comunidades indígenas ou pequenos agricultores que vivem ao seu redor. Porém, quando esses grupos estão ligados a uma longa cadeia periurbana, qualquer evento de spill over – cujas frequência e diversidade aumentaram – tem uma chance muito maior de chegar a uma cidade da região e, de lá, se propagar para o resto do mundo. Agora, é muito trabalhoso se tornar um vírus celebridade, nem todo mundo pode ser a Madonna ou o Justin Bieber. Você precisa experimentar muito antes de chegar à combinação que te permitirá abrir o cadeado e se tornar um patógeno celebridade. Quando comunidades tradicionais e pequenos agricultores são forçados a deixar suas terras, basicamente elimina-se as pessoas que sabem manejar a floresta, preservar sua complexidade e cuidar dos serviços ecossistêmicos dos quais dependemos. E essas grupos provavelmente serão forçados a entrar no ciclo de migração, fazendo com que o corredor periurbano seja não apenas o meio pelo qual as mercadorias são transportadas, mas um caminho que as pessoas percorrem o tempo todo, de uma direção a outra, de forma que qualquer patógeno pode encontrar seu trajeto para a cidade.

Esse processo tem a ver com o aumento da frequência de aparecimento de patógenos mais perigosos?

Antigamente, os patógenos diziam “levei 150 anos para me tornar uma celebridade”, e agora você tem essa estrela que saiu de um rincão da Amazônia e cinco anos depois já está na balada bebendo champanhe e se divertindo. Aumentamos a velocidade com que isso acontece e a diversidade dos patógenos que estão atingindo esse feito. É improvável que demore mais cem anos para que tenhamos uma nova pandemia realmente grave, como aconteceu a partir de 1918 [com a gripe espanhola]. É muito provável que tenhamos a Covid-22, a Covid-23. Ou serão as próximas pandemias causadas pelos vírus influenza? Ou vai ser um vírus Nipah [que apareceu pela primeira vez na Malásia em 1998]? Muitos de nós estávamos de olho na peste suína africana, que saiu da África, atravessou a Eurásia e chegou à China em 2018, matando metade dos suínos chineses. Não estamos vendo apenas novas celebridades emergindo um ano após o outro, estamos vendo várias aparecendo ao mesmo tempo. Muitos tipos de patógenos diferentes estão percorrendo esse caminho em vários lugares ao redor do mundo.

Especialistas têm discutido em que lugares do mundo há chances da próxima pandemia surgir – China, Índia, Brasil etc –, quase todos países do Sul Global. Isso dificulta a responsabilização de empresas e países ricos que incentivam o modelo de agronegócio e lucram com ele?

Podemos discutir porque os patógenos são a causa do surto. Aí podemos falar sobre a causa da causa, que é o desmatamento. Depois, temos que debater ainda a causa da causa da causa, que é como o desmatamento está sendo impulsionado e por quais motivos. Isso tem a ver com os circuitos de capital e as geografias relacionais, segundo as quais o que acontece de um lado do mundo influencia o que ocorre no outro. O nosso grupo de pesquisa considera que lugares como Londres, Nova York e Hong Kong são os maiores focos mundiais de doenças porque é dessas cidades que parte o dinheiro responsável por promover o desmatamento que leva aos eventos de spill over, seja no Brasil, África ou China.

Em seus livros, você explica que a agricultura industrial oferece os “meios exatos pelos quais patógenos desenvolvem os fenótipos mais virulentos e infecciosos”. O que isso significa?

O melhor jeito de facilitar o surgimento de um patógeno mortal é por meio do sistema industrial de criação de aves, suínos ou gado. Não estou dizendo que o agronegócio tem a intenção de fazer isso, mas é uma junção perfeita de circunstâncias que contribuem exatamente para o aparecimento desses patógenos. Explicando melhor: imagine que você é um vírus ocupando um hospedeiro. Você não pode ser muito letal porque, se matar seu hospedeiro muito rapidamante, não consegue infectar o próximo. Você precisa se replicar somente até o ponto em que está pronto para passar ao seguinte hospedeiro, e para isso calcula mais ou menos quanto tempo demora normalmente para que ele apareça. Por isso as florestas, com sua complexidade, são tão importantes: num ambiente desse, é improvável que você encontre seu próximo hospedeiro tão rápido, isso demora um pouco [devido à biodiversidade]. Mas se você está num celeiro com 50 mil perus ou 250 mil galinhas apinhados e com o mesmo sistema imunológico, todos terão a imunidade deprimida pelas condições de aglomeração a que estão submetidos. Você, que é um vírus, olha e pensa “isso é ótimo, não tenho que me preocupar porque meu próximo hospedeiro está logo ao lado”. O fato desses celeiros estarem cheios de porcos e galinhas ajuda a selecionar as linhagens mais virulentas. E não é apenas um celeiro, frequentemente eles são construídos perto um do outro, num mesmo lugar, para atender às necessidades da produção em escala. Como o agronegócio tem muito poder político, eu costumo dizer que esses vírus têm os melhores advogados do mundo trabalhando para eles, porque esses advogados estão protegendo um modelo de negócio de sofrer intervenções. Mas podemos seguir colocando a culpa no vírus, nos pequenos agricultores ou na China.

Segundo especialistas, o SARS-Cov-2 se espalhou por meio do comércio de animais selvagens na China. Que semelhanças esse tipo de comércio tem com o agronegócio mais tradicional?

Nós estávamos preocupados com sopa de morcego, mas não se trata apenas do animal, é mais sobre como ele está sendo integrado a um determinado modo de produção. Na China e em outros lugares, a vida selvagem está sendo incluída no modelo industrial do agronegócio. Parte do dinheiro que sustenta o agronegócio está começando a custear esse setor mais formalizado. Como estamos caminhando a passos largos para a destruição da Terra e de seus animais, o que sobra deles se torna cada vez mais valioso, e de repente se transforma em mais um meio de ganhar dinheiro. Resumindo, os animais selvagens estão se tornando menos selvagens de duas maneiras: ao serem integrados à agricultura industrial e ao serem expulsos das florestas por conta de sua fragmentação. Por isso, cada vez mais estão sendo selecionados animais que consigam sobreviver nessas novas paisagens periurbanas. É o que acontece nos Estados Unidos com os gansos da neve: eles costumavam passar o verão nas terras úmidas do Golfo do México, que foram destruídas para dar lugar a shoppings centers. Enquanto outros animais não resistem e morrem, os gansos agora passam o verão nas fazendas do norte do país, aumentando a interface com a criação de aves e o spill over do vírus influenza. O capital industrial está desconectando todas essas ecologias. As ecologias estão sempre mudando, mas agora elas estão sendo desplugadas e reconectadas de forma a permitir que patógenos anteriormente marginalizados surjam em todos os lugares ao mesmo tempo.

Considerando que o agronegócio é uma força política e econômica muito importante em vários países – no Brasil, representa 26% do PIB –, há maneiras de ao menos diminuir o risco epidemiológico relacionado a essa atividade?

Existem maneiras muito práticas de intervir, como a engenharia reversa. Primeiro, é preciso introduzir a agrobiodiversidade, que atuará como uma espécie de corta-fogo imunológico. Isso quer dizer que, numa mesma fazenda, deve-se criar diferentes raças de animais, porque aí, se um porco ficar doente, é improvável que o patógeno passe para as cabras ou galinhas. Dessa forma, o agricultor consegue sobreviver economicamente e não favorece o surgimento de novas doenças, porque não haverá a densidade necessária para suportar um patógeno tão mortal. Não significa o fim da doença, só significa que uma doença não vai acabar com tudo. A segunda coisa é permitir que os animais se reproduzam de maneira natural para que aqueles que sobreviveram a surtos epidemiológicos transmitam sua imunidade à próxima geração. Em outras palavras, reintroduzir as leis de Darwin como um serviço ecossistêmico a favor da agricultura. Muitos pequenos produtores já fazem isso, e esse é o melhor jeito de alimentar o mundo e ao mesmo tempo protegê-lo do estrago que esses patógenos podem causar. Existe um processo de descampezinação, mas devemos pegar o sentido contrário, precisamos de mais camponeses. Isso confunde as mentes progressistas porque elas aceitam as premissas da produção industrial e pensam que a única coisa que se tem a fazer é socializar os meios de produção, quando na realidade a riqueza depende do trabalho e da terra. Precisamos de terra no sentido de uma fonte regenerativa dos meios pelos quais sobrevivemos como espécie, e os animais não humanos e todos os outros seres devem ser incluídos na noção do que é uma visão progressista.

Você disse em outras entrevistas que a vacina “pode ser uma distração das medidas necessárias para evitar que os patógenos continuem a se expandir”. Por quê?

Quando se trata de derrotar a Covid-19, precisamos vacinar todo mundo para evitar que as variantes surjam. O problema é o foco unicamente no aspecto emergencial do surto como forma de desviar a atenção de suas razões estruturais. Ao dizermos “temos uma vacina, o problema está resolvido”, deixamos de lado todas as discussões sobre a causa da causa da causa, que não só nos trouxe a esta pandemia e a todos os diferentes surtos ocorridos no século XXI, como também nos levará àqueles que ainda estão por vir. Obviamente precisamos tomar medidas de emergência, elas são importantes: a vida das pessoas está em jogo e precisamos de vacinas, antivirais e atendimento de saúde, mas as razões pelas quais tudo isso não está disponível para todos estão estreitamente ligadas aos motivos pelos quais as doenças surgem.

Acredita que os modos de vida dos povos indígenas e tradicionais oferecem uma alternativa a esse sistema?

Não quero fetichizar ou colocar ninguém num pedestal, mas as populações indígenas entendem como produzir alimentos, como mantê-los, como pensar nosso lugar no mundo. Eles estão tentando nos apontar um caminho e, de alguma forma, estão nos chamando de volta à Terra, porque partimos dela. Quando o Elon Musk coloca uma nave no espaço, isso representa, de fato, o que fizemos: deixamos para trás nosso planeta e os povos indígenas. Eles têm o direito de estar incrivelmente bravos com o que fizemos, mas muitos deles, de alguma forma, conseguem nos oferecer perdão em seus corações, nos chamando de volta à Terra e dizendo “vamos nos unir novamente ao planeta”. Não é que as culturas ao redor do mundo não tenham cometido erros, houve civilizações que colapsaram por razões ecológicas, mas os erros foram específicos, relacionados a uma paisagem particular. Já nós, o sistema capitalista, fizemos a versão global disso, constituímos a falha de julgamento como diretriz primária, como princípio – vamos destruir coisas e nos orgulhamos disso. Somos deuses caminhando sobre a terra da qual dependemos e estamos destruindo. O capitalismo gosta muito de enaltecer a engenhosidade da humanidade. Mas o Elon Musk, ao levar-nos a Marte, não tem nada a ver com salvar a humanidade, tem tudo a ver com o fim da humanidade.

Com Gérard Noiriel

PODEMOS IMPOR A CATEGORIA ‘RAÇA’ ÀS PESSOAS QUE A RECUSAM?”

O recente livro de Gérard Noiriel e Stéphane Beaud, Race et sciences sociales. Essai sur les usages publics d’une catégorie (Agone, 2021) [Raça e ciências sociais. Ensaio sobre os usos públicos de uma categoria] pretende fazer a história da noção de “raça” na França e seus usos, dos anos 1880 até os dias atuais. A entrevista é Régis Meyran e publicada por Alternatives Économiques. A tradução é de André Langer /IHU

Por que se interessar pela noção de raça?

Se embarcamos nessa aventura com Stéphane Beaud, é porque a “raça” está onipresente nos noticiários da atualidade, o que não acontecia cinquenta anos atrás. Porém, sem necessariamente fazer um juízo de valor, essa observação deve questionar intelectuais e pesquisadores interessados em mudanças no espaço público.

Por que o livro de vocês despertou tanta polêmica?

Apesar da recepção tempestuosa deste livro, desta vez não escrevi nada que já não tenha dito nos meus trabalhos anteriores! Grande parte das críticas que o livro provocou na mídia consiste em julgamentos de valor ou considerações políticas, à medida que tentamos nos colocar no reino da pesquisa científica. Eu tinha percebido o mesmo tipo de mal-entendido quando da publicação do meu livro Le Venin dans la plume (La Découverte, 2019) [O veneno na caneta] que comparou os escritos de Edouard Drumont no final do século XIX com os de Eric Zemmour: na época fui censurado de apoiar o islamismo!

Na sua opinião, a noção de raça pode ser tanto relevante, por iluminar a realidade das práticas racistas, como perigosa, por aquilo que você chama de “atribuição de identidade”... Pode explicar isso?

A noção de “atribuição de identidade” é frequentemente mal compreendida. Infelizmente, não posso resumir tudo o que escrevi sobre este assunto em poucas linhas. Portanto, remeto-os ao livro coletivo que editei sobre este tema. Resumindo, eu diria que a identidade de uma pessoa (o que a torna única) é construída a partir de uma infinidade de critérios que se combinam de maneiras diferentes em cada um de nós. No entanto, uma pequena parte desses critérios passa da esfera privada para a esfera pública (que pode ser definida grosso modo como um espaço de comunicação a distância acessível a todos, estruturado pelo Estado e pelo que hoje chamamos de “mídia”). Essa esfera pública é o lugar de uma dominação cultural exercida por aqueles que detêm o que Pierre Bourdieu chamou de “poder simbólico”: intelectuais, jornalistas, acadêmicos, políticos, especialistas etc. (ver o livro de Pierre Bourdieu, Meditações Pascalianas, Bertrand Brasil, 2001). O processo de atribuição de identidade é uma relação de poder, que permite aos detentores desse capital simbólico impor aos dominados este ou aquele critério de identidade em detrimento dos outros. Quando esses critérios são assumidos por um Estado, eles se tornam categorias administrativas, a partir das quais são feitas estatísticas, etc. Os critérios de identidade que foram institucionalizados por um Estado na maioria das vezes acabam sendo internalizados por indivíduos que saíram desse Estado, a tal ponto que se tornam componentes de sua identidade que a maioria deles considera naturais. Na França, o sexo, a idade, a nacionalidade e a categoria socioprofissional estão neste caso. Por outro lado, a raça não foi institucionalizada pelo Estado republicano, ao contrário dos Estados Unidos que foram marcados por uma história muito diferente da França. Certamente, a palavra raça foi usada pelo poder colonial como uma categoria discriminatória, mas este não era o caso na metrópole. O fato de o termo ter sido mencionado no artigo 1º da Constituição de 1958 tinha justamente a intenção de evitar que fosse utilizado como categoria de identidade. É por isso que o texto estipulava (em uma formulação recentemente alterada) que a França “garante a igualdade perante a lei de todos os cidadãos, sem distinção de origem, raça ou religião”. É essa peculiaridade da nossa história nacional que explica por que um grande número de franceses não deseja ser definido por um critério racial. Não estou dizendo que seja certo ou errado. Só estou dizendo que esse é um problema que qualquer pessoa com um pouco de poder simbólico que mencionei deve levar em consideração. Isso também se aplica aos pesquisadores das ciências sociais, que devem questionar a forma de dominação que correm o risco de exercer ao impor um critério de identidade que alguns cidadãos recusam. Eu entendo que esse tipo de questão não seja aceito por muitos intelectuais porque, em última análise, é o poder que exercem no espaço público que está em questão. É o que me incomoda, por exemplo, no excelente livro de Pap Ndiaye, La condition noire (Calmann-Lévy, 2008) [A condição negra]. Este autor define a pertença racial negra pelo fato de ser estigmatizado. Mas quando lemos os resultados da pesquisa realizada pela Sofres com o auxílio do Cran [Conselho Representativo das Associações Negras] (publicada como apêndice de seu livro), vemos que mais de 30% das pessoas definidas como negras afirmam nunca ter sofrido discriminação. A questão que estou colocando, de natureza científica, é saber como podemos incluir os indivíduos numa categoria de identidade, quando não cumprem o critério que foi utilizado para definir a categoria.

Poder-se-ia responder com a noção marxista de “falsa consciência”: pode-se imaginar que os trabalhadores digam que não são dominados quando de fato o são, pois estão despojados dos meios de produção. Não pode ser o mesmo para os negros que negariam a discriminação que sofrem como negros?

É o que diz Pap Ndiaye em seu livro ao afirmar que as pessoas que classifica entre os “negros franceses”, mas que se recusam a ser identificados pela raça, são vítimas ideológicas do “modelo republicano assimilacionista”. Esses são os tipos de argumentos que os intelectuais marxistas martelaram nos anos 1970, quando diziam que os operários que votavam na direita eram “alienados” pela propaganda da burguesia. Esse tipo de raciocínio implica que os intelectuais são mais lúcidos do que outros cidadãos sobre sua própria identidade. O que sempre me deixou cético.

Você acredita que ao focar apenas na raça acaba-se ignorando outros critérios de estigmatização, como a nacionalidade. É isso?

Para mim, o risco é que a raça, conceito importado dos Estados Unidos, seja aplicada de maneira muito esquemática ao caso francês, que tem uma história política e institucional específica. No entanto, Stéphane Beaud e eu insistimos fortemente no fato de se tratar de uma pesquisa empírica, com foco em problemas específicos, que devem nortear a escolha das ferramentas e das variáveis a serem utilizadas. No meu livro chamado Chocolat. La véritable histoire d’un homme sans nom (Bayard, 2016) [Chocolat. A verdadeira história de um homem sem nome] mostrei que o critério racial (definido pela cor da pele) era um fator essencial para a compreensão da história desse artista-palhaço.

Para vocês, o fio condutor da vida política francesa, desde a Terceira República até hoje, está nas tensões e oscilações entre a questão social e a questão da identidade, tanto na esquerda como na direita?

Na verdade, é um padrão global que apareceu na década de 1880, que sinaliza uma bipolarização da vida política francesa: de um lado, o polo da direita, da segurança nacional, que incorpora o conceito de raça; de outro, o polo sócio-humanitário, ou seja, a esquerda jauressiana que valoriza a classe operária, mas que consegue, na época do caso Dreyfus, integrar questões relativas ao que hoje chamamos de luta contra as discriminações. A esquerda foi hegemônica todas as vezes que conseguiu fazer a ligação entre as demandas socioeconômicas e as demandas relativas à luta contra o racismo (no sentido amplo do termo). Este foi o caso do Bloco de Esquerda na época do caso Dreyfus, depois sob a Frente Popular em 1936 com uma mistura de antifascismo e luta dos trabalhadores, e na época da vitória de François Mitterrand nas eleições presidenciais (1981). O programa comum da esquerda reunia, de fato, medidas destinadas a combater as desigualdades socioeconômicas e medidas contra as discriminações de que eram vítimas as mulheres e as minorias.

Mas, precisamente, você está dizendo que a classe é mais determinante do que a raça?

Eu me dei conta de que esse tipo de pergunta era de grande interesse para os jornalistas, mas, mais uma vez, feita em um nível tão geral, não fazia sentido para mim. Se você tomar os controles da polícia ou a entrada em boates, é provável que a raça (definida com base na cor da pele) seja mais importante do que a classe. Por outro lado, em muitas outras áreas, é o critério socioeconômico que é decisivo. Vejamos o exemplo amado por acadêmicos que estão na vanguarda dos estudos da “questão racial”. Como mostramos em nosso livro, um dos seus principais argumentos é denunciar a “colorblindness”, a cegueira à cor que explicaria a sub-representação das “minorias” em nosso espaço político.

No entanto, essa sub-representação é ainda mais flagrante se levarmos em conta o critério social, já que hoje não há deputado que tenha saído do mundo operário, embora representem 20% da população ativa. Por que os defensores da “interseccionalidade” nunca levam a sério esse tipo de discriminação na esfera pública?

O último ponto que gostaria de enfatizar é que, em uma pesquisa, os critérios que definem as pessoas não estão alinhados uns ao lado dos outros. Eles estão intimamente relacionados entre si. A maioria das pessoas que alguns agora definem apenas por sua raça, são muitas vezes oriundas da imigração pós-colonial, também fazem parte das classes populares. Incluem homens e mulheres, de uma determinada nacionalidade de origem, que podem compartilhar uma determinada crença religiosa, etc. Quando levamos em conta todos esses critérios, podemos afirmar, como fazemos no livro, que a maioria das minorias pertence às classes populares, elas são inclusive dominadas dentro da classe dominada. Aqueles que falam em nome dessas minorias fazem parte da classe média altamente instruída. Eles têm, pois, a oportunidade de se expressar. E isso é muito bom! Mas faz uma grande diferença em relação às classes dominadas socioeconomicamente, como os trabalhadores, que não podem falar publicamente porque não têm porta-vozes oriundos diretamente de suas fileiras. Tornaram-se “classes-objetos”, como dizia Pierre Bourdieu em relação aos camponeses, numa época em que os trabalhadores eram representados no Partido Comunista.

Além disso, os acadêmicos Pap Ndiaye ou Louis-Georges Tin, dentro do Cran, nunca tiveram a intenção de construir um movimento ao qual aderissem apenas pessoas definidas como negras. O sociólogo Michel Wieviorka fez desde o início parte do conselho científico desse movimento. Nisso, a acusação de fechamento identitário não é injusta?

Você teria que me dizer exatamente quem falou em fechamento identitário. De qualquer forma, releia o nosso livro e você verá que não sou eu. Deve-se entender que faço uma diferença capital entre o que diz respeito à pesquisa em ciências sociais e o que diz respeito à ação política ou associativa. Escrevo claramente neste livro que não cabe aos pesquisadores controlar a ação dos ativistas. Como cidadão, posso obviamente dar a minha opinião sobre uma determinada ação realizada pelo Cran. Como pesquisador, eu me limitarei a analisar os efeitos políticos que essas ações podem ter sobre o público, sem fazer um juízo de valor. Também discuto os usos da história que esses ativistas podem fazer para defender sua causa. Tomemos o exemplo do blackface, este espetáculo popular em que os brancos se transformam em negros retratando o personagem Jim Crow. Louis-Georges Tin interveio para pedir um boicote à peça Às Suplicantes de Ésquilo, encenada na Sorbonne, dando uma versão caricatural da história do blackface. Veja a reedição do belo livro do historiador americano William T. Lhamond, Peaux blanches, masques noirs (Zones Sensibles, 2021) [Peles brancas, máscaras negras], prefaciado por Jacques Rancière e para o qual estou assinando o posfácio. Isso explica muito claramente que o blackface é o produto de uma história muito longa, muito complexa e muito contraditória, que não se pode reduzir de forma alguma à caricatura de brancos maquiando seus rostos para humilhar os negros. Minha crítica a esse ponto de Pap Ndiaye é que ele escreve em seu livro que deseja permanecer em um nível estritamente científico, mas ao mesmo tempo diz que busca promover a emergência dos negros na França como uma minoria construída em torno deste critério racial. Para mim, esse objetivo não é mais uma questão de ciência, mas de ação política. Para concluir, penso que a melhor forma de combater o racismo hoje é enfrentarmos nós mesmos as contradições que este tipo de luta traz para impedir que Valeurs Actuelles, Le Figaro ou Marianne se apropriem para alimentar o seu discurso reacionário. É indiscutível que hoje, nessas questões, a direita é hegemônica. Cabe a nós refletir sobre os meios que devemos usar para inverter a maré.

Com Mariana Mazzucato

O ESTADO NÃO PRECISA FAZER TUDO, MAS TEM QUE LIDERAR O CAMINHO”

É uma das vozes críticas ao sistema capitalista, ou ao menos de um tipo de capitalismo, como disse, nesta entrevista, a economista ítalo-estadunidense Mariana Mazzucato. De fato, em 2019, o New York Times a descreveu como “a economista de esquerda, com uma nova história sobre o capitalismo”. Seus estudos foram muito mais escutados nos últimos anos, um tempo em que aumentou o debate sobre o tipo de modelo de desenvolvimento que deve ser aplicado no Chile e em outros países. Nesse debate, Mazzucato defende um papel muito mais central do Estado, questão que explica e aprofunda nesta conversa. Mazzucato é professora de Economia da Inovação e Valor Público, da University College London, e autora de livros como O Estado Empreendedor e Mission Economy: A Moonshot Guide to Changing Capitalism. A entrevista é de Francisca Guerrero, publicada por La Tercera. A tradução é do Cepat /IHU

Sua crítica se dirige ao capitalismo em geral ou a sua forma neoliberal?

É muito mais sobre o tipo de capitalismo. Não se trata de capitalismo ou socialismo, essa é uma discussão muito ideológica. Inclusive, parece-me que ao concentrá-la no neoliberalismo, torna-se um debate de conceitos do passado e do mundo da filosofia. O importante é que gere uma análise que aponte para uma transformação concreta sobre como funciona o modelo econômico. Nesse sentido, a primeira coisa é romper com a ideia de que o Estado tem um papel secundário na economia, porque, se for assim, sempre chegará com pouco e tarde. Então, o que proponho é que o Estado precisa ter um forte sentido de propósito público no interior de organizações públicas.

Como é o Estado que realmente pode ocupar um papel mais preponderante na economia?

Refiro-me mais pontualmente a um Estado como uma rede descentralizada. É uma organização pública diferente. No interior dessas organizações, seja algo como a BBC no Reino Unido ou como a Corfo no Chile, é preciso antes de tudo entender o papel do Estado como modelador e criador de mercados que sirvam a propósitos públicos. Portanto, deve ser um Estado mais inclusivo e mais sustentável. Em segundo lugar, é um Estado que precisa investir em áreas particulares que talvez envolvam altos riscos, porque atualmente não contam com um setor privado que invista nelas. Mas se o Estado se torna o responsável com uma visão ambiciosa, o objetivo geral tem que ser o de reunir o setor privado. Então, não se deve pensar em Estado versus empresas, mas em um Estado catalisador para que as empresas façam o seu trabalho.

Como exatamente é o vínculo que propõe entre o setor privado e o Estado?

Por exemplo, em muitos países latino-americanos, não existe investimento privado suficiente e todos culpam o Estado por isso. No entanto, esta situação também revela uma inércia do setor privado. Então, o Estado não só deve ser ambicioso em convocar o investimento empresarial, como também deve estabelecer condições unidas ao investimento público, de maneira que garanta que o setor privado faça o seu trabalho. De outro modo, pode estar conferindo um passe livre para que o setor privado chegue e quando obtenha resultados, dedique-se apenas a ganhar dinheiro. Isso não está certo. É pelo que disse anteriormente que aponto a necessidade de se ter um ecossistema simbiótico de inovação. Em outras palavras, um ecossistema onde o investimento público também se concentre em uma recompensa pública. É preciso compreender que isto não se refere somente a um assunto monetário, mas a condições mediante as quais se garanta que quando o investimento privado for impulsionado em conjunto com o investimento público, vá acompanhado de condições de trabalho seguras e de uma produção que cuide do meio ambiente, entre outros elementos. Há aqueles que estão avançando nessa linha. Por exemplo, o governo de Emmanuel Macron estabeleceu tais requisitos para as empresas que o Estado francês prestou ajuda no marco da pandemia.

Aqueles que são contra um maior protagonismo do Estado, apontam para uma ineficiência que se destacaria em países como os latino-americanos. Como responde a essa linha de argumento?

Essa é uma profecia autocumprida, porque quando se tem essa visão do Estado, não se confere a ele as capacidades para que se configure como um ator relevante. Além disso, pensa-se que o Estado é incapaz, que é burocrático por algo assim como o seu DNA, investe-se menos para torná-lo mais criativo e dinâmico. Pensar o Estado de uma maneira diferente requer investimento. Trabalhamos nisso no Instituto para a Inovação e o Propósito Público, da University College London. A ideia é contribuir para que os estados percebam que não é possível conseguir melhores políticas, caso não seja mudada a forma de pensar. É preciso apontar para o desenvolvimento de novas habilidades, para o debate acerca do valor e acerca de como medi-lo com novas métricas, deixando para trás o modelo estático de custo e benefício. É preciso ter uma mentalidade de portfólio, com a ideia do Estado como investidor de primeiro recurso, não como o credor de último recurso. Então, não precisa fazer tudo, mas o Estado tem que liderar o caminho e fazer os investimentos de alto risco nas etapas iniciais da cadeia de inovação.

Em que áreas você pensa o Estado, neste papel de liderança?

Por exemplo, em temas como a digitalização de um país, que permita garantir um avanço na direção de um Estado de bem-estar modernizado e inovador. Para isso, é necessário, primeiro, investimento do governo, e depois, é claro, pode-se convocar o setor privado. Além disso, o Estado deve liderar a transformação de indústrias como a do cobre ou até a do salmão. Não deve estar aí somente para quando for ajudá-las a sobreviver, deveria estar colaborando com sua transformação em uma direção em particular. Por exemplo, quando a indústria do aço pediu um empréstimo ao governo da Alemanha, foram criadas rotas para o investimento em aço, assegurando-se de que a indústria se transformaria e conseguiram. Agora, utilizam tecnologia reciclada e hoje é o setor de aço mais inovador, e não porque a iniciativa privada decidiu, mas porque tiveram que agir assim para conseguir os empréstimos do Estado.

O processo constitucional oferece uma oportunidade para que o Chile avance para um Estado como o que você propõe?

É preciso redefinir o papel do Estado na economia e é bom fazer isso agora que reescrevem sua Constituição. É importante que fique claro a ambição por um crescimento inclusivo e sustentável e o papel do Estado deve ser o estabelecimento de obrigações e métricas claras para que as instituições cumpram com esses objetivos. De outra forma, só tem políticas que apontam para o aumento dos lucros. É claro, o Estado também tem que cumprir a tarefa de arrecadar impostos, com um desenho justo, por exemplo, com impostos à riqueza. Tem que ser um sistema progressivo, tendo presente que uma agenda progressista não pode ser levada adiante sem crescimento. Uma agenda progressista tem que pensar em novas formas de gerar riqueza, em primeiro lugar. Isto é algo que, no caso dos países da América Latina, é especialmente importante, pois muitos populistas de esquerda só se concentram na redistribuição, sem contar com estratégias de inovações ou planos de associação público-privada.

A pandemia oferece espaço para pensar em um novo capitalismo, como o que você apresenta em seu último livro?

Muitos estão falando em voltar a uma etapa pré-pandêmica, mas existem mais alternativas. As empresas por todo o mundo estão requerendo ajuda estatal, por exemplo, através de resgates, e o esboço desses contratos deve incluir uma melhor associação público-privada. Ou seja, toda empresa que recebe fundos para a sua recuperação, deveria se comprometer em desenvolver um tipo de crescimento diferente, com investimento nas condições de trabalho e redução de suas emissões de carbono. Em segundo lugar, é preciso tirar lições deste momento e contar com o investimento para fortalecer os sistemas públicos de saúde no marco do fortalecimento do Estado de bem-estar. Essa é a maior lição desta crise: quando temos um sistema de saúde frágil, estamos arruinados. Em vez de apenas buscar dinheiro no sistema de saúde, precisamos modernizá-lo. Temos que modernizar o Estado de bem-estar, com o cuidado das pessoas, dos trabalhadores, do planeta... Para avançar nisso, repito, é necessária uma estratégia de investimento público. A resposta à pandemia não pode ser tratada simplesmente de um helicóptero de dinheiro, de pacotes de estímulo sem uma direção clara. Então, é necessário apontar para uma recuperação inclusiva, sustentável, verde e com um sistema de saúde forte.

Conseguiu conversar a respeito destas abordagens com alguns políticos chilenos?

Sim. Dei uma palestra em Santiago, pela CEPAL, na qual havia muitos políticos chilenos, alguns no governo e outros não. Além disso, mais recentemente participei com Giorgio Jackson em um podcast público e quando veio a Londres também falei com ele. Mas esclareço que não estou vinculada a algum partido político em particular, só compareço onde querem escutar minhas ideias. Por exemplo, também pude conversar com o presidente da Argentina, Alberto Fernández, mas antes também tive conversas com (Mauricio) Macri.

Edição 166, março 2021

Com Axel Kahn

A HUMANIDADE SEMPRE ENCONTRA UMA SAÍDA”

Segundo o geneticista, presidente da Liga Nacional do Câncer, talvez nunca acabemos com a Covid. Mas o humanista continua confiante em nossa capacidade coletiva de enfrentar a crise sanitária global. Desde o início da pandemia, o geneticista assumiu publicamente uma posição pela proteção dos mais vulneráveis, especialmente as pessoas com câncer, bem como pela universalidade da vacina anti-Covid, após apelar ao governo para impor o uso da máscara em locais públicos. Conversa com um humanista que defende o uso da razão mais do que nunca nestes tempos de crise e que acaba de publicar: Et le bien dans tout ça?, Stock (E o bem em tudo isso?). A entrevista é de Olivia Elkaim, publicada por La Vie. A tradução é de André Langer /IHU

E aqui estamos, um ano após o início da pandemia. O que aprendemos sobre nós mesmos?

O tempo da imprudência dificilmente pode durar, não pode ser definitivo. Do ponto de vista econômico, e agora sanitário, estamos saindo de um período que começou após a Segunda Guerra Mundial e foi marcado por um otimismo temerário.

O que ainda não compreendemos?

Nunca compreenderemos totalmente as turbulências da alma humana. Eu tenho 76 anos. Passei parte da minha vida tentando dar explicações para que meus semelhantes, cidadãos, crianças nas escolas, pudessem compreender melhor os fenômenos ao seu redor e os desenvolvimentos científicos. Valorizei a abordagem da razão, tentei persuadi-los de que não se podia contestar o uso da razão, da lógica, para argumentar em um debate. Mas durante esta pandemia, assistimos a uma explosão extraordinária das posições mais irracionais, de formas de agressão à razão. Pude dizer a mim mesmo que era a negação e o fracasso daquilo a que dediquei minha vida.

Você se arrepende?

Sim, essa é uma observação totalmente triste. O que nós perdemos, mulheres e homens da minha geração? Há um recuo significativo do uso da razão em comparação com quando eu tinha 30 anos.

Esta pandemia parece, de facto, desafiar a razão...

Não! Tudo é razoável. A melhor prova é que cometi poucos erros ao prever seu futuro. Fiz apenas um, e grande: em março de 2020, pensei que, como a gripe espanhola, esse vírus iria nos atacar e ir embora, que não ouviríamos falar nele novamente. Não estou mais convencido disso hoje. Talvez tenhamos que conviver com esse vírus. Não deixando isso acontecer, é claro. Uma marca registada do “mundo pós-pandemia” pode ser que nunca conseguiremos erradicar a Covid.

Portanto, mergulhamos em um mundo em que teremos que conviver com as epidemias.

Mas esse sempre foi o caso! A última pandemia – a gripe de Hong Kong – foi há 50 anos. Nós a tínhamos esquecido... Porém, desde que há homens sobre a terra, sempre houve grandes pandemias que, às vezes, mataram 30% da humanidade. Nada de novo!

O que há, então, de novo desde o ano passado?

A realidade do mundo reapareceu de repente para nós em sua dureza e incerteza. No entanto, a despreocupação e o otimismo foram gradualmente desmoronando com as dificuldades da construção europeia, as crises econômicas, a crise dos subprimes em 2008. Estamos agora enfrentando este flagelo sanitário.

Este ano, você defendeu o fato de que não devemos confinar apenas os idosos. Mas não temos feito os jovens pagarem por esta epidemia, com dramáticas consequências psicossociais?

Nesta fase da evolução das nossas sociedades, moral, médica e tecnicamente, isso não é possível. Se deixar os idosos em um canto tivesse evitado a crise econômica, social, psicológica, eu diria: por que não? Mas os países que tentaram fazer isso falharam.

Há uma questão ética subjacente: devemos “proteger” os idosos dando prioridade à proteção da saúde, ou devemos “proteger” os jovens priorizando a economia, o emprego e a educação?

A pergunta é absurda! A Suécia é um bom exemplo: o país deixou os jovens viverem; os velhos morreram em massa. Seu PIB entrou em colapso. O número de mortos é até 10 vezes maior nos países vizinhos. É um desastre total. Os únicos países que protegeram idosos e jovens são aqueles que adotaram a estratégia “Covid zero”. A única que funcionou. Qualquer que seja o custo, a princípio essa estratégia visava erradicar o vírus, depois ser implacável contra todas as suas reinfiltrações: Nova Zelândia, Austrália, Tailândia, Coreia, Japão e China adotaram essa estratégia. Hoje, os jovens nesses países dançam nas boates, trabalham, vão à escola, à universidade e têm 100 vezes menos mortes.

Na França, o executivo adota uma estratégia entre duas águas.

O único esforço real que fizemos foi o primeiro confinamento de março a maio. Ao final, ocorreram 15 mortes por dia. Mas não conseguimos manter este resultado: não tínhamos testes suficientes; o “testar, rastrear, isolar” só funciona quando a circulação viral é muito baixa. Em novembro, estávamos confinados com o objetivo de atingir 5.000 pessoas infectadas por dia. Em dezembro, relaxamos com 10.000 contaminações diárias. O Presidente da República mudou de ideia. Atualmente, a opção política é manter uma alta circulação viral. O preço a pagar em termos de saúde é significativo.

Os franceses estão exasperados com as restrições.

Eu entendo perfeitamente. O mais exasperador é que não há perspectiva de sair do túnel. A alternativa atual? Bicicleta, trabalho remoto, cama. Ou seja, uma vida diminuída, com um preço social e econômico considerável.

O paradoxo do confinamento estrito é que ele preserva a vida biológica. Mas ainda é realmente vida quando não há mais relações sociais?

Não podemos viver com o vírus. Para que a vida social e cultural seja retomada, é preciso controlá-lo. Para que teatros, universidades e restaurantes reabram, é necessária uma baixa circulação viral.

Você defendeu as pessoas mais frágeis, especialmente aquelas com câncer. Mas uma política de confinamento rígida levou a enormes problemas de saúde pública, com cânceres não detectados e mortalidade excessiva...

É pior agora! A tensão nos hospitais persiste, o plano de urgência foi reativado, os surtos epidêmicos são deplorados em alguns estabelecimentos de saúde. Potenciais pacientes ainda não foram detectados. Substituímos um esforço concentrado de algumas semanas por um ano de privação e tensão. Alguns analistas econômicos demonstraram que a melhor solução financeira, sanitária, social e psicológica seria erradicar a doença, por meio de contenção rígida, e depois retomar uma vida sem esse vírus.

Você não mudou sua linha sobre a necessidade do confinamento generalizado.

Eu não faço política. Mas não acredito que as escolhas atuais sejam boas do ponto de vista da saúde. Nem para os 100 mil mortos que teremos de deplorar no final, nem pelos pacientes com câncer que cuido na Liga, nem pelo estado psicológico dos franceses. Somente o primeiro confinamento permitiu o colapso da circulação viral. Mas compreendo as escolhas dos políticos face à exasperação dos cidadãos que temem que não apoiarão novas restrições.

Como permanecer “razoável e humano”, nas palavras de seu pai, o filósofo Jean Kahn, diante da complexidade dessa crise?

Antes do seu suicídio, meu pai me disse para sempre usar minha razão. No contexto desta crise, isso não requer uma reflexão profunda. Aperfeiçoamento das técnicas de atendimento, novos protocolos médicos, decisões para pacientes em final de vida, ensaios clínicos, tudo isso exigiu o uso da razão e a consideração da realidade da vida humana.

Seu livro intitula-se E o bem em tudo isso? O que você quer dizer com “o bem” e como isso se reflete na gestão da epidemia?

O bem é materializado no respeito e na preocupação pelos outros. Tudo o que põe em perigo a segurança, a saúde, a autonomia e a liberdade das pessoas é mau. A indiferença se situa entre os dois, mais do lado do mal, na minha opinião. No contexto da pandemia, sempre que é promovido um método que limita os constrangimentos das pessoas ao mesmo tempo que preserva as suas vidas, que não considera que podemos sacrificar certas categorias de pessoas, estamos do lado do bem.

Neste período de incertezas, quando o sofrimento psicológico dos franceses é persistente, a que podemos nos agarrar?

No início da crise, falava-se com certa ingenuidade do “mundo pós-pandemia” que era para ser alegre, fraterno, onde se promoveria a saúde e se combateria o capitalismo selvagem. Eu sempre pensei que o “mundo pós” seria como o “mundo de antes” e pior. A felicidade será possível? Sim! A humanidade encontrará outras maneiras de desabrochar? Os casais podem se amar e ter filhos? Sim! A vida e a riqueza de projeção do espírito humano, nossa capacidade de abraçar o mundo com ternura e amor são razões para permanecermos otimistas. Enquanto houver uma pequena faísca, o fogo pode crepitar novamente.

Há alguns anos, você cruzou a França a pé, encontrando um país abandonado e os mais vulneráveis. Como você vê nossos concidadãos que oscilam entre o desgaste e a resiliência?

Há continuidade entre minha análise atual da situação e minhas observações como caminhante durante essas duas travessias da França. Descobri territórios abandonados, pessoas sem esperança que se separaram de todas as formas de racionalidade administrativa e política. Isso abrange os territórios de onde vieram os “coletes amarelos”, que então se viram entre a massa de pessoas que negava a palavra das autoridades públicas e sanitárias durante esta crise. Essas pessoas não acreditam mais na República, nem nos seus representantes, nem em Paris ou na Europa. Eles responsabilizam todos os detentores de poder. Mas o conhecimento confere poder. Tudo o que vem das autoridades, acadêmicas ou estatais, é engano a ser rejeitado por essas pessoas em secessão que, em massa, seguiram Didier Raoult. Há uma continuidade marcante, nas redes sociais, entre os “coletes amarelos” e os adeptos deste último. As populações carentes, as mais revoltadas, estão atualmente no mesmo processo de secessão que observei durante as minhas marchas.

Com a pandemia, a reflexão ética foi minada pela urgência da situação, pois levantou questões importantes como a triagem de pacientes e o alívio de pessoas em final de vida em casas de idosos. Essa crise mudará nossa relação com a ética médica?

De modo algum. Como jovem estagiário, tive momentos de grande afluência de pacientes no hospital e já tinha que saber quais atenderia prioritariamente. A priorização é indissociável da medicina. Na terapia intensiva, durante toda uma parte da minha vida, fui confrontado com uma implacabilidade irracional, com pessoas que tenho que decidir se reanimo ou não.

Essas questões reapareceram durante esta crise...

Do ponto de vista dos pacientes, sim, mas não do corpo médico.

Você escreve que é agnóstico. No que exatamente acredita?

Não me coloco a hipótese de uma transcendência. Para mim, o espírito é imanente. A incrível capacidade dos espíritos humanos, sua comunhão, a habilidade de abraçar a beleza do mundo, de vibrar com ela, isso me faz estremecer e chorar. Eu experimentei isso em várias ocasiões. Em Conques, depois que o irmão Jean-Daniel nos mostrou o Juízo Final do tímpano da basílica, entramos nele. Ele tocou o órgão sob uma luminosidade composta. Era lua cheia, os últimos raios de sol apareciam atrás dos cumes do Rouergue, tudo isso passando pelos vitrais de vidro soprado de Soulage... Estou encostado em uma coluna e tomado pela música. Este é um estado de emoção intensa, uma experiência do sublime. Mas eu sou agnóstico! Nesse momento, estou cercado por centenas de peregrinos crentes, mas não há a espessura de uma folha de papel de cigarro entre a minha emoção e a deles.

E na natureza, você já experimentou o sublime?

É claro! Certa vez, descendo o ponto mais alto do Cézallier, no Maciço Central, a 1.500 m de altitude, eis que me deparo com um grande prado deserto. De repente, estou diante de um campo de orquídeas selvagens que se estende até onde a vista alcança. Algumas estão fechadas como punhos juvenis e desajeitadas; outras têm as mãos estendidas, rosas, lilás, listradas. Com o vento dos picos, é Shiva que tenta me seduzir. Estou estupefato! Incapaz de dar mais um passo por medo de esmagar uma. Uma ideia me atravessa – aplica-se a este momento difícil que estamos enfrentando: enquanto no mundo tal beleza existir e for entendida como tal, o infortúnio absoluto não pode existir na terra. Esta é especialmente a minha esperança. Após o primeiro confinamento, fui para a floresta. Certamente, os junquilhos, os narcisos tinham passado, mas era época de columbinas, orquídeas, lírios do vale, aspargos silvestres; era maravilhoso. Enquanto for possível, haverá um futuro desejável e óbvio. Eu acrescentarei: enquanto homens e mulheres puderem ver seus olhos brilharem de desejo, haverá um futuro nítido.

O que lhe resta de sua juventude católica?

O catolicismo é minha terra natal. Mas não me coloco a hipótese do bom Deus e não acredito na vida eterna. Quando eu morrer, minha imagem se desvanecerá. A ideia de que as margaridas vão crescer perto do meu túmulo, nutridas pelas moléculas do meu corpo podre, é o suficiente para me fazer feliz.

Você perdeu a fé aos 15 anos, mas não rejeita tudo...

O humanismo cristão merece ser preservado e refundado sem pressupor a transcendência. Esta é a jornada intelectual da minha vida.

Você está preocupado com o período atual?

Tenho certeza de que ficaremos bem porque a humanidade sempre encontra uma saída. Resistimos à peste negra e vamos resistir à Sars-Cov-2! Mas teremos que reconstruir. Vamos reconstruir, vai ser lindo e vamos nos amar!

Seja razoável e humano”

Neste ensaio, Axel Kahn tenta definir o bem, confronta-o com as descobertas científicas que levam ao transumanismo e à esperança louca da imortalidade. Ele também questiona o lugar do bem no espaço público, no campo das decisões políticas, especialmente neste período de crise sanitária. “Estamos embriagados com uma sensação de invulnerabilidade”, lamenta. Este vírus nos coloca frente a frente com a nossa finitude. É para o nosso bem? Por fim, e estas são páginas mais íntimas, o geneticista questiona a forma como poderia e soube responder à injunção de seu pai, o filósofo Jean Kahn, antes que este se suicidasse em 1970: “Seja razoável e humano”. Um livro denso e rico em matéria para a reflexão sobre a pandemia.

Com Boaventura de Sousa Santos

TENHO MEDO PORQUE O POVO NÃO SAI PARA PROTESTAR NA RUA”

Boaventura de Sousa Santos (Coimbra, 1940) está há quase um ano confinado em sua cidade. Aproximadamente, o mesmo tempo em que a pandemia surgiu em Portugal. De lá escreveu um complexo ensaio sobre sua visão do que significou até agora e o que deveria significar no futuro a deflagração da crise sanitária. 'O futuro começa agora: da pandemia à utopia' [Boitempo, 2021] é o título da obra em que este reconhecido sociólogo defende uma mudança de era, em nível mundial, em que a natureza esteja no centro de tudo. Aproveitamos a oportunidade para falar com ele sobre o porquê tem medo, ao lado da esperança, mas também acerca do teletrabalho, da resposta das organizações populares diante da inoperância dos Estados, da relação entre colonialismo, capitalismo e patriarcado, das notícias falas e sobre como conviver com a incerteza científica. A entrevista é de Guillermo Martínez, publicada pelo Público de Madrid. A tradução é do Cepat /IHU

Você comenta que “os privilegiados que puderam continuar trabalhando, através do teletrabalho, se fecharam em casa, paradoxalmente para se sentir menos fechados. E trabalharam ainda mais intensamente”. A casa, o lar, mais uma vez como privilégio que não está ao alcance de todos.

Sim, mas um privilégio com ressalvas. Por um lado, os que puderam teletrabalhar não perderam seu emprego e, em alguns casos, viram como a relação com seus familiares melhorava. Sabemos, por exemplo, que no norte global os pais jovens passavam no máximo 20 minutos por dia com seus filhos, assim, agora, tiveram a oportunidade de estar mais tempo com eles. Ao mesmo tempo, sabemos que em todos os países aumentou, sem exceção, a violência machista e o feminicídio, razão pela qual estar em sua casa pode ser bom, mas também sinônimo de conviver mais tempo com o agressor, neste caso, seu companheiro.

Que impacto o teletrabalho terá a partir de agora?

Digamos que o capitalismo, a nova onda que emerge através da Quarta Revolução Industrial pelas mãos da inteligência artificial, viu nesta pandemia um experimento global para poder mudar as relações trabalhistas. Caminhamos para um estágio em que não haverá fábricas, mas também não haverá protestos de sindicatos, por exemplo, nem greves, muito mais difíceis de se construir, caso não se trabalhe lado a lado, nem se conheça os companheiros. Há um perigo neste capitalismo eletrônico porque, de alguma maneira, significa um regresso ao período inicial do capitalismo, quando os artesãos trabalhavam em suas casas. A única questão é que agora faremos isso submetidos ao empresário. Inquieta-me ver como os sindicatos e os partidos políticos de esquerda não estão interessados em enfrentar este problema que virá após a pandemia. Há uma estratégia global, e não só no campo trabalhista, mas também na educação, onde serão eliminadas as associações estudantis, dos campi universitários, e será muito mais difícil articular as demandas. Em minha avaliação, o capitalismo não passou por nenhuma crise, mas, ao contrário, se fortaleceu com a pandemia, como já aconteceu na crise financeira de 2008. Por fim, a ideia do teletrabalho é importante porque criará novas oportunidades, mas os grupos sociais mais progressistas e populares terão que enxergá-lo assim e não deixar que os interesses do capital mundial, que também veem novas oportunidades, prevaleçam.

Escreve entre o medo e a esperança, como se o primeiro fosse imposto e a segunda a única coisa que nos resta. Do que você tem medo? Por que tem esperança?

Tenho medo porque o povo não sai para protestar na rua. Alguns países, sobretudo governados pela direita, aproveitaram a pandemia para legislar questões que pioram a situação das classes populares, como Brasil, Colômbia, Reino Unido, Estados Unidos e Hungria. Ao contrário, na Índia foram às ruas pequenos camponeses e agricultores que viram seus direitos suprimidos. Meu medo é que os Estados, cada vez mais submetidos à lógica capitalista, não recebam uma pressão popular pacífica para melhorar as condições sociais que serão minadas após a pandemia. E também me causa medo que, embora não vejo o que foi dito acima, sim, observo como a extrema direita cresce em todo o mundo porque eles não têm medo de protestar. A esperança vem do estudo que fiz da resposta que algumas comunidades deram aos efeitos da crise sanitária. Mostraram que existia uma alternativa possível na qual era possível defender a vida e a economia. Ao contrário, os governos de direita não protegeram nem uma e nem outra, como ocorreu nos países que comentei antes. Minha esperança tem ressalvas. Penso que deveríamos encarar um novo modelo civilizatório, começar uma transição para outra sociedade baseada em um consumo e produção anticapitalista, antirracista e antipatriarcal.

Defende que o surgimento do coronavírus supõe uma mudança de era. A partir de agora, pertencemos à natureza e não vice-versa, ainda que tudo indique que as classes privilegiadas seguirão petrificadas em sua posição de máximo lucro à custa da destruição da natureza. Que cenário enfrentaremos nesta nova era?

A fronteira que separará a esquerda da direita, a partir de agora, será em que posição se localizam. Para a direita, a natureza nos pertence, e para a esquerda, nós pertencemos à natureza. Sendo assim, se existem esquerdas que assumirão a primeira postura, estarão ocupando o papel da direita. Qualquer luta contra a injustiça e a discriminação tem que incluir a Mãe Terra, a natureza, como um dos seres não humanos mais discriminados, silenciados e humilhados. As políticas ambientais que a União Europeia está promovendo e que as empresas devem cumprir não deixam de ser uma forma continuísta do capitalismo. As empresas vão para outros lugares, como a África e a América Latina, onde sem consciência ecológica destroem tudo o que existe em sua passagem, tanto em nível ambiental, como os povos indígenas que ainda resistem. A Europa não só pode cuidar dos europeus, como deve fazer o mesmo com todo o mundo, e todo o mundo deve cuidar de si mesmo. O facto de que as patentes das vacinas contra o coronavírus não tenham sido eliminadas é um sinal muito preocupante, do pior que pode nos passar. Os grandes desafios serão em nível global, e alguns não podem estar acima de outros porque, caso contrário, cairemos todos.

A análise que você apresenta gira em torno de três eixos que nos conduziram até aqui e que você tenta desconstruir no ensaio: capitalismo, colonialismo e patriarcado. Por outro lado, a maioria das pessoas nem sequer se reconhecem como oprimidas ou opressoras, quando são. O que é preciso mudar para tomar consciência disso?

O fundamental é ter uma alternativa. As injustiças não abrem possibilidades de resistência por elas próprias. Há resistência quando há alternativa, por isso defendo que a pandemia mais grave estamos sofrendo há 40 anos, quando nos fizeram acreditar que não há alternativa possível ao neoliberalismo. Isto bloqueou a política e, por isso, temos políticos medíocres na grande maioria dos países. Criou-se a ideia de que não há outras possibilidades e isso faz as pessoas entrarem em certo fatalismo, claramente relacionado ao crescimento do conservadorismo religioso. Como a esquerda aceitou que não há outra solução a não ser o neoliberalismo, a alternativa agora é a extrema direita, que dizem que são antissistema. Quando surgiu a pandemia, as pessoas não pediram ajuda aos mercados, mas ao Estado, razão pela qual é preciso fortalecer a parte democrática do mesmo e começar um debate aberto e claramente anticapitalista, no qual sejam propostas políticas de transição. As organizações sociais, as universidades e os partidos políticos de esquerda precisam ver nisto que ocorreu uma possibilidade de mudança e perceber que viver em uma crise permanente é uma armadilha, porque o único fenômeno que nunca está em crise é ela própria.

Na primeira parte de seu livro, trata da devastação provocada pela pandemia e, em um dos capítulos, indaga sobre como o capitalismo fez da pandemia o que fez com a vida humana e a natureza: torná-la um negócio, em seus próprios termos. Quem são os vencedores e os vencidos?

Os vencedores foram os capitalistas, que tinham as tecnologias. É o capital tecnológico que venceu, empresas como Google, Amazon e Apple, mas também será o financeiro, caso consiga fazer com que não haja mudanças importantes em relação ao perdão da dívida de alguns países. Em relação aos vencidos, as classes mais baixas que já vinham sobrevivendo como podiam.

Também reflete sobre a resposta que os diferentes Estados deram à crise sanitária. Apesar do fato de que sem saúde não há economia possível, o imediatismo fez com que a recuperação seja ainda mais lenta e, em muitos casos, dolorosa. Neste sentido, o que foi bem feito e o que não?

Na Europa, prevaleceu a ideia de defender a vida, exceto na Suécia, o que teve um resultado catastrófico. Os países que saem pior em termos de economia e proteção da vida foram aqueles desde o início minimizaram os efeitos da crise, muitas vezes, negacionistas e governados pela direita, como o Reino Unido, Estados Unidos e Brasil.

Diante da inoperância dos Estados, em muitas regiões foram criadas dezenas de redes de solidariedade e apoio mútuo entre os cidadãos. Este poderia ser o germe da utopia?

Eu defendo a ideia da utopia a partir da autodeterminação dos povos e das comunidades, do que eles próprios pensam ser o melhor para eles. Não defendo uma solução tipo Rojava ou Zapatista pelo mundo todo, porque as condições são diferentes em cada país, mas muitos lugares se protegeram da pandemia com suas próprias regras, como os povos indígenas da América Latina. Tudo isto, penso, são experimentos de alternativas anticapitalistas, antirracistas e antipatriarcais. Talvez possam ser o início da utopia, mas, sem sombra de dúvidas, não haverá utopia se as mulheres não forem consideradas um sujeito político decisivo. A utopia virá com a autodeterminação e os cuidados, o que inclui a natureza.

Na segunda parte do ensaio, entra de cheio na ideia de que o século XXI pode ser o começo de uma nova era. Inclina-se, segundo descreve, para o que sugere um novo modelo civilizatório, baseado na primazia da vida digna e em uma relação com a natureza radicalmente distinta da que mantivemos na era moderna e que nos levou à beira da catástrofe ecológica e a um mundo distópico viral. Por acaso, temos outra opção para sobreviver?

Não. De facto, agora, sim, que não existe alternativa. Ou defendemos a natureza ou será um suicídio. A vida humana constitui 0,01% da vida total do planeta, e apesar de ser tão pouco, nós nos arrogamos o direito de destruí-la por completo.

Argumenta que “em tempos de pandemia, as notícias falsas se traduzem diretamente em mortes e, portanto, constituem ações criminosas que os países não estão preparados para punir exemplarmente, assim como também não estão preparados para frear eficazmente a difusão de notícias falsas”. Aqueles que propagam estas informações falsas podem estar matando as pessoas?

Sim, sim, podem. A propagação de notícias falsas, daqui para frente, pode constituir crimes contra a humanidade. Demonstro isto no livro: uma publicação em uma página web dizia que tomando grandes quantidades de álcool puro ou de alto teor, matava-se o vírus. O resultado foi a morte de 800 pessoas e quase 30.000 hospitalizações por este motivo, em 80 países diferentes, além de muitas pessoas ficarem cegas por isto.

Conviver com incertezas científicas’ é o título de um subcapítulo, em seu texto. Se a ciência é a melhor forma que temos para entender a realidade, como é possível viver no desconhecimento?

Temos que viver a incerteza com grande humildade. Além disso, é necessária uma mudança epistemológica no conhecimento. Eu chamo isto de epistemologias do sul, pois é preciso democratizar e perceber que não existe apenas o tipo de conhecimento científico com o qual estamos acostumados. Por exemplo, os saberes indígenas não podem ser depreciados pela ciência. Assim como devemos lutar contra as notícias falsas, também temos que aprender a valorizar este outro e fugir das certezas absolutas. Se existem os deuses, talvez eles tenham alguma certeza, mas nós não, somos humanos e temos que conviver com a incerteza.

O propósito do livro é ajudar “aqueles que, durante a pandemia, assumiram a defesa da vida digna e imaginaram políticas e modos de vida que no futuro possam nos defender melhor das pandemias”. Uma vez superado o coronavírus, quais outras pandemias teremos que enfrentar?

A pior pandemia virá se não superarmos esta crise e seguirmos com a ideia de que não existe alternativa ao capitalismo neoliberal. Ocorrerão outras pandemias muito difíceis também, como a de não ter acesso à saúde pública e a conversão desta em um negócio, em vez de um bem social. A pandemia da fome, a pandemia da brutalidade policial, a pandemia da violência machista, a pandemia da falta de moradia e, sobretudo, a pandemia que precisaremos enfrentar se não mantivermos a água como um bem público e de acesso universal. As estimativas marcam que até 2050 metade da população não terá água potável, ao mesmo tempo em que a água já é negociada no mercado de futuros. O capitalismo fará o que for para se antecipar a qualquer situação em que possa se beneficiar.

Com Joseph Stiglitz

REATIVARÃO A ECONOMIA DANDO DINHEIRO AOS POBRES, NÃO AOS RICOS”

Para reanimar uma economia é preciso dar dinheiro a quem tem menos, porque gastará mais, mais perto, mais rápido e melhor do que quem já tem muito. Por isso, para o economista Joseph Stiglitz é mais eficaz injetar euros nas contas dos cidadãos ou não cobrar impostos da classe baixa e média do que inflar a bolsa para os grandes investidores. Quando a classes médias já tiverem relançado o consumo e a economia, será o momento de subir as taxas de juros e os impostos, que servirão para recuperar esses estímulos e seguir redistribuindo emprego e prosperidade. É o que Joe Biden fará e é o que Stiglitz aconselha à União Europeia. Tomara que deem a cada europeu a mesma quantidade de dinheiro que cada estadunidense receberá. Saberemos como gastá-lo. A entrevista é de Lluís Amiguet, publicada por La Vanguardia. A tradução é do Cepat /IHU

Quem administra melhor a saída da recessão, os Estados Unidos ou a União Europeia?

A União Europeia deu grandes passos nesta pandemia para ser mais eficiente, mas agora deve gastar mais e mais rápido... Os Estados Unidos já aplicam três trilhões de dólares em estímulos, a União Europeia não chega nem a um. Tomar decisões é comparar o risco de fazer algo e o de não fazer e, entre os dois, escolher o menor. E agora o risco maior é fazer muito pouco. Acredito que os Estados Unidos, com Biden, estão fazendo o necessário e que, ao contrário, a União Europeia faz muito pouco.

Não teme que gerar tanta liquidez, de repente, acabe disparando a inflação?

É muito mais difícil lutar contra uma recessão do que contra a inflação. Por isso, o mais urgente agora é garantir que a economia de todos se recupere. Depois, vamos nos ocupar da inflação, porque temos instrumentos eficazes para freá-la.

Quais?

Contra a inflação, podemos subir as taxas de juros e podemos aumentar os impostos para os mais ricos, e nos Estados Unidos, acredite, há muita margem para aumentá-los.

Você ensinou Janet Yellen e ainda é o seu mentor...

E aprendemos a gerar crescimento para depois reparti-lo. Quando crescermos, será o momento de políticas de igualdade para que os impostos, hoje muito baixos para os ricos, financiem as melhoras em nossa educação, tecnologia, ciência, infraestruturas...

O que a União Europeia já deveria estar fazendo?

A União Europeia deu grandes passos nesta pandemia para ser mais eficiente, mas, além de gastar mais e mais rápido, deveria reformar suas estruturas e avançar em sua harmonização para frear o aumento da desigualdade.

Quais? Como?

O grande problema europeu é que a tributação ainda está nas mãos de cada um dos estados-membros, que aprovam seus impostos e os cobram. E as multinacionais e os mais ricos se aproveitam e vão mudando de um país para o outro para pagar menos, e assim não se arrecada bastante.

Google, Facebook e outras empresas tecnológicas não são claros exemplos de evasão fiscal?

O que a Apple e o Google fizeram na União Europeia é inaceitável. Domiciliaram-se na Irlanda para pagar menos e assim, eles e a Irlanda, estavam roubando do restante da União Europeia. E, além disso, essas gigantescas empresas criavam muito pouco emprego e de pouca qualidade nos países onde ganhavam muito e não pagavam impostos.

Com Biden, as coisas mudarão?

Sei que o presidente Biden já trabalha para conseguir grandes acordos globais para que o Google, o Facebook e outros tributem o que é justo onde obtêm seus lucros e não apenas onde podem pagar menos, como fazem agora.

Piketty e outros pedem o perdão da dívida europeia pela pandemia.

Se você aperta muito o credor, muitas vezes, acaba recuperando menos da dívida. Ao contrário, se pactua algumas condições racionais de devolução, ele e você ganham. E hoje há mecanismos financeiros eficientes, como determinados swaps (contratos de futuro), para gerir essa dívida. Assim todos ganhariam.

Em 2008, você me disse que a austeridade era suicida. Hoje, todos lhe dão razão.

Mas durante décadas sofremos esse fundamentalismo de mercado. Por fim, após fracassar na saída da recessão de 2008 com suas medidas de austeridade, a União Europeia percebeu que em uma crise apertar o cinto dos países que já estão sofrendo, em vez de ajudá-los, conduz todos à catástrofe.

E hoje o mundo todo pede estímulos.

Porque a partir de 2008 ficou demonstrado que os mercados abandonados à sua própria dinâmica não funcionam e que a austeridade e a falta de investimento no público geram a ruína privada da maioria.

Quando será o momento de combater a desigualdade que aumentou em 2020?

Quando a prosperidade que os estímulos geram nos permitir aumentar taxas e impostos para os mais ricos. É então que, como acontecia antes da pandemia nos Estados Unidos, até mesmo trabalhadores marginais terão emprego.

Hoje, sim, considera que o euro sobreviverá?

Em 2010, disse que temia que não superasse a austeridade daquele momento e sobreviveu, mas a boa notícia é que, nesta recessão pandêmica, sim, a União Europeia acertou ao conferir auxílios em vez de crédito aos países em apuros.

Quais devem ser os outros passos da União Europeia?

A agenda comum contra a mudança climática é estupenda, e espero um mecanismo para pagar a dívida de forma comum, mediante impostos para toda a União Europeia: digitais, empresariais, ambientais... Esta pandemia é uma oportunidade.

Entrevista conduzida por Guillaume Erner

EDGAR MORIN, CINCO VEZES 20 ANOS

"Para mim, a diferença hoje em dia está em que a juventude se encontra um tanto passiva, resignada em relação a muitas coisas. Se pensarmos que fazemos parte de uma mesma comunidade de destino, que somos corresponsáveis pela destruição do planeta, nossa casa comum, a juventude poderá tomar consciência do perigo que corremos e, certamente, as coisas podem mudar", destacou o filósofo francês Edgar Morin, em entrevista concedida ao jornalista francês Guillaume Erner para o programa France Culture, voltado para assuntos da juventude, transmitido por rádio e internet. A tradução é de Edgard Carvalho e Fagner França /IHU

Nesta manhã, recebemos não apenas um testemunho privilegiado de nossa época, mas também um grande ator do século XX. Edgar Morin é o pai do pensamento complexo, autor de uma obra transdisciplinar. Viveu todas as crises desses cem últimos anos, as consequências da gripe espanhola e, agora, da pandemia do novo coronavírus. Suas obras revelam indiscutivelmente um trabalho de resistência intelectual. Em colaboração com Sabah Abouessalam, acaba de publicar pela editora Denöel, Mudemos de vida, lições sobre o coronavirus que reflete sobre o mundo que surgirá depois da pandemia. Para retomar a juventude de ontem e de hoje nosso convidado é Edgar Morin.

Bom dia. Não sei se é necessário dizer que o senhor é um sociólogo, mas mesmo assim ressalto que você é um twitteiro com mais de 100 mil seguidores. Como teve essa ideia?

Fui aconselhado e então encontrei a oportunidade de poder dizer as coisas que acredito, minhas ideias essenciais, por meio de um formato concentrado, porque o Twitter tem um número limitado de caracteres. Twittando eu me sinto um pouco como na Grécia Antiga, quando os filósofos discutiam em praça pública as questões levantadas pelas pessoas, e minha paixão é justamente fazer intervenções públicas. Mas minha adesão tem vários motivos. Por um lado, é uma forma de me expressar. Por outro, meu editor pretende publicar em breve essas pequenas reflexões.

O senhor sempre foi interessado pela juventude e uma de suas principais obras de sociologia foi uma pesquisa na Comuna de Plozévet, intitulada Metamorfose de Plozévet: uma comuna francesa, publicada em 1965. O livro focaliza como a juventude desse pequeno povoado da Bretanha e objetivo da pesquisa era descobrir como a juventude encarava o processo de modernização pelo qual passava a França.

O que me marcou bastante foi um fenômeno que revolucionou o mundo e que se passou em 1963, a Noite da Nação. Trata-se de um programa de rádio chamado Olá, companheiros!, mais voltado para a divulgação do rock americano e francês, que organizou um concerto na Place de la Nation, em Paris. Era um programa muito popular entre os adolescentes. E de repente o evento se transformou em um grande tumulto. Nessa ocasião, o editor-chefe do jornal Le Monde me convidou para interpretar o fenômeno. Porque para os sociólogos da época a juventude não era uma categoria sociológica. Os sociólogos falavam mais em classes sociais, mas não em classe de idade. Como cinéfilo que sou, a juventude significava o aparecimento de heróis da adolescência que não existiam antes, como James Dean, Marlon Brando, além de rebeldes, revoltados, e também outras pessoas marcadas por extrema ternura. O que eu constatava era o surgimento de uma classe de idade entre o isolamento da infância e a integração na vida adulta que descobriu uma própria forma de falar, de se vestir; surgiu então uma nova linguagem como forma de afirmação de uma classe que antes não existia e que exibia uma vontade de viver intensamente. Essa foi minha primeira interrogação acerca da juventude, que se prolongou em Plozévet, quando me defrontei com a formação dos primeiros comitês da juventude. Em 1968, havia uma revolta contra a domesticação da vida adulta, cronometrada, prosaica, etc. Mas penso que naquela época havia uma dupla necessidade, contraditória e ao mesmo tempo complementar, de realizar não apenas suas aspirações, mas também fazer parte de uma comunidade, de uma fraternidade, de uma família. Embora seja esse o desejo geral da condição humana, acabamos por abandoná-lo à medida em que vamos sendo integrados à idade adulta. Mas há uma grande diferença com os dias atuais, em virtude da precariedade da vida social e individual, assim como da incerteza da juventude em particular. Embora possa ser considerado como um fenômeno singular e único, ele se assemelha um pouco com minha própria juventude que foi marcada pela invasão nazista e pelo regime de Pétain, durante a Ocupação. Quando eu era estudante, chegava ao restaurante universitário morto de fome. Tínhamos que nos virar para nos alimentar, pois não havia alimentos suficientemente ricos em calorias. Hoje constato fenômeno semelhante e os jovens também têm igualmente necessidade de comer.

E como foi sua vida na Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial?

Naquele momento percebi que existe uma contradição entre viver e sobreviver. Sobreviver é fazer as coisas necessárias para se manter vivo. Viver a Resistência era perigoso, mas me sentia extremamente bem em ser um resistente. Para mim, a diferença hoje em dia está em que a juventude se encontra um tanto passiva, resignada em relação a muitas coisas. Se pensarmos que fazemos parte de uma mesma comunidade de destino, que somos corresponsáveis pela destruição do planeta, nossa casa comum, a juventude poderá tomar consciência do perigo que corremos e, certamente, as coisas podem mudar. Uma outra coisa: a pandemia nos mostra claramente que o sistema social, político, econômico tem muitos problemas e precisamos tomar consciência de que é preciso mudar de via. Se pensarmos bem, em todos os momentos de revolução, a juventude foi o grande agente histórico de transformação. E continua sendo. É ela que pode recuperar a força da solidariedade e da fraternidade em prol de um mundo melhor.

E como você encontrou essa força da juventude num momento como o da Segunda Guerra Mundial?

Durante a Guerra eu era ao mesmo tempo o jovem que lutava desesperadamente por um mundo melhor e o sociólogo iniciante que começava a se empenhar na observação dos fenômenos sociais. Mas as esperanças se abalaram durante a Guerra Fria. Eu, que acreditei no comunismo como a saída para um mundo melhor, me desconverti durante os processos de Moscou e minha geração acabou se dispersando. A esperança é algo que não se pode abandonar, mas que também não pode nos deixar demasiadamente eufóricos. Eu sempre esperei o inesperado. A resistência de Moscou e a entrada dos Estados Unidos na Guerra, fatos que mudaram o rumo da história, foram totalmente inesperados e improváveis. Muitas coisas inesperadas mudaram o rumo da história. O momento de hoje é trágico mas sempre penso que algo de inesperado pode acontecer e mudar a sociedade. Cabe à juventude fortalecer o espírito de resistência. Aproveitei a minha para fortalecer minha formação, lendo Rousseau, Dostoievsky, Montaigne, Pascal, para ir ao cinema ver filmes admiráveis; a música, a poesia, a literatura, tudo isso me acompanhou durante a vida e meu deu prazer de viver. É importante aproveitar este momento para se cultivar, cultivar a fraternidade, a amizade, o amor, etc. O mundo depende de que a juventude tenha ou não consciência do que está em jogo no presente e no futuro.

A humanidade hoje vive ao mesmo tempo um momento de tragédia inacreditável, mas também um momento de ultrapassá-la rumo a outra via. É preciso não permanecer cego diante das circunstâncias, mas também não professar um otimismo ingênuo. É preciso estar presente, porque é nossa vida que está em jogo. Nosso destino está ligado ao destino coletivo, e nesta pandemia também. E essa pandemia nos revela a importância da solidariedade de todos os povos. Todas os povos foram afetados, ameaçados e, por isso, participamos da mesma aventura. Nos dias atuais, precisamos salvaguardar e defender nossas pátrias, mas jamais esquecer que somos integrantes da mesma Terra-Pátria. Somos seus filhos. Somos filhos da Terra, e devemos defende-la a qualquer custo.

Edição 165, fevereiro 2021

Com Naomi Klein

POR QUE VOLTAR À CRISE DE ANTES DA CRISE?”

O mundo vive um grande incêndio e não o estamos apagando. No meio do fogo, destaca a popular ativista Naomi Klein (Montreal, 1970), em seu novo livro “En llamas” (Paidós), seguimos presos a todos os tipos de telas e fazendo selfies como se não vivêssemos em meio à sexta grande extinção e a emergência climática não pudesse tirar nossas vidas. A autora de “Sem logo” e “A doutrina do choque” propõe um Green New Deal, uma mudança tão copernicana como a de Roosevelt após a Grande Depressão, mas verde e inclusiva para todos. A entrevista é de Justo Barranco, publicada por La Vanguardia. A tradução é do Cepat /IHU

Quem foi o ganhador do choque do coronavírus?

Os bilionários das empresas tecnológicas. Chegaram a esta pandemia obscenamente ricos e se aproveitaram extraordinariamente. Jeff Bezos é o que mais, e o Google realizou enormes avanços em nossas escolas. É a herança do neoliberalismo. O Estado estava tão frágil antes da crise que a tornou pior e mortal, com hospitais e serviços sociais já colapsados previamente e com a capacidade de produzir vacinas dentro de nossos países erodida. E por essa fragilidade muitas empresas tecnológicas puderam entrar em cena, uma privatização pela porta dos fundos.

O Vale do Silício é, então, o grande ganhador?

E as farmacêuticas. Conseguiram um grande negócio, bilhões em dinheiro público para pesquisar e desenvolver vacinas, mas embora o público tenha pago por elas, não as possui, estão protegidas pela propriedade intelectual. Não faz sentido. A razão de existir patentes é pelo investimento que as empresas fazem, mas não foram elas que fizeram, mas nós. É a mesma lógica neoliberal que rejeita reivindicar direitos públicos sobre o que é essencial para manter as pessoas vivas.

Esta fragilidade do Estado faz com que o Ocidente administre pior a crise do que outros lugares?

Os piores surtos tendem a ocorrer nos setores mais desregulamentados, onde muitos trabalhadores precários sofriam abusos, em granjas ou depósitos da Amazon. A isto se soma o corte em hospitais públicos em nome da eficiência, pois cada leito vazio era visto como um fracasso. Houve exceções como a Nova Zelândia, que decidiu desobedecer a lógica neoliberal e cuidar das pessoas.

Nos Estados Unidos, não, e isso alimentou a reação violenta, que tem a ver com as companhias tecnológicas e a desinformação viral, mas que atingiu esse volume porque as pessoas se sentiam descartadas e há uma compreensível suspeita sobre as grandes companhias e os bilionários. Tudo isto criou essa sopa tóxica em que, nos Estados Unidos, um número incrível de pessoas não acredita que a Covid seja real, mas uma conspiração de Bill Gates, e acredita na conspiração QAnon e que as eleições foram roubadas. Uma amputação total da realidade.

Qual a sua opinião sobre a nova normalidade?

Nossa normalidade já era uma crise. Por que iríamos querer voltar a isso [?]. Dá ânimo ouvir Joe Biden falar em não voltar à normalidade e usar esta crise como um catalizador para transformar, dá ânimo que fale que não existe somente uma crise de saúde pública, mas também climática, de desigualdade econômica e de injustiça racial. O trabalho que fizemos nas décadas passadas, formulando como poderia ser a economia do futuro, era sobre como resolver múltiplos problemas ao mesmo tempo. Reconhecer que estamos em crises sobrepostas: devemos reduzir as emissões, lutar contra o racismo sistêmico e fechar a lacuna da desigualdade, tudo ao mesmo tempo. Por que voltar à crise de antes da crise?

Disse que o capitalismo não serve contra a crise climática, que é preciso mudar o sistema operacional.

A mudança não será trazida pelo mercado ou pelos bilionários. Bill Gates lança um livro esta semana, vai nos salvar. Nem com boas intenções funcionará, a mudança de sistema é tão ameaçadora para os que se beneficiam, que tentarão mudar sem mudar, isso é o que os leva a ideias como a geoengenharia ou a energia nuclear em grande escala. Com o capitalismo há um choque entre a necessidade de um crescimento econômico sem fim e a crise ecológica, da qual o clima é uma parte. Nosso esgotamento do mundo natural é a crise central e precisamos de uma economia muito mais atenciosa, que comece perguntando o que é necessário para ter uma boa vida, respeitando os ciclos de regeneração do planeta. Como garantimos que todos tenham o suficiente dentro dos limites do planeta e construímos a partir daí. É uma pergunta diferente de como gerar crescimento econômico no próximo trimestre. Não digo que nisto não exista lugar para os mercados, mas não o podem guiar.

O que seria o Green New Deal? Envolve muitos sacrifícios?

Os princípios básicos de qualquer Green New Deal supõem seguir a ciência climática para que o aquecimento do planeta não ultrapasse 1,5 grau. E que seja guiado pela justiça: que as pessoas que fizeram menos para criar esta crise e estão na linha de frente de seus efeitos sejam as primeiras a receber apoio para a transição, tanto dentro dos países ricos como no que os países ricos devem aos do Sul. Outros princípios são que os trabalhadores em setores de alto carbono não sejam deixados para trás. E ver em que áreas podemos nos permitir ter abundância. Não no consumo esbanjador, mas, sim, em áreas onde hoje há escassez: saúde, cuidado do lar, de crianças, de idosos, um setor baixo em carbono. Devemos colocar a energia da recuperação pós-covid não em um, mas em milhares de Green New Deals em cada setor, que os especialistas de cada área projetem o seu. Já conseguimos uma grande vitória: Biden, que não é um radical, soa agora como um militante do movimento Sunrise. É a ideia de que necessitamos de uma resposta contra a mudança climática que tenha justiça social, crie trabalhos, repare injustiças e não diga às pessoas que precisam escolher entre alimentar suas famílias ou se preocupar com o meio ambiente.

É otimista em relação a Biden?

Não, em relação a nós. Ele foi político a vida toda e durou porque sabia que vento soprava em cada momento, no neoliberalismo, ia com ele. Agora, reformula-se como o novo Roosevelt, não por ele, mas pelas forças que o empurram. Se ele pode mudar, qualquer um pode.

Trump seria presidente sem a pandemia?

É um pensamento terrível, mas provavelmente sim. Sua época foi de incansável vandalismo. A imagem de seus seguidores no Capitólio saqueando mostrou o que foram os anos de Trump: saquear o Estado à luz do dia.

Com Carlos Taibo

"VIVER MELHOR COM MENOS SÓ FAZ SENTIDO SE ANTES REDISTRIBUIRMOS RADICALMENTE A RIQUEZA"

Se o planeta está indo para o buraco, e tudo indica que isto acontecerá se não mudarmos alguns parâmetros e dinâmicas estruturais, é preciso fazer alguma coisa. A teoria do decrescimento, que Carlos Taibo (Madrid, 1956) prefere chamar de “perspectiva”, oferece algumas respostas ao que, como, quando e por que deveria conduzir a sociedade para tentar atenuar o máximo possível os efeitos de uma crise climática mais presente do que nunca. O escritor e teórico conjuga a ideia com outra das realidades mais prementes enfrentadas pela Península Ibérica, em seu livro recém-publicado “Iberia vaciada: despoblación, decrecimiento, colapso” (Catarata, 2021). Em entrevista, conduzida por Guillermo Martínez, publicada por Público (de Madrid) fala sobre aspectos como o ecofascismo, a cultura da pressa e a necessidade de que a resposta à mudança climática seja autogerida e antipatriarcal. A tradução é do Cepat /IHU

Escreveu que “a perspectiva do decrescimento nos diz que se vivemos em um planeta com recursos limitados – e vivemos -, não parece fazer muito sentido que almejemos continuar crescendo ilimitadamente”. Isto, por mais lógico que seja, parece não estar muito interiorizado. Por quê?

A lógica do crescimento acompanha, sem fissuras, à do capital. É mais um dos elementos que colocaram dentro de nossas cabeças, nos países ricos, por meio da publicidade, os meios de comunicação e o sistema educacional. Sair dela não é simples, conforme demonstra o fato de insistirmos em defendê-la, mesmo quando sabemos que gera agressões incalculáveis contra a igualdade e contra o ambiente natural, e que estimula, ao mesmo tempo, um individualismo abrasivo. Ainda assim, não desconsidero que a proximidade do colapso acabe produzindo mudanças radicais em nossa conduta. Nesse sentido, o que aconteceu no calor da pandemia talvez nos abra os olhos para um futuro marcado por esse colapso.

Em seu livro ‘Decrecimiento: una propuesta razonada’, aponta que as economias capitalistas desenvolvidas cresceram de forma notável, ao mesmo tempo em que empregos foram destruídos. Da mesma forma, o decrescimento acarretará uma grande perda de empregos. Que solução a perspectiva que você defende encontra para esse problema?

A solução é dupla. Por um lado, propiciar o desenvolvimento daqueles segmentos da economia que guardam relação com a atenção às necessidades sociais insatisfeitas e com o meio natural. Por outro, e nos setores da economia convencional que continuarão existindo, repartir o trabalho. A combinação destes dois fatores permitirá que trabalhemos menos horas, desfrutemos de mais tempo livre, aumentemos nossa muitas vezes abatida vida social e reduzamos, quando possível, nossos desenfreados níveis de consumo. Acredito que tudo isso é manifestamente preferível ao modo de vida escravo que hoje nos é imposto.

Em seu livro ‘Iberia vaciada’, afirma que “qualquer resposta ao capitalismo no século XXI tem que ser, por definição, decrescentista, autogerida, antipatriarcal e internacionalista”. O que pode acontecer, se não for assim?

Acontecerá que, no calor de um colapso provavelmente insuportável, continuarão em pé muitos dos defeitos arrastados pela esquerda que hoje vive nas instituições. E entre eles, a reverência à miséria capitalista, a idolatria à produtividade e a competitividade, o sindicalismo claudicante, os fluxos autoritários e personalistas, as pegadas da sociedade patriarcal, o etnocentrismo e o imediatismo. Quanto tempo dedicamos para falar de corrupção e como atribuímos pouco, aliás, à mais-valia [!].

Podemos realmente viver melhor com menos? Por quê?

Não nos restará outra opção. Além disso, impõem-se três considerações. A primeira ressalta que, deixados para trás os estágios iniciais do desenvolvimento, o hiperconsumo ao qual frequentemente os habitantes do mundo rico se entregam pouco ou nada tem a ver com o bem-estar. A segunda chama a atenção para o fato de que, uma vez satisfeitas as necessidades básicas, e admito que este último conceito é mais polêmico do que possa parecer, esse bem-estar se relaciona mais aos bens relacionais, aqueles que surgem de nossa relação com outras pessoas, do que com os bens materiais que os supermercados nos oferecem. Em terceiro lugar, “viver melhor com menos” só faz sentido se antes redistribuirmos radicalmente a riqueza.

No livro ‘Iberia vaciada’, você dá continuidade a uma obra anterior, que em 2020 chegou a sua quinta edição: ‘Colapso’. Acrescenta que diante de tal colapso ambiental ocorrem duas reações: os movimentos pela transição ecossocial e o ecofascismo. De que forma estas duas reações se expressam nos últimos anos?

Esclarecerei, antes de mais nada, que não defendo que sejam as únicas respostas esperáveis frente ao colapso. Interessava-me analisar essas duas porque acredito que contribuíam para enriquecer o debate correspondente. No que diz respeito à resposta dos movimentos, é fácil contemplar uma efervescência de espaços autônomos que reivindicam a autogestão, a desmercantilização e, quem dera, a despatriarcalização de todas as relações. Entre nós, e nos últimos anos [na Espanha], o fenômeno adquiriu uma força maior, ainda que não suficiente, ao calor do 15M. Também não é exagero recordar o alcance dos numerosos grupos de apoio mútuo que germinaram, na primavera passada, por ocasião dos confinamentos. No que diz respeito ao ecofascismo, e para não abandonar o terreno da pandemia, penso que os estamentos de poder que começam a flertar com soluções autoritárias diante do que entendem que é um excesso de população, observam com alegria o formidável exercício de servidão voluntária ao qual nos entregamos. Além disso, não deixa de ser chamativo que circuitos que são formalmente negacionistas no que diz respeito à mudança climática e o esgotamento das matérias-primas energéticas assumam, nos fatos, posições que remetem a critérios muito diferentes. Aí estava Trump, sem ir muito longe, tentando comprar a Groenlândia da Dinamarca.

Disse que o universo do automóvel e o da alta velocidade ferroviária, setores nada desconhecidos para grande parte da população, resumem bem muitas das aberrações que o decrescimento deseja contrapor. Por quê?

Resumem bem muitas das contradições de nossas sociedades. Dão rédea solta à cultura da pressa e do movimento desaforado, assentam-se em projetos que bebem de um individualismo feroz. Não demonstram nenhum respeito ao meio ambiente e, de maneira cada vez mais clara, estão ao alcance, penso antes de mais nada na alta velocidade, de uns poucos. Como é penoso que o progresso de uma economia continue sendo medido em termos do número de automóveis vendidos ou da abertura de um novo, e insustentável, percurso de alta velocidade ferroviária [!].

Os problemas que nos afligem, como disse, são os limites ambientais e de recursos, a mudança climática, o esgotamento das matérias-primas energéticas, os ataques que a soberania alimentar sofre e as perdas em matéria de biodiversidade. Considera que existe algum deles mais urgente do que os outros?

A mudança climática e o esgotamento dessas matérias-primas, seguramente. O certo é que no cenário da pandemia tivemos a oportunidade de comprovar como um punhado de fatores que pareciam chamados a desempenhar um papel menor acabaram configurando uma bola que foi aumentando e que, possivelmente, nos coloca na antessala do colapso. Estou pensando, sem ir muito longe, nas pandemias sanitária, social, de cuidados, financeira e repressiva. Devemos estar atentos, contudo, às sequelas de um paradoxo: são os territórios mais deprimidos que, ao menos em primeira instância, se sairão melhor no cenário de colapso. E é importante saber disso em relação à Ibéria esvaziada.

De acordo com a perspectiva do decrescimento, o norte do planeta deve diminuir seus níveis de produção e consumo. Que princípios e valores teríamos que mudar para que tal redução fosse possível?

Os principais remetem ao desígnio de sair o quanto antes do capitalismo e de suas regras. Mas, no que concerne aos princípios e valores que reivindica, de maneira mais específica a perspectiva do crescimento, sem dúvida, estão a recuperação da vida social que nos roubaram, o desenvolvimento de formas de ócio criativo, a divisão do trabalho, a redução do tamanho de muitas das infraestruturas que hoje empregamos, a restauração da vida local e, enfim, no terreno individual, a sobriedade e a simplicidade voluntárias. Por trás disso estão, de modo inequívoco, a autogestão e o apoio mútuo.

Mulheres, cuidados, decrescimento” é o título de um dos capítulos da publicação pela ‘Alianza Editorial’. São aspectos que você também trata em ‘Iberia vaciada’. De que modo estes três âmbitos que você menciona estão entrelaçados?

Nenhum projeto emancipador, e o decrescimento deseja ser, pode fugir da necessidade de articular uma radical despatriarcalização que acabe com a marginalização, material e simbólica, das mulheres. Não é exagero recordar que 70% dos pobres e 78% dos analfabetos existentes no planeta são mulheres, e que, segundo uma estimativa, estas realizam 67% do trabalho para receber em troca um minguado 10% da renda. Sempre pensei que, em virtude de seu vínculo com os trabalhos de cuidado, e apesar das grandezas e as misérias que os cercam, as mulheres possuem uma compreensão mais rápida e fluida do que significa a perspectiva do decrescimento. Talvez seja assim porque, conforme destaca o ecofeminismo, são decisivas para o sustento de uma vida que foge com êxito da lógica mercantil do capitalismo. Se a Ibéria esvaziada resistiu, em boa medida foi graças às suas mulheres.

Vivemos em uma sociedade capitalista que há anos é marcada pelo neoliberalismo. Por que não é possível defender o decrescimento e ser capitalista ao mesmo tempo?

Não afirmo taxativamente que não seja possível. Na França e na Itália, existem empresários que flertam com a perspectiva do decrescimento, sempre que compreendem que o planeta, de fato, se vai. Mas não vejo que nossa atuação tenha sentido e eficácia, caso não questionemos, conforme faz a versão do decrescimento que defendo, todos os artefatos que cercam o capitalismo: a hierarquia, o mito do progresso, a exploração, a produtividade, a competitividade, o consumo e, naturalmente, o próprio crescimento. A esse respeito precisamos aprender muito, certamente, das sociedades pré-capitalistas. E devemos colocar em primeiro plano as gerações vindouras, as mulheres, os habitantes dos países do sul e os membros das outras espécies com as quais, no papel, compartilhamos o planeta.

Com Adela Cortina

OS PROBLEMAS DA GLOBALIZAÇÃO VÊM DE QUEM A GOVERNA”

Elejamos unir o poder dos mercados com a autoridade dos ideais universais. Elejamos reconciliar as forças criativas da empresa privada com as necessidades dos menos favorecidos”. A filósofa Adela Cortina (Valência, 73 anos) se emociona ao recordar estas palavras de Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU. Ele as pronunciou há mais de vinte anos, mas Cortina considera que nunca foram tão atuais. A professora de Ética e diretora da Fundação Étnor, uma das mentes que mais agudamente reflete sobre as repercussões sociais das decisões das empresas, considera que a pandemia oferece uma oportunidade única: impulsionar uma autêntica governação global que não dependa dos interesses de alguns países e corporações. Isto ajudaria na recuperação económica e a recuperar a confiança nas instituições democráticas. A entrevista é de Carlo Manuel Sánchez, publicada por XL Semanal. A tradução é do Cepat /IHU

Havíamos visto a luz com as vacinas, mas a terceira onda volta a obscurecer o panorama. Quando acabará este pesadelo?

Saberemos que a pandemia acabou quando os avós voltarem a levar os netos para o colégio.Então, isso seria um sintoma de normalidade. No momento, é difícil imaginar como será esse novo mundo pós-pandemia... Haverá um mundo pós-esta pandemia, mas continuará existindo patógenos e precisamos aprender a nos preparar. Todos os países devem ter um mínimo de reservas estratégicas para enfrentar estas situações. Não podemos depender do exterior.

Estamos diante do início do fim da globalização?

Não acredito nisso. É preciso melhorar alguns aspectos para gerar mais igualdade e ajudar os mais vulneráveis. Mas a globalização nos permite estar em qualquer lugar do planeta em tempo real graças à conectividade. Isto permitiu que, durante a pandemia, continuassem as aulas, as reuniões de trabalho... O mundo teria congelado se não fosse global. Fechar fronteiras só se justifica em uma situação de emergência como esta. Mas os inconvenientes da globalização não se solucionam voltando a um nacionalismo pacato. Os problemas da globalização vêm de quem a governa.

E quem a governa?

Agora, são algumas grandes corporações que dirigem a globalização. Empresas poderosas que só buscam o seu próprio ganho. Por isso, é preciso trabalhar para que haja uma governança global. Aí estão a ONU, a OMS... A ONU é um bom organismo, mas são poucos países que tomam as decisões e alguns têm direito a veto. É preciso dar um passo além. Refiro-me fazer com que sejam globais de verdade, com todas as consequências. Que não sejam as nações que mandem nelas, mas que tenham autonomia.

É todo um salto mental...

Mas existem pessoas trabalhando nisso. É o futuro. Um mundo global precisa de uma governança global. Não que algumas nações decidam acima de outras. No entanto, também vemos uma tendência muito forte no sentido oposto, rumo ao que se chamou de ‘nacionalismo estratégico’. O fechamento de fronteiras e até mesmo o ‘brexit’ são dois exemplos. Não avalia que muitos optarão pela independência frente à interdependência. O nacionalismo estratégico não opta pela independência. Há uma confusão aí. O que aborda é que cada país tenha algumas reservas para não depender de outros. Em especial, da China; ou da Índia, que é o maior fornecedor de medicamentos genéricos do mundo, e que no início da pandemia decidiu restringir as exportações de uma dezena de princípios ativos de medicamentos, entre eles, o paracetamol. Mas isso não é nacionalismo, é necessidade de sobrevivência. E é uma atitude legítima, de prudência.

E o nacionalismo, então?

O que me preocupa é o que subjaz no slogan “América primeiro” (ou “Espanha primeiro”). Isso é um retrocesso.

Dizem que nas crises sempre surgem oportunidades. Enxerga alguma?

Temos uma oportunidade de relançar a Espanha vazia. Alguns, fugindo da peste, como aconteceu no Decameron, de Boccaccio, foram para o interior e decidiram ficar e trabalhar lá. Se a Espanha vazia vai se enchendo de gente, ganhará mais atenção. Dentro das cidades, são os bairros com menos recursos que estão levando o pior golpe, tanto sanitário como econômico... Não sei se seremos capazes de construir uma sociedade sem aporofobia, sem fobia ao pobre. O ser humano, quase por instinto, tenta se relacionar somente com quem vai lhe trazer algum benefício e deixa de lado quem vai lhe supor problemas.

Superamos os dois milhões de mortos no mundo. A maioria, idosos. Enquanto isso, no Vale do Silício, pesquisam para ampliar a longevidade para além dos limites biológicos. Algo não se encaixa...

A pandemia deveria ser uma cura de humildade. Mas no Vale do Silício conseguem uma quantidade de dinheiro impressionante vendendo que o envelhecimento é uma doença que é possível tratar e que a imortalidade é a meta. Quando aprenderemos que a fragilidade e a vulnerabilidade são parte substancial do ser humano? Faremos melhor se deixarmos de falar em vencer a morte e cuidarmos melhor da vida.

Considera que a lacuna geracional entre os idosos e muitos jovens aumentou?

Infelizmente, acredito que vimos alguma gerontofobia, fobia a idosos. E começou com a desescalada, realizada por grupos de idade. Os jovens não podiam se misturar com os maiores de 65. Isso vai criando uma certa mentalidade.

A mentalidade de que os idosos são um estorvo?

É o que os fascismos e os comunismos sempre disseram. O apreço ao jovem acima de tudo. Os idosos estão sobrando. Sua obrigação é se afastar e desaparecer... O pior é que muita gente se sentiu muito aliviada quando viu que a maioria dos afetados pelo vírus desenvolve sintomas leves, exceto os idosos e os grupos de risco. Por outro lado, as relações intergeracionais são muito importantes porque aprendemos uns com os outros. E esquecemos que na Espanha os netos são criados pelos avós, pois a conciliação familiar é difícil. E que na crise de 2008 foi a aposentadoria dos avós que sustentou as famílias.

No dilema entre saúde e economia, o que deve pesar mais?

Na vida não há dilemas, mas problemas. Um dilema significa que é preciso escolher entre duas soluções possíveis: a saúde ou a economia. Não, note, não é preciso escolher entre duas coisas. É preciso buscar ver, entre duas opções, um caminho para conservar o melhor de ambas. É preciso conservar a vida e é preciso desenvolver uma boa economia.

E entre segurança e liberdade?

Outro falso dilema. A segurança e a liberdade são indispensáveis. E compatíveis. Como pode uma população ser livre se não está segura? Por outro lado, uma sociedade que busca somente a segurança, e para isso se entrega ao servilismo, é uma sociedade suicida.

Alguns regimes totalitários se gabam de sua gestão da pandemia.

Dá a impressão de que a China enfrentou melhor o problema. No entanto, é uma ideia falsa. Porque em um sistema totalitário, não há informação confiável. Nos países democráticos, mais ou menos, vamos tendo informação das coisas que acontecem. E as pessoas que se sentem prejudicadas podem protestar. Da China só vemos o que o regime quer ensinar.

Com Maristella Svampa

'O COLAPSO ECOLÓGICO JÁ CHEGOU'

No livro "El colapso ecológico ya llegó", Maristella Svampa e Enrique Viale revelam como o surgimento da pandemia desmascarou os danos causados mundialmente por um modelo de desenvolvimento hegemónico que, junto com o extrativismo e a destruição de territórios, levou a maior poluição do planeta e aumento das desigualdades sociais. O livro, publicado por Siglo XXI, questiona o capitalismo neoliberal extremo, analisa as tentativas frustradas das diferentes Cúpulas sobre Mudanças do Clima em reduzir os gases do efeito estufa e oferece uma visão geral do impacto que o extrativismo e o agronegócio tiveram em nível mundial e especificamente na Argentina, que, como no resto da América Latina, em vez de reduzir as desigualdades sociais, as aumentaram, segundo Svampa. A entrevista é de Claudia Lorenzón, publicada por Hoy Día. A tradução é do Cepat /IHU

Por que considera que a irrupção da pandemia é uma oportunidade para realizar uma mudança do sistema?

Existe uma falsa oposição entre o social e o ecológico ou ambiental. Isso é algo que perpassa a América Latina, não apenas a Argentina, e que, no marco do ciclo progressista, buscou se instalar para justificar a destruição de territórios e o extrativismo em nome da redução das desigualdades. Porém, ao final do ciclo progressista, vimos que a desigualdade não foi reduzida. Segundo dados da Oxfam, o crescimento econômico obtido na América Latina, entre 2002 e 2015, em plena alta das commodities, foi capturado principalmente pelos setores mais ricos da sociedade. Os chamados super-ricos aumentaram sua fortuna em 21%, enquanto o crescimento do PIB foi de 3,5% na região. Assim, tenta-se instalar essa falsa oposição entre o social e o ambiental, quando o que vemos é que, além de não ter transformado a estrutura produtiva, visto que as economias foram bastante reprimarizadas, a desigualdade não foi reduzida. Por outro lado, aqueles que são mais afetados por modelos de desenvolvimento deficientes, o extrativismo e as mudanças climáticas são os setores mais vulneráveis. Existe uma coincidência entre o mapa da poluição ambiental e o mapa da pobreza. Basta ir à área de Riachuelo, onde estão instaladas uma série de indústrias altamente poluentes que produzem sofrimento ambiental nas populações mais pobres, ou ver o que acontece com a exploração do petróleo em Neuquén e os impactos sociais e de saúde nas comunidades Mapuche, os impactos da mineração em Jujuy e Catamarca. Aí podemos ver claramente como passivos ambientais são socializados, ao passo que os grandes lucros das empresas são privatizados. Essa é a lógica do extrativismo na América Latina e na Argentina. Seria um erro acreditar que, reativando a economia com mais extrativismo, conseguiremos reduzir as desigualdades.

No livro, vocês abordam os fracassos das COPs que buscaram comprometer as grandes potências com a redução da emissão de gases do efeito estufa. Qual seria a estratégia global para chegar a um modelo de energia limpa e sustentável ao longo do tempo?

É preciso reinventar o multilateralismo em novas bases, sobre a solidariedade, a interdependência, o reconhecimento da dívida ecológica e social que o Norte tem em relação ao Sul, no que diz respeito à necessidade de uma transição justa em termos geopolíticos. A reinvenção do multilateralismo deve partir de um questionamento muito radical do papel da Organização Mundial do Comércio (OMC), responsável por ter consolidado essa globalização neoliberal predatória, que atinge particularmente os países do Sul. Devemos avançar para um multilateralismo que pegue o touro pelos chifres e avance em um plano climático global voltado para as energias limpas e renováveis, que se alie a agendas regionais e nacionais, sem as quais seria muito difícil avançar na transformação tão radical que requer esta hora tão dramática. Na América Latina, também tem sido muito pobre o papel das instituições regionais. O cenário regional é altamente fragmentado, os governos têm orientações distintas e o fim do ciclo progressista não foi substituído por outro tipo de hegemonia, mas por uma fragmentação política regional que não contribui para a integração regional. Seria necessário avançar em projetos de cooperação regional em prol de uma agenda de transição.

Uma das propostas apresentadas para sanar a situação de pobreza de grandes setores da população argentina é um pacto ecossocial e econômico que, entre outras coisas, inclua um imposto sobre as grandes fortunas. Em que medida acredita que esta proposta é possível, se a oposição política busca frear essa contribuição solidária?

Propomos um pacto ecossocial e econômico na Argentina, e em âmbito latino-americano também. O pacto ecossocial e intercultural do Sul é promovido por ativistas e organizações sociais de diversos países, como Colômbia, Equador, Bolívia, Brasil, Peru, Chile, além do nosso. Buscamos instalar uma plataforma comum, a partir da qual possamos avançar com outra agenda de mãos dadas com conceitos-horizontes que foram desenhados no calor das lutas ecoterritoriais, feministas, indígenas e campesinas. Acreditamos que nesta encruzilhada civilizacional é preciso disputar sentidos, propor alternativas a partir das quais seja possível construir uma sociedade solidária, democrática e resiliente, em uma linha que articule justiça social com justiça ambiental. Claro, é difícil instalar uma agenda desse tipo em um contexto de grande crise econômica. Olhando para o que faz este governo, é preciso dizer que estamos longe de apontar para uma agenda de mudanças, o governo pensa em reativar a economia com mais extrativismo e isso é muito negativo. Propomos uma agenda integral, que dê respostas do ponto de vista social, por meio de uma reforma tributária estrutural que reverta as desigualdades e de uma renda universal cidadã. Neste marco, apoiamos o imposto sobre a riqueza, que não deve ser extraordinário, e ao qual devem ser adicionados outros impostos. Sabemos que existe uma grande relutância por parte dos sectores mais ricos em colaborar solidariamente neste contexto de crise, mas também me preocupa que o Governo se proponha a destinar 25% das receitas deste imposto sobre a riqueza para promover o “fracking”. Isto me parece um disparate.

Edição 164, janeiro 2021

Com Richard Sennett

A ALEMANHA SE ‘DESNAZIFICOU’, AGORA É PRECISO ‘DESTRUMPIFICAR’ OS ESTADOS UNIDOS”

É preciso desnazificar, é preciso destrumpificar os Estados Unidos”, disse um Richard Sennett inconformado, indignado pelo ataque ao Capitólio dias atrás. Sennett é um dos intelectuais mais influentes e criativos no mundo acadêmico e na sociedade estadunidense. Também é muito lido na Europa e em nosso país [Argentina]. Decidiu passar o tempo da pandemia em Londres junto com sua esposa, a urbanista e economista Saskia Sassen, que não resistiu à tentação de aparecer na tela do Zoom para brincar com o seu marido. “Não me leva a sério – disse Sennett –, como é argentina, não leva a sério os Estados Unidos...”. “Sim, levo a sério”, rebateu Sassen. Entrevista de Hector Pavon, publicada por Clarín-Revista. Tradução é do Cepat /IHU

O que você pensou quando viu as cenas de violência em Washington, dias atrás?

Pensei, como todo mundo, que isto tinha sido cozinhado anteriormente. Sempre houve um mar de fundo de violência com Trump, ele sempre teve essa qualidade. Vivi isto pessoalmente quando Josh Hawley passou a perseguir a mim e a outros três intelectuais estadunidenses. Tratou-nos como antipatriotas durante um ano. E foi ele que buscou suspender as eleições no Senado, em 6 de janeiro. Descreveu Martha Nussbaum, Leo Marx, Lloyd Rudolph e eu como cosmopolitas. Como judeu, sei ler o subtexto, a acusação. Argumentou que lideramos uma força intelectual antipatriótica nos Estados Unidos. Não me surpreendeu quando o vi assumir essa posição sobre Trump, não reconhecendo sua derrota eleitoral.

Os EUA conhecem uma “fissura”, uma divisão muito profunda da sociedade. Há saída?

Não acredito na noção de unir o país porque para mim os seguidores de Trump são fascistas e precisam ser responsabilizados pelo que fizeram, outro dia, no Capitólio. Para mim, foi indignante que somente 15 pessoas tenham sido detidas naquele dia, em vez das muitas que precisavam ser presas. Além disso, houve protestos em outras cidades. A retórica de unir os Estados Unidos, de superar isto unidos, de fazer gestos de reconciliação, parece-me equivocada. Após a Segunda Guerra Mundial, a ideia generalizada era que as pessoas que tinham seguido a Hitler deveriam ser responsabilizadas por isso, precisavam “desnazificar-se”. Hoje, estamos em uma versão mais suave: as pessoas devem ser “destrumpificadas”. Determinadas pessoas precisam ser responsabilizadas por provocarem crenças em coisas que acabam em cenas que vimos na semana passada, e não será a última vez que veremos estas coisas nos Estados Unidos. Você não se livra de um nazista sendo agradável com ele. A empatia não é uma maneira de desnazificar ninguém. Então, não acredito na retórica que temos agora sobre curar, cicatrizar as feridas e tudo isso. Penso que precisamos ter uma posição mais clara e começar a responsabilizar as pessoas pelo que dizem e pelo que pensam em casos assim, extremos. E não acredito que essa seja a lógica do Partido Democrata, neste momento. A ideia de curar as feridas nunca se efetivará. Um segmento considerável da população é fascista e uma quantidade considerável de cidadãos estadunidenses são fascistas comprometidos. Isto é o que está acontecendo. E isto deve ser compreendido na Argentina, já que vocês passaram pelo mesmo processo na busca em erradicar o fascismo e o militarismo que provocaram horrores na última ditadura. Digo que esta gente deve ser exposta. Para nós, é um fenômeno de massas mais parecido ao da Alemanha do que ao que vocês sofreram, mas é o mesmo problema. Deve haver mais verdade e menos empatia. Reconheço que tenho um viés taxativo, fui atacado por este Hawley como um antiamericano, por minhas opiniões sobre a economia, a política e a cultura, etc. Mas penso que o que digo é basicamente correto, realista, dado o lugar em que nos encontramos agora.

O governo de Trump expôs esta situação, esta radicalização. Como você caracteriza o país que esta administração está deixando?

Sim, fica claro algo que é uma mudança mais estrutural, que tem raízes muito mais profundas. E essas raízes são sociológicas e econômicas e operam há muito tempo. Desde os anos 1970, no econômico. Antes, nos anos 1950, com o senador Joseph McCarthy, que era mais ou menos o mesmo. Este não é um discurso que diz que os Estados Unidos estão ameaçados por outros países, mas que há uma ameaça interior, dentro da própria sociedade. E também que os democratas ou pessoas como eu podem ser ameaçadas. O fator acrescido aqui – único nos Estados Unidos – é que era um país onde existia a escravidão. E depois, como consequência, foi um país de segregação racial. Isto está profundamente gravado no DNA do país. Ocorre quando há uma diferença, que implica uma inferioridade, e está muito racializado. Por exemplo, o tipo de brutalidade que se viu na repressão contra as manifestações do Black Lives Matter, em Washington. Porque aqueles eram negros, tinham que ser parados com tanques. Estes, os que tomaram o Capitólio, são brancos e nada fizeram a eles.

A Covid e Trump formaram um coquetel explosivo. Um caldo onde se cozinhou esta situação.

Provavelmente. Temos este imenso problema da Covid e o governo não se concentrou nisso. Trump é inteligente para ver qualquer coisa que toque um interesse pessoal imediato, conferirá uma boa publicidade nos meios de comunicação de direita. Mas é muito estúpido nos assuntos de longo prazo, que podem destruí-lo, como a realidade, que não pode ser demonizada. Não há como demonizar a Covid, então, não deu atenção a ela.

Talvez a Covid também tenha exposto as grandes diferenças sociais nos Estados Unidos.

Não acredito. Trump conseguiu converter as reações à Covid em símbolos e respostas do que é fascista e o que não é. Se você não usava máscara, mostrava que não tinha medo. Há um elemento de machismo nessa negação. Quero dizer, a maioria dos estadunidenses não quer morrer. Inclusive os republicanos não querem morrer, mas ele dividiu o país em dois. Temos este elemento fascista em 45% da população e em 45% não existe. O que há no meio determina como será a relação entre todos, e isso continuará sendo assim, mesmo depois que a Covid se for. É endêmico.

Existe uma era Trump? Os historiadores falarão da era Trump?

Continuará até 20 de janeiro. Mas ele estará no exílio e não desaparecerá. A era Trump não é só de quatro anos, assim como Perón não desapareceu em seu país quando o deixou.

E quem são os ganhadores da era Trump?

Não sabemos ainda. Isto não será uma dinastia familiar, mas as pessoas como Hawley provavelmente poderão tomar a posição, assim como Ted Cruz, que também falou em defesa de Trump e pode continuar com isto. E são senadores, quer dizer que estarão em seu cargo por um longo prazo... Penso que se trata de uma mudança estrutural profunda, não de algo temporário, que tenha a ver com a Covid ou com Trump como presidente bilionário que é. Penso que isso é muito superficial. Perdão por dar uma entrevista tão pessimista, mas sou estadunidense e estou muito preocupado com o que está acontecendo no país.

Qual é a situação do Partido Republicano? Poderá sobreviver a Trump?

Está dividido em dois. Uma parte é o partido conservador, linhas muito tradicionais, não são pessoas que talvez compartilhem minhas opiniões de esquerda sobre a economia ou nada disso, mas são pessoas decentes e comuns. E uma parte que sempre esteve aí, foi mobilizada para esta forma abertamente fascista. E isso irá dividir o Partido Republicano em dois. Minha preocupação é que, como sabemos, o fascismo não vá embora simplesmente por não ter um partido organizado, o que faz é criar novas formas de organização. Trump se beneficiou de sua relação com a rede Fox News, por exemplo. E agora que a Fox News se afastou dele, está buscando novas maneiras de usar as redes sociais para mobilizar e organizar seus seguidores. E isso será assim para quem ocupar o lugar de Trump. Será outra organização política, mas a configuração será a mesma. Ou seja, são pessoas que são irreconciliáveis. E agora existe este argumento, essa ideia do punhal que lhes cravaram na costa por uma eleição roubada, e essa ideia os sustenta. Desculpe-me, é uma entrevista muito deprimente.

Não tem problema. Emmanuel Macron se solidarizou, mostrou sua confiança na democracia estadunidense em se recuperar desta violência. Qual é a sua opinião sobre a qualidade da democracia em seu país?

Penso que é boa, mas está sob ameaça. Quero dizer, as instituições se mantêm. Não se pode assumir que como Trump foi vencido, as instituições se manterão, pois se recusam a acreditar na legitimidade das instituições. Sustentam coisas como a que as eleições são fraudulentas, quando não vencem. Logo, devem ser fraudulentas. É preciso fazer um trabalho de desnazificação ou desfascilização para que as pessoas se sintam envergonhadas em ter estas opiniões, em vez de confirmá-las. E temos que encontrar uma forma para que as pessoas sintam vergonha de sentir coisas assim, e isso não ocorrerá com retórica política. Pode ser que venha das igrejas, por exemplo, pode ser que venha de grupos comunitários, mas não acontecerá com o amedrontamento ideológico. É preciso ir mais fundo. Quando há uma mudança de crença, precisa vir de uma experiência na vida. Conheço algumas destas pessoas e os únicos sinais que dão é quando me falam de como o sistema é horrível, etc. No meu caso, preocupa-me em meu papel de ser avô e do que quero para meus netos. Algo muito simples, o que quero é que respeitem a outras pessoas, não quero que sejam egoístas, quero que tenham certo respeito a si mesmos, sem vaidade. É uma maneira diferente de entrar na vida das pessoas, e temos que encontrá-la.

Quem é o principal inimigo de Trump? Os jovens, os meios de comunicação, os nova-iorquinos, os democratas...

Vamos ver... Em sua cabeça, todos eles são inimigos. Diria que, ao final, seu principal inimigo poderão ser as redes sociais. E isto acaba de começar. Foi expulso das redes sociais e entrou na dark web. Ele depende de poder se manter em primeiro plano, dizendo coisas indignantes no Twitter. Não mais, mas governou por meio do Twitter. Agora, quase não tem mais acesso às redes sociais. Por sua vez, a Fox News não o acompanhou até o final de sua presidência, parou de se interessar nele. Trump precisa sempre se fazer presente fazendo algo indignante. Quando era um operador imobiliário em Nova York, o único modo como conseguia as coisas era fazendo um drama de si mesmo na imprensa local, demonizando os outros. Então, acredito que caso perca o acesso às redes sociais de massa, de modo definitivo, terá um grande problema pessoal.

Quais são suas expectativas em relação à presidência de Joe Biden?

Muito boas. Penso que é muito bom. Acredito que é um político sensível e razoável e se cercou de pessoas muito competentes, por isso minhas expectativas são boas.

Como passou o tempo da pandemia, permaneceu escrevendo, tocando violoncelo?

Comecei a ir mais devagar. Estou buscando escrever um livro, e se escrevo duas páginas por dia, é um bom dia. Não sei por qual razão, minha vida sempre esteve equilibrada entre estar fora de casa e estar dentro. E por causa de minha idade, agora estou confinado em casa, legalmente. Então, toco violoncelo, toco piano, mas comecei a ir mais devagar, porque não posso sair. De qualquer modo, sobreviverei, receberei a vacina logo e, para mim, isso será a liberdade. Vão me deixar sair.

Com Luciano Floridi

'OS ESTADOS DEVEM RETOMAR A SOBERANIA DIGITAL'

O filósofo analisa a relação entre liberdade de expressão e mídias sociais depois do bloqueio de Trump. “As mídias sociais estão na infosfera. São necessárias novas regras. Os Estados devem retomar a soberania digital.” A reportagem é de Adele Sarno, publicada por L’HuffingtonPost.it. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Luciano Floridi é uma das vozes mais autorizadas da filosofia contemporânea. É professor titular de Filosofia e Ética da Informação na Universidade de Oxford, onde dirige o Digital Ethics Lab, foi presidente do Data Ethics Group do Alan Turing Institute, o instituto britânico de ciência de dados e inteligência artificial. Floridi publicou “Il verde e il blu” [O verde e o azul] (Ed. Raffaelo Cortina). No livro, ele sugere uma série de boas ideias para gerir uma sociedade da informação madura. Há muitos anos, seus estudos investigam o mundo digital.

Professor Floridi, existe o público, o privado e o privado aberto ao público. O que são as redes sociais hoje? Tentar, de todos os modos, encaixá-las em uma dessas três categorias não corre o risco de ser uma forçação, que nos obriga, a todo o custo, a encaixar algo novo em velhas categorias? De que espaço estamos falando?

É uma das questões fundamentais que diz respeito ao mundo das redes sociais: perguntar-nos hoje qual é a ontologia desse espaço nos ajuda a escrever o capítulo dois da história. Digamos logo: esse espaço não é nem público nem privado, é a infosfera, um espaço relacional. Não é físico, não é virtual. Não é Netflix, não é um jogo. Essa infosfera é um lugar completamente novo, feito de regras e de protocolos que o definem. Por isso, deve ser gerido de forma inteligente.

Ajude-nos a entender melhor.

A analogia mais próxima é aquela com a “Tragedy of commons”, isto é, a “tragédia dos bens comuns”. Os commons não eram espaços nem públicos nem privados, mas um recurso coletivo e compartilhado, aonde os pastores levavam as suas ovelhas para pastar. Se cada pastor perseguir apenas o seu próprio interesse racional, no fim todos perdem, porque as ovelhas de cada pastor consumirão o máximo possível, sem levar em conta os custos coletivos, e, no fim, não haverá mais nada para nenhuma ovelha pastar. Por analogia, poderíamos falar de “commons digitais”. Se quem vive nesses espaços age apenas com base no próprio interesse pessoal, comportando-se de forma contrária ao bem comum de todos os usuários, então esse recurso se esgota. No início dos anos 1990, havia grandes expectativas em relação àquilo que era então o ciberespaço: comunicação, transparência, envolvimento político, todos ingredientes bons que ainda estão por aí. Mas, depois, veio a web, a comercialização, o mercado, e começou a erosão desses commons, isto é, desses espaços comuns onde hoje nos confrontamos a golpes de aplicativos e contas.

Portanto, podemos dizer que as redes sociais fazem parte de um espaço novo que é a infosfera

É um espaço que devemos aceitar que existe. É como se tivéssemos desembarcado em um continente novo e tivéssemos decidido entregá-lo nas mãos das empresas. Esses grandes poderes estão determinando o modo como percebemos o mundo e podemos interagir com ele. Por isso, é fundamental criar novas regras. A ontologia do espaço é o primeiro ponto fundamental. O segundo é o da confiança nas instituições que deveriam ir retomar a soberania digital no espaço relacional, ditando justamente as regras do jogo. Este é o segundo capítulo da história que estamos escrevendo. A questão não é tanto o Facebook ou o Twitter que banem o Trump de plantão, mas sim que a legislação europeia está chegando.

Em que ponto está a legislação europeia?

Para regulamentar essas plataformas, a Europa apresentou o Digital Service Act e o Digital Market Act nas últimas semanas, reivindicando uma liderança na adoção de leis que limitem fenômenos como a incitação ao ódio e ataques racistas online, incitação à violência, fake news e outros conteúdos ilegais. Melhor não deixar a mão livre para que uma nova oligarquia digital, as cúpulas das Big Techs, estabeleçam suas próprias regras de forma anárquica. Mas o que deve ser lido com atenção é o artigo 20. A abordagem parte novamente do regulamento GDPR (o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados Pessoais), um ponto fundamental: desvincula a legislação da localização. Em outras palavras, se o usuário for europeu, aplica-se a legislação europeia. Este é o século XXI: onde quer que você esteja, se os seus dados são europeus, aplicam-se as regras europeias.

Por que se fala de redes sociais e de leis precisamente agora?

Em todas as transformações históricas, identificamos o fato que representa um ponto de virada. O bloqueio das contas de Trump é a faísca, o momento de luz que fez com que, 30 anos após o nascimento da internet, todos se dessem conta, e não apenas o filósofo, de que quem faz as regras faz o jogo. O fato de Google, Facebook, Twitter, Microsoft, Apple e as várias empresas digitais (pensemos na Amazon) gerirem aquilo que no passado se chamava de ciberespaço. O bloqueio das redes sociais de Trump é a tempestade perfeita. A questão fez tanto barulho porque quem foi silenciado foi o presidente dos Estados Unidos. Mas também porque ele foi silenciado no momento em que todos estavam online no Zoom, no WhatsApp, forçados pela pandemia a passar a própria vida online, na infosfera. Quando Trump foi apontado pelos fatos de Minneapolis, em maio passado, não se falou muito sobre isso, porque a opinião pública não tinha a maturidade para entender o que estava acontecendo. Paradoxalmente, deveríamos ser gratos a Trump. Se ele não tivesse pressionado tanto, não teria havido a ruptura, e não estaríamos hoje discutindo sobre como consertar tudo.

Os novos termos de serviço do WhatsApp também deve ser lido nessa chave?

É a mesma história. É o impulso dessas grandes empresas para a conquista desse espaço. A soberania digital é exercida de vários modos, na segurança, na saúde, no controle das fronteiras, na escola. Hoje todos esses papéis veem o digital na primeira fila. O digital está nas mãos das empresas, então podemos dizer que a soberania digital está nas mãos das Big Techs. E, para mantê-la, fazem o que podem.

Quais são as modalidades para pedir que Facebook, Twitter, Microsoft, Google façam um trabalho melhor?

É necessário um maior controle. E isso pode ser feito com quatro alavancas: a legislação, a autorregulamentação setorial, a pressão social da opinião pública e as regras de mercado, neste caso sobretudo com a concorrência. Temos que encher esses quatro copos. Hoje, só dois deles estão meio cheios. Ou seja, o da legislação europeia e o da opinião pública, que está começando a levantar o problema. A autorregulamentação é praticamente inexistente, e o mesmo vale para a concorrência. Nós, europeus, estamos agindo sobre a legislação de forma ótima. Os estadunidenses talvez não conseguirão fazer o mesmo, mas há sinais de mudança em relação à concorrência. Eu ficaria surpreso se não se chegasse a rever a lei antitruste.

Como a concorrência pode conter o poder do Twitter ou do Facebook?

Se eles tivessem concorrentes sérios, provavelmente agiriam de maneira diferente. Acredito que a legislação do antitruste estadunidense vai mudar: porque é o século XX, com base no valor econômico dos serviços, não social. A ideia é que, se duas empresas se unem e trazem uma vantagem para os clientes, tudo bem; se houver uma desvantagem, então não. É preciso um antitruste baseado no valor social capaz de avaliar o quanto a fusão entre duas empresas pode impactar a estabilidade da democracia ou o pluralismo da informação, por exemplo. No dia seguinte ao Facebook ser forçado a vender o WhatsApp, Zuckerberg terá que concorrer com uma empresa séria e, portanto, se comportar de forma diferente em relação a hoje.

Uma previsão para o futuro?

Vejo um potencial descolamento da Europa em relação aos Estados Unidos, Rússia e China. Temos uma legislação ótima sobre o GDPR. É preciso algo semelhante em relação ao 5G, à inteligência artificial e às mídias sociais. Assim que tivermos fechado o arco, a Europa será um lugar autônomo com uma abordagem mais democrática. Desvinculando a legislação do espaço físico, poderemos dizer a quem vende os produtos quais são as regras, reapropriando-nos assim da soberania digital da infosfera. Aquele espaço onlife, nem público nem privado, mas “commons”, em que vivemos.

Com Adriana Valerio

'AINDA É POUCO: A IGREJA CONTINUA NAS MÃOS DOS HOMENS'

'Ainda é pouco: a igreja continua nas mãos dos homens'. A afirmação é de Adriana Valerio, teóloga e estudiosa da figura das mulheres no cristianismo. A afirmação vale como reacção da teóloga à decisão do Papa Francisco admitir mulheres ao leitorado e ao acolitado: o Papa permite que as mulheres tenham acesso ao leitorado e ao acolitado. A entrevista com Adriana Valerio é de Paolo Rodari, publicada por La Repubblica. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

A permissão do papa é um passo adiante ou a Igreja ainda está a fazer muito pouco pelas mulheres?

“Este é um passo institucional importante; de facto, fala-se de ‘ministérios instituídos’ que dão visibilidade a um serviço que as mulheres podem cumprir oficialmente e que também terá um impacto simbólico importante. Ver as mulheres no altar com paramentos litúrgicos, depois de terem recebido com específico rito as ordens menores de leitorado e do acolitado, certamente mudará a percepção do feminino que não será mais visto como impuro e incompatível com o sagrado”.

No entanto, vários membros do Sínodo dos Bispos para a Amazônia haviam pedido o diaconado feminino. Por que você acha que esta etapa ainda não foi alcançada?

Porque o diaconado é o primeiro passo para o ministério presbiteral, hoje diferente daquele dos fiéis, e não se quer que as mulheres participem dele. Se o leitorado e o acolitado pertencem às ordens menores, o diaconado, ao contrário, pertence às ordens maiores que fazem parte da ordem sagrada, onde as mulheres são excluídas. Ainda são muito fortes as resistências dentro da hierarquia ligadas ao que se chama de ‘costume’ (sempre foi assim) e, sobretudo, aos próprios privilégios que zelosamente defendem.

A estrutura da Igreja ainda é hierárquica e masculina em seus vértices. Por quê?

Todas as decisões na Igreja são tomadas por homens pertencentes ao clero ainda ligados a posições que tinham sua própria justificativa quando a visão social e antropológica considerava as mulheres impuras, inferiores e inadequadas para exercer o poder ou mesmo representar o divino.

Há quem quer o cardinalato para as mulheres. Você compartilha o pedido?

Seria interessante se as mulheres, membros do cardinalato, pudessem participar do conclave e eleger o Papa; se fosse apenas um título honorífico não teria impacto institucional.

Afinal, Francisco realizou passos significativos para as mulheres na Igreja ou você ainda os considera insuficientes?

O Papa Francisco iniciou um processo fundamental de desclericalização na Igreja Católica, exortando continuamente a presença significativa das mulheres nas estruturas da comunidade eclesial, mas as suas palavras não serão suficientes se não operar uma intervenção a nível institucional que reconheça uma efetiva igualdade homem-mulher.

Reconhecer a dignidade e a autoridade da pessoa humana, de facto, significa permitir que ela participe dos processos de tomada de decisão. Não aceitar na mulher a capacidade de governar implica relegá-la à não visibilidade, à situação de menoridade de uma condição humana que requer para existir a presença da mediação masculina que controla, aprova, julga e dirige. Por acaso os homens aceitariam ver-se representados por um conselho ou sínodo de mulheres tomando decisões também por eles? Eles iriam ridicularizá-lo, ririam dele ou se insurgiriam.

Com Aurore Lalucq e Vincent Liegey

'DEVEMOS MUDAR NOSSO SOFTWARE INTELECTUAL'

Privilegiar o qualitativo, dar sentido, colocar a economia novamente a serviço do interesse geral... Aurore Lalucq e Vincent Liegey dão elementos para montar um novo modelo. Aurore Lalucq é eurodeputada e relatora de “Semestre de 2020” no Parlamento Europeu; Vincent Liegey é ensaísta e pesquisador. A entrevista é de Vincent Grimault e Aude Martin, publicada por Alternatives Économiques. A tradução é de André Langer /IHU

No momento, estamos passando por uma violenta queda no crescimento. O que o período atual nos ensina?

Vincent Liegey: O que vivemos hoje não é uma queda no crescimento, mas uma recessão. A filósofa Hannah Arendt disse que “não há nada pior do que uma sociedade de trabalho sem trabalho”. Da mesma forma, não há nada pior do que uma sociedade de crescimento sem crescimento. Todo o desafio do decrescimento é repensar o nosso modelo para não depender mais dele. Por um lado, porque o modelo do crescimento infinito apresenta problemas ambientais óbvios. E, por outro lado, porque tem consequências sociais igualmente desastrosas e rouba a muitos de nós a alegria de viver. Enfim, já convivemos com baixo crescimento há vários anos. Precisamos nos preparar com urgência para a sequência.

Aurore Lalucq: Encontrar soluções para a crise ecológica e social requer a definição correta dos termos do debate. Há, obviamente, uma correlação entre o crescimento do produto interno bruto (PIB) e as emissões de CO2; o período de confinamento mostrou isso com a queda de ambos. Mas esse período não mudou nosso sistema. Pior, as desigualdades aumentaram: a Amazon teve lucros exorbitantes, os mais abastados conseguiram economizar e os trabalhadores pobres foram os mais expostos. É urgente reorganizar nossa economia, colocá-la a serviço da sociedade, respeitando os limites da biosfera. Como deputada, não posso contar com o PIB como uma bússola, porque nada diz sobre o estado das desigualdades ou da biodiversidade. Crescimento ou decrescimento, isso equivale a referir-se a um indicador datado de 1944, projetado para a reconstrução da França do pós-guerra. É um absurdo. Temos que sair da nossa obsessão por este indicador, passar do mais para o melhor.

Vincent Liegey: O decrescimento não é o contrário do crescimento. O termo, infelizmente, é mal interpretado, e nos faz perder nosso tempo. Por que me apego a ele mesmo assim? Porque ele é o único que nunca foi esvaziado de seu significado. Todos os outros mudaram para o greenwashing, a começar pelo “desenvolvimento sustentável”, que é um oxímoro. O “pós-crescimento” corre o risco de se tornar a nova torta de creme para promover o crescimento verde. Precisamos de palavras claras que mudem radicalmente o nosso software intelectual.

Aurore Lalucq: Como deputada, luto todos os dias para implementar políticas públicas eficazes, que realmente mudem nossas vidas. Mesmo se, evidentemente, nenhum termo seja “puro”.

Para além dos debates semânticos, com o que se parece o novo modelo que vocês esperam?

Vincent Liegey: O isolamento físico tinha suas falhas, mas também permitiu que muitas pessoas – especialmente os ricos – se perguntassem o que realmente importava em suas vidas. Muitos então perceberam a toxicidade do seu ritmo de vida, do seu trabalho e puderam se concentrar novamente nos seus filhos, na sua alimentação e na sua saúde. Existem alavancas de transformação para um mundo onde domina a busca de sentido.

Aurore Lalucq: Claro, o isolamento físico permitia que os executivos se fizessem perguntas existenciais. Mas durante esse tempo, outros continuaram a trabalhar em péssimas condições, sem ver os filhos, fazendo fila para receber ajuda alimentar… Interrogar-se sobre o consumo, muitas vezes, é um luxo que alguns não têm. É mais fácil renunciar a certos produtos quando já se provou deles. O consumo não é apenas um fenômeno material, mas uma ação classificatória, social, com consequências psicológicas e ecológicas. Além disso, somos todos mais ou menos prisioneiros de uma sociedade de consumo baseada na frustração. Não nos precipitemos para julgar os padrões de consumo e não nos esqueçamos do crescimento que ocorreu durante os Trinta Anos Gloriosos...

Vincent Liegey: Os Trinta Saqueadores (Saccageuses) você quer dizer!

Aurore Lalucq: Os Trinta Saqueadores, como você diz, tiraram milhões de pessoas da miséria após a Segunda Guerra Mundial. Não idealizo de forma alguma este período, nem do ponto de vista (geo)político, nem ecológico. Mas esquecer esse elemento de melhoria das condições de vida e de emancipação, especialmente dos trabalhadores, é um erro de análise. Para mudar tudo, devemos primeiro entender por que estamos tão apegados a este sistema, embora ele não nos faça mais bem! Não devemos esquecer que a ecologia é uma questão de pobres. São os ricos que mais poluem e os pobres que mais sofrem com a poluição. Assim, um dos departamentos mais poluídos da França é também um dos mais pobres: Seine-Saint-Denis.

Vincent Liegey: Estou de acordo, mas para isso, vamos ter que trabalhar sobre os imaginários. Eu moro na Hungria, que é o terceiro país da Europa onde as pessoas mais andam de bicicleta, depois da Dinamarca e dos Países Baixos. Essa trilha vem em parte de bobos [contração das palavras burguês e boêmio] hipster como eu, que andam de bicicleta em Budapeste. Mas também gente do campo que não tem carro. Para estes últimos, a bicicleta não é uma forma de libertação da sociedade de consumo automobilística. É um símbolo de fracasso, até porque a publicidade os lembra constantemente que eles precisam comprar com urgência um carro grande. Não sairemos disso sem uma regulamentação estrita, até mesmo uma proibição da publicidade, porque ela coloniza nossos imaginários.

Aurore Lalucq: Não imponhamos nosso imaginário. Em vez disso, liberaremos o potencial criativo dos indivíduos, como disse André Gorz. Além disso, quando penso na Hungria, penso menos nas bicicletas do que nas políticas extremistas de Viktor Orbán.

O decrescimento escolhido e planejado destruiria muitos empregos e criaria outros. O saldo pode ser positivo?

Aurore Lalucq: A questão do saldo já se coloca. Muitos empregos foram destruídos e ainda serão nas indústrias fósseis. Como remediar isso? Reduzindo o tempo de trabalho, investindo na transição ecológica e na criação de um mecanismo de empregador de última competência: políticas inscritas no centro do “Green New Deal”. Em termos europeus, isso criaria milhões de empregos na proteção da biodiversidade ou na renovação térmica de edifícios.

Vincent Liegey: O desemprego é uma escolha de sociedade. O sistema precisa do desemprego para impor condições de trabalho às pessoas que, de outra forma, não as aceitariam. Em uma sociedade decrescimentista, o desafio mais importante é sair da centralidade do valor trabalho. Isso entranha uma reflexão sobre como consumir menos e, portanto, viver melhor. A recuperação econômica pós-coronavírus não deve ser uma oportunidade para reativar trabalhos inúteis. Devemos refletir sobre como dividir as tarefas para que todos tenham um lugar na organização social.

Os ganhos de produtividade provocaram desvios, mas também têm sido um motor da redução do tempo de trabalho e da melhoria das condições de trabalho. O decrescimento não corre o risco de acabar com este progresso?

Aurore Lalucq: Os ganhos de produtividade já vinham caindo nas últimas décadas. A ligação ganhos de produtividade-crescimento-emprego não é óbvia. Nem todo crescimento é necessariamente rico em empregos. Precisamos contratar na agricultura orgânica e no setor do care [cuidado], onde os níveis de produtividade “quantitativos” são baixos e são as principais fontes de emprego. Temos que sair do quantitativo e ir para o qualitativo.

Vincent Liegey: Mesmo quando ainda havia ganhos de produtividade, eles nunca estiveram a serviço do bem viver e serviram antes para estimular a competição entre os países, criando uma situação de superabundância e de dependência material. O isolamento físico nos mostrou quão vulneráveis se tornaram nossos processos de fabricação feitos com base nas deslocalizações, na produção enxuta e nas economias de escala. Precisamos relocalizar a produção em toda a Europa com pequenas fábricas locais e favorecer locais que incentivem o uso da segunda mão, os reparos, etc. Poderemos assim recuperar as técnicas de produção e voltar a ser soberanos. Talvez seremos menos eficientes e menos produtivos, mas teremos uma relação mais convivial com nossos objetos low tech ecoconcebidos ou reciclados.

Como financiar a proteção social sem crescimento e sem a taxação das atividades poluidoras?

Aurore Lalucq: Na França, tivemos um crescimento inexpressivo desde os anos 2000, ao mesmo tempo em que garantimos o financiamento da proteção social. Por outro lado, esse financiamento é prejudicado por algumas políticas que ajudam a colocar os recursos da Seguridade Social no vermelho, como a isenção de contribuições sociais sobre as horas extras. Existem significativas margens de manobra financeiras: acabar com a política de ajuda às empresas, lutar contra os paraísos fiscais, reformar a tributação. A nível europeu, pode-se imaginar um imposto sobre o patrimônio dos 1% mais ricos, uma taxa Gafa, anular a dívida pública... O financiamento é um assunto sério, muitas vezes usado como pretexto para impedir a implementação de certas políticas.

Vincent Liegey: Concordo com Aurore e o economista Gaël Giraud que querem responder à emergência econômica com ferramentas que já estão à nossa disposição. Devemos evitar uma modificação dos tratados europeus por razões políticas e constitucionais óbvias. Isto deverá dar-nos tempo para, na sequência, instituir uma forma de renda básica incondicional em toda a Europa, que evite disparidades entre os Estados e o não recurso às ajudas sociais, o que é importante dada a complexidade dos diferentes sistemas nacionais.

Poderemos nos contentar em controlar os comportamentos por meio de incentivos fiscais ou será preciso recorrer à regulação, mesmo que isso signifique retroceder em certas liberdades atuais?

Aurore Lalucq: O sinal preço não é inteiramente o mais eficaz! Nós lutamos contra o buraco na camada de ozônio por meio de uma regulamentação. Teremos que retomar alguns consumos. Mas não poder mais andar de avião o tempo todo não é uma regressão. Acima de tudo, isso acabaria com os excessos, e permitiria que outros países poluíssem um pouco mais para se desenvolverem. Direito que lhes foi roubado.

Vincent Liegey: O tema das liberdades é complexo. Vejamos o movimento dos coletes amarelos. Este movimento começa inicialmente como uma reação à introdução de uma pseudotaxa de carbono, mas também com uma outra medida que não foi bem recebida: a redução da velocidade autorizada de 90 para 80 km/h nas estradas de mão dupla. Penso que essas duas medidas não foram rejeitadas tanto pelo conteúdo, mas porque foram vistas como imposições. A mobilização dos coletes amarelos desembocou na Convenção Cidadã sobre o Clima (CCC)... uma das propostas era reduzir a velocidade nas rodovias de 130 para 110 km/h! É paradoxal: um movimento desencadeado em oposição a uma redução do limite de velocidade acabou por colocar outro em debate. Isso mostra que, quando se trata de regulação, o método de implementação faz toda a diferença. A CCC desdobrou-se em uma dinâmica de prestação de contas, escuta e respeito. In fine, portanto, a proposta de redução da velocidade não é mais sentida como uma privação de liberdade, mas vivida como uma reapropriação dos limites.

Aurore Lalucq: Dar liberdade também é investir. A crise dos coletes amarelos deriva tanto da falta de diálogo, como do empobrecimento e da falta de alternativas... eles estão presos a um modelo antigo. Daí a urgência de reorganizar o mais rapidamente possível a nossa economia, para colocá-la novamente a serviço do interesse geral.

Edição 163, dezembro 2020

Com Luciano Floridi

UTOPIAS INTELIGENTES: “A TECNOLOGIA PODE NOS FAZER IMAGINAR UM MUNDO MAIS SUSTENTÁVEL E ÉTICO”

Ao imaginar um futuro próximo pós-pandemia, existem duas questões que dizem respeito ao modo de viver e de produzir riqueza no nosso planeta: a revolução digital, recentemente rebatizada de Transição 4.0, que já mudou as nossas vidas, e o New Green Deal, que promove um uso inteligente dos recursos, adotando modelos de economia circular a fim de garantir um sistema mais justo e inclusivo. A entrevista é de Simone Intermite, publicada por DomaniPress. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

No seu último livro, “Il verde e il blu, idee ingenue per migliorare la politica”, traça-se uma união entre o verde do nosso ambiente e a revolução digital em curso. O digital e o Green Deal são dois conceitos que podem se comunicar?

Sim. Já tendo alguns cabelos brancos, há algum tempo eu me ocupo em aproximar esses dois elementos aparentemente distantes: o verde, que não é só o natural, mas também o urbano, social, da família, onde nós vivemos, o nosso habitat, e o azul do digital com a inteligência artificial, os bancos de dados e a telefonia móvel, só para citar alguns exemplos. São dois vasos comunicantes que podem nos ajudar a pensar em um futuro mais sustentável e que é hora de pensar como um unicum. Se tivermos uma visão “ambientalista” do digital, podemos entender as problemáticas do ambiente, desde a injustiça social do nosso pequeno centro urbano e familiar até o urgente aquecimento global e as mudanças climáticas. Estamos falando, no fundo, de duas faces da mesma moeda. O verde e o azul são dois componentes complementares.

Você acreditou na revolução digital e tem falado sobre a questão ambiental desde o início dos anos 1990, quando ainda não estava na moda...

Sim, já faz muito tempo que iniciei esse caminho, porque já nos anos 1980 eu tinha imaginado que a tecnologia seria a nossa aliada para a proteção do ambiente. Na década passada, pensava-se que o digital era duas coisas: instrumentação, ou seja, que servia para fazer algo, ou que era comunicação, ou seja, evolução da televisão, do rádio, da telefonia móvel e das mídias sociais. Não são linhas equivocadas, mas marginais.

A Transformação Digital, por outro lado, entrou com força nas nossas vidas, borrando as fronteiras entre o que é tangível e o que não é. Mas estamos perdendo alguma coisa nessa mudança?

O aspecto mais importante do digital que não deve ser subestimado é que ele representa um novo ambiente em que vivemos. Certamente, há a comunicação, os tools, a instrumentação, mas, acima de tudo, estamos nós e o nosso espaço dentro do qual desenvolvemos a nós mesmos, no qual é possível amadurecer as consciências.

Todo esse espaço também precisa de regras e de instrumentos para que se possa desenvolver uma proteção, assim como ocorre na vida offline...

Claro, é necessário também adotar medidas políticas para tornar esse espaço agradável e profícuo para o desenvolvimento, mas, se não for compreendido e continuarmos nos aproximando dele como se não tivéssemos entendido metade do problema, dificilmente poderemos captar todas as nuances dessa grande mudança.

Voltando à cor verde, qual você acha que poderia ser o papel das tecnologias digitais para alcançar os objetivos da sustentabilidade?

As tecnologias que terão maior impacto positivo sobre o ambiente serão compostas pela integração do big data e da inteligência artificial. Hoje, podemos dar um salto qualitativo, ou seja, fazer mudanças em termos de produção industrial e consumo, e, portanto, de capitalismo no sentido mais amplo do termo, porque o digital nos permite ter enormes quantidades de dados a serem explorados por meio de inteligência artificial. A ideia é bastante simples de implementar, mas é o paradigma e o hábito que são difíceis de mudar. O velho modelo analógico da produção industrial considera o mundo como uma enorme reserva de recursos que podem ser utilizados de uma forma mais ou menos eficiente. É um ciclo em que simplesmente produzo, elimino os resíduos e recomeço. Imaginemos o petróleo... Os combustíveis fósseis tão caros aos processos industriais são o ponto de partida da economia linear para a produção. A digital não considera “o mundo” como um recurso e explora como matéria-prima os dados que nós produzimos e pode criar um produto finito partindo até mesmo de um resíduo.

Os efeitos decorrentes do empobrecimento dos recursos são devastadores, tanto para o ambiente quanto para as populações, em sua maioria indígenas, que vivem nos territórios mais ricos em matérias-primas... A economia circular poderá pôr fim ao esgotamento do nosso exuberante planeta para fins puramente comerciais?

Essa inversão de tendência – sendo positivo – já está acontecendo. Por exemplo, recentemente em novembro, uma empresa muito importante, por meio da utilização da tecnologia, anunciou que vai explorar o átomo de carbono no dióxido de carbono para produzir diamantes que, como sabemos, tem como base o carbono. No ano que vem, poderíamos comprar um diamante de dois quilates de uma indústria que consome o equivalente a sete anos do impacto ambiental de um indivíduo na Itália. Imagine um indivíduo de 30 anos, com expectativa de 70 anos de vida, que decide comprar sete diamantes: o seu impacto ambiental seria reembolsado.

Tudo isso é mérito da tecnologia... Mas será que tudo isso estará ao alcance de todos? Podemos pensar em uma economia verde de massa?

Não sei quanto vão custar esses diamantes, mas o que é que permite essa transformação do dióxido de carbono que nós achamos que é um mero resíduo e que não sabemos onde eliminar? As novas tecnologias integradas com a inteligência artificial. Outro exemplo poderia ser o do setor têxtil: hoje, podemos produzir produtos semelhantes ao couro utilizando a casca das maçãs. É por isso que precisamos de inovação, inteligência e muita tecnologia. Existem milhares desses exemplos. Por meio da exploração dos dados e da inteligência artificial, nós conseguiremos produzir mais, desperdiçando menos recursos. Pensemos na revolução que foram as LEDs alguns anos atrás. Se eu usasse velas, deveria ter pelo menos 200 delas ao meu redor para iluminar uma sala. Este é o mundo do século XXI, onde é preciso continuar investindo.

A revolução digital reontologizou a nossa realidade, modificando-a profundamente. Em um futuro não muito distante, a inteligência artificial nos imporá uma reflexão atenta sobre os seus usos éticos. A propósito do emprego, a robótica, a inteligência artificial e a digitalização ainda despertam algumas preocupações. O que você acha?

Como você aponta, há limites que não deveriam ser ultrapassados, mas não devemos nos deixar intimidar. Em grande parte, os dados que nós utilizamos não são pessoais. A indústria automotiva, por exemplo, utiliza a inteligência artificial, a robótica e aprendizado de máquina [machine learning] com dados funcionais e não pessoais, e isso também ocorre na indústria do descarte dos resíduos. Mas há muitas áreas, como a médica, em que precisamos explorar os dados pessoais. Obviamente, quando se tratam essas informações, é bom lembrar que elas são protegidas pelo Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (RGPD). Existem parâmetros, vínculos e limites que nos garantem onde deve valer o anonimato, a possibilidade de desanonimizar, as finalidades de utilização dos dados. E, se houver uma extensão ilegal do motivo pelo qual os dados foram coletados, pode haver penalidades até mesmo graves. Vou dar um exemplo em relação ao mundo dos dados: se olharmos para as análises do compartilhamento dos dados, o que vem à tona é que, se perguntarmos às mulheres com câncer de mama se podemos usar os seus dados para tratar outras mulheres com a mesma doença, poderíamos registrar uma boa resposta à pergunta. Se, em vez disso, perguntássemos: “Podemos utilizá-los para o câncer em geral?”, o consenso diminuiria, em geral. Se, por outro lado, disséssemos: “Podemos utilizá-los?”, a resposta seria: “Não, porque eu não sei a motivação”. A pessoa se sente mais próxima em quem compartilha o mesmo problema, e isso poderia dar um valor diferente à dor e ao sacrifício. Há também razões humanas e psicológicas que explicam isso. Quanto mais a motivação se afasta da nossa vontade, menos somos levados a compartilhar. Há vínculos não só éticos, mas também legais muito fortes, e eles se tornarão cada vez mais fortes. Na Europa, estamos muito atentos a esse aspecto.

Permanecendo no nível ético, o aprendizado de máquina, por meio da elaboração de parâmetros biométricos, poderá se tornar um substituto das relações humanas?

Essa é uma boa pergunta. Eu acho que as instrumentalizações negativas da inteligência artificial poderão exacerbar ou extremizar tendências já presentes. Se eu sou uma pessoa sociável, eu continuo assim; se sou tímida, tendo a brincar com a inteligência artificial em vez de com outras pessoas. Tenho a impressão de que há uma tendência à polarização, à extremização de algo já presente. Se o tipo de extremização que poderia ocorrer pode se tornar um perigo, poderíamos acrescentar algo mais em termos de educação. Em 2018, a União Europeia já havia publicado as suas diretrizes para garantir uma abordagem ética à inteligência artificial. A iniciativa foi lançada com a criação de um grupo de trabalho e com uma consulta pública, da qual também participaram os cidadãos, além de pesquisadores e instituições.

Hoje o debate ainda está aberto...

Claro, pensemos nos sistemas de inteligência artificial para os “recommended systems”, aqueles que o aconselham sobre filmes ou compras. Eles são úteis, mas queremos impor um limite? Queremos disponibilizá-lo para qualquer idade? Até hoje, também existem perfis destinados a menores. Acredito que deve haver momentos de proteção e que eles deveriam ser exercidos, assim como ocorre com a pornografia. Poderíamos também precisar de medidas semelhantes para outras utilizações do digital que consideramos como não adequadas para o desenvolvimento do indivíduo, mas avaliaremos isso ao longo do tempo.

Existe algum país que, a esse respeito, está se adequando melhor do que outros e que poderia ser um farol, ou estamos todos no mesmo nível?

Se há um ponto de orientação, um farol, é a União Europeia, mesmo que os países dentro dela variem muito, razão pela qual é difícil escolher o melhor. Há quem se saia melhor na proteção dos dados, mas depois faz demais na proteção dos direitos autorais, como a Alemanha. A legislação alemã é muito mais presente no bloqueio dos direitos autorais, talvez exagerando. Mas, por outro lado, é muito firme, no bom sentido, na proteção dos dados pessoais. As questões éticas digitais são muitos capítulos de um grande livro. Para mim, é mais simples dar uma resposta em termos do sistema europeu, até porque é a legislação europeia que faz a diferença. Na União Europeia, estamos em melhor posição para a discussão sobre os dados pessoais: ensinamos ao mundo como fazê-lo bem, e, na minha opinião, ainda hoje estamos chegando antes da China e dos Estados Unidos na questão da inteligência artificial. Poderíamos literalmente ter um EUA muito diferente em questão de dias, por causa da eleição de Biden-Harris. Se eles decidirem levar a questão a sério, poderiam se recuperar rapidamente. Imaginemos se o novo governo decidisse levar a sério a questão do antitruste e decidisse que o Facebook deve vender o WhatsApp e que o Google deve vender o YouTube: seria um mundo diferente, você não acha?

No livro, você fala de “100 ideias ingênuas”... A política pode ser uma delas?

A política deveria voltar a ser. Esse aspecto é importante, porque a engenhosidade de que eu falo no livro é de retorno, não de partida.

E qual é a diferença?

A ingenuidade de partida pertence a quem cria ilusões, é típica de quem observa tudo superficialmente e faz perguntas simples e básicas. Ao invés disso, a de retorno se adquire com muito esforço, estudando, pensando, debatendo, ouvindo outras pessoas e fazendo as perguntas fundamental a partir de uma perspectiva e com uma riqueza bem diferentes. Tomemos Ulisses antes e depois de Troia, por exemplo: ele parte e volta para Ítaca, mas não é o mesmo homem. Poder voltar a fazer política a sério, pensando que é um instrumento de uso e consumo da sociedade em longo prazo, e não um meio para ser reeleito. Ela deveria ser clarividente, competente e altruísta. Prefiro ser considerado ingênuo de retorno do que espertalhão.

Você também está se engajando ativamente na política, ao lado de Marco Bentivogli no movimento “Base”. Quais são os seus objetivos?

Estamos nos organizando e ainda estamos em diálogo para a identificação mais precisa das ideias e da agenda. Pessoalmente, não gostaria de falar como presidente da associação, mas sim como Luciano Floridi. Gostaria de tentar impulsionar a política para uma visão competente, clarividente e altruísta, e trabalhar pela sociedade em longo prazo, partindo de baixo, pensando em um planejamento local que, de forma reticular, se transforme em sistema, não de forma mecanicista, mas com muitos nós que podem criar uma rede robusta, concreta e real que parte dos problemas vividos pela pequena localidade da província até a grande metrópole. Todos problemas muito diferentes: porém, é preciso partir de uma localização que forme rede, caso contrário o local não ultrapassa o limiar da diferença. Se você empurra o carro que não pega, depois volta para casa, então venho eu para empurrá-lo, e depois outra pessoa, o carro nunca conseguirá se mover. Devemos ir todos juntos na mesma direção para empurrá-lo. Existe um limiar abaixo do qual o esforço individual é zero. É isto, na minha opinião, que devemos fazer: unir os esforços para fazer a diferença. Na minha opinião, isso pode ser feito porque há muita boa vontade, capacidade e prática que não estamos transformando em sistema. Pelo contrário, as pessoas se desligaram da política e não se interessam mais em participar.

Na sua opinião, a política deveria voltar a sair para as ruas ou é possível agir – retomando o seu neologismo – “onlife”?

Tem de ser feito nos dois modos e do melhor modo possível. É possível se organizar, ver-se nas ruas, para depois se reencontrar novamente online: é o online que derruba o muro entre o digital e o analógico.

Em um artigo recente, você examinou as campanhas eleitorais nas redes sociais e as preferências populistas do eleitorado…

Para mim, a política online é aquela que é necessária hoje, porque é preciso falar um pouco para a barriga. Eu não sou tão intelectualoide a ponto de achar que só se deve falar para o cérebro. É preciso falar para o todo. Quando eu era jovem, havia uma séria inflação que era entendida como o bicho-papão, tinha que ser derrubada. Hoje, sabemos que um pouco de inflação faz bem ao sistema, assim como o colesterol bom ou um pouco de sal ou um copo de vinho, mas é preciso cuidar para não exagerar. Um pouco de populismo faz bem ao sistema, porque é esse pouco que faz você dizer que eu estou ouvindo aquilo que você está gritando nas ruas: “Não aguento mais!”. Isso não é populismo, é também ouvir as pessoas. Eu não gosto de ouvir discursos em preto e branco, intelectualoides, quebra-cabeças sofisticadíssimos que fazem você voltar a uma política de cima para baixo. Entender onde dói é a primeira tarefa do médico. Também é preciso ouvir a barriga. Se 2% de inflação são necessários, 2% de populismo também fazem bem ao sistema.

Tudo o que conhecemos como tradição, antes de existir, era a inovação de muitos anos atrás. Mas, apesar de tudo, a nostalgia do passado é inerente à natureza humana. Do que você sente nostalgia?

Pessoalmente, sinto falta da enorme flexibilidade de tempo que eu tinha quando era mais jovem. Você também deve ter notado que a sua agenda, com o passar do tempo, se torna cada vez mais estreita e vinculante. Tudo isso não é culpa das tecnologias, mas faz parte da existência humana: se você tem sucesso e tem interesses, o tempo fica cada vez mais vinculante. Se você tivesse a varinha mágica, pediria para ter um tempo mais flexível. Falta a flexibilidade para dizer: “Hoje eu faço isto e não aquilo”. Quando eu era jovem estudante ou pesquisador, com medo de ficar desempregado, tinha a flexibilidade de ficar uma semana estudando um problema, se eu quisesse. Hoje eu tenho que pular as barras. Como eu digo aos meus estudantes, conforme você envelhece, é preciso manter os olhos na bola, sempre. Há quem se perca, e quem, em certo ponto, começa a girar ao seu redor. É um esforço, porque, aos poucos, as exigências arrastam você a fazer coisas, a voltar para aquele artigo que você está estudando, para aquele problema que está lendo. É preciso muita força de determinação, senão o mundo lhe arrasta.

Como última pergunta, parafraseando o título da nossa revista, perguntamos: como Luciano Floridi vê o “Amanhã”? Quais são as suas esperanças e os seus medos?

Seja qual for a perspectiva a partir da qual se queira ver, espero que o amanhã seja “preenchível”. Não me interessa se o copo vai ficar meio cheio ou meio vazio. Eu só espero que o futuro seja sempre um recipiente a encher.

Com Ailton Krenak

A TERRA PODE DEIXAR-NOS PARA TRÁS E SEGUIR O SEU CAMINHO”

Estamos experienciando a febre do planeta.” "Descolamo-nos do corpo da Terra”, diz Krenak. Fizemos um divórcio, acreditando que poderíamos viver por nós mesmos. Com uma condição: extrair, dominar, explorar tudo o que vem de Gaia. Nos divorciamos desse organismo que nos abriga, mas estamos a todo instante a usurpá-lo. Passados tantos anos, a voz de Ailton Krenak segue sendo urgente e ecoante. Em 2019, escreveu o livro Ideias para Adiar o Fim do Mundo, um dos lidos no país no ano passado. Nas 88 páginas, propõe uma nova forma de consumo e de existência, guiada por uma visão cósmica do mundo. Mais próxima da natureza, menos sedenta por dinheiro, poder e domínio. Neste ano, lançou A Vida Não É Útil, um compilado de entrevistas e lives dadas por Krenak e transformadas em texto já no período da pandemia. No livro, destaca a ideia da profunda desconexão do ser humano com o organismo Terra, provocando reflexões sobre a centralidade da espécie humana e a forma como estamos nos relacionando com o planeta. A entrevista é de Anna Ortega, publicada por Jornal da UFRGS /IHU

Que humanidade somos hoje?

Somos uma humanidade complexa e diversa. Ela tem aquelas qualidades que nós gostaríamos às vezes que fossem presentes ao nosso redor: a complexidade e a pluralidade. Mas essa humanidade, exatamente por ter uma condição plural, não constitui uma comunidade. Poderia dizer que hoje estamos perplexos, porque nós não conseguimos ter uma unidade de propósito e estamos passando por crises sucessivas. Crise ambiental, climática, econômica. É também uma crise de paradigma.

Entre essas crises, estamos experienciando a pandemia. Em A Vida Não É Útil, tu destacas o facto de o coronavírus adoecer apenas seres humanos. O que isso pode nos dizer?

A Terra seguir seu caminho é uma possibilidade de desafiar a centralidade que o ser humano se pretende. Faz com o que essa centralidade seja posta em questão. É a ideia do Antropoceno [teoria de que as ações humanas mudaram profundamente o funcionamento do planeta e que isso constituiria uma nova era geológica]. Então, se o pensamento dos seres humanos acerca da vida aqui no planeta ficou tão atomizado ao ponto de nós ameaçarmos as outras existências, a Terra pode nos deixar para trás e seguir o seu caminho. Gaia é esse organismo vivo, inteligente, e que não vai ficar subordinado a uma lógica antropocêntrica. Ele dispensa a gente. Essa compreensão parece uma ideia mágica, romântica, mas muitos cientistas consideram a Teoria de Gaia [a ideia de que a Terra é um organismo vivo] ser real. Inclusive, os eventos que estamos passando agora são indicativos de que esse organismo está reagindo. Estamos experienciando a febre do planeta. O organismo de Gaia está com febre porque nós, os humanos, somos os únicos que temos a capacidade de incidir sobre esse organismo de maneira desordenada. E estamos ameaçando outras vidas, outras existências, causando uma febre neste organismo. É muito didático, não é uma teoria complicada. Nós estamos desorganizando a vida aqui no planeta, e as consequências disso podem afetar a ideia de um futuro comum – no sentido de a gente não ter futuro aqui junto aos outros seres. Os humanos serem finalmente incluídos na lista de espécies em extinção.

O ser humano é tão concentrado em si que quando vê povos conectados com a natureza chama isso de “alienação” – em algumas passagens de A Vida Não É Útil, em que falas sobre o rio ser um avô, as montanhas serem avós. E como esse parentesco com o que não é humano é visto com desconfiança por muitos indivíduos! Por que isso causa estranhamento?

Parece que esse descolamento do humano desse grande organismo da Terra do qual nós somos parte aconteceu ao longo da história em diversos movimentos. O mais significativo deles talvez tenha sido a agricultura, o evento dos humanos dominarem essa atividade. O Harari, autor de Sapiens, diz que quando o Homo Sapiens descobriu que ele poderia dominar um ciclo de reprodução da natureza, como a agricultura, ele ficou meio convencido de que ele se separar da Terra. Antes ele tinha que subir nas árvores, correr com os outros primatas, fugir do tigre e do leão. Esse poema tão lindo lembra que a gente pode ser vida junto com os outros seres. Vida indistinta. Apenas vida. Mas quando nós ficamos na forma humana – esse antropomorfo -, quando nos percebemos nessa forma, começamos a nos descolar da Mãe Terra. O ser humano discrimina os irmãos, as outras espécies. Outro dia entrei em contato com essa expressão: “especificação”. É quando a ideia de espécie começa a ganhar força no pensamento dos primeiros humanos. Eles começam a conceber a ideia de espécie e decidem discriminar. Muito provavelmente esse racismo estrutural a que chegamos no século XXI, que atravessa várias camadas de violência contra um mesmo corpo, tende a ser constituído por uma espécie de Homo Sapiens 5.0. Ele foi piorando, piorando, piorando, até causar a febre da terra. Mas primeiro ele teve de piorar a si mesmo, ao ponto de ele não se reconhecer no outro, em outros seres. E não têm outros. Só tem o humano. Então, essa excessiva afirmação do ser humano nos colocou um dilema, que é: como recuperar o contato, o afeto – com montanhas, com rios, com floresta? Com um micro-organismo, que pode ser até este vírus, que causou a suspensão do tempo, da vida de muito gente, que é a pandemia. O evento da pandemia foi visto, principalmente, como “terrível ameaça contra o humano”. Claro, o humano estava tão confortável no lugar de dominante que um vírus desestabilizou essa confiança tétrica. Quebrou essa confiança. Um possível gesto de abrir o contato e conhecer o que estava se passando se transformou em uma reação bélica, uma guerra. O termo mais comum era “uma guerra contra o vírus”. Os próprios cientistas falavam que estavam na guerra. Houve um enrijecimento do campo energético para lidar com isso como um confronto, como se fosse apocalíptico. Mas não houve muitos gestos de dizer: vamos conhecer esse organismo invisível, que tem a capacidade de causar tanta mudança? O único gesto em direção ao vírus era/é para controlar ele. Erradicar. Eliminar. Os termos eram/são estes. Eu achei muito interessante que as pessoas simpáticas que a gente conhece das mídias se tornaram, de uma hora para outra, verdadeiros comandantes de batalha. Aí você fica olhando e pensando como que, rapidamente, todo mundo se transforma em um general. Esse discurso bélico que a busca da vacina restaurou é como se tivéssemos uma declaração de que o inimigo está dentro de casa. Ora, não tem fora de casa. No organismo da Terra, a biosfera do planeta não tem externalidade. As empresas costumam deixar fora de suas contabilidades os danos que elas causam. Eu estou à margem do Rio Doce, na Terra Indígena Krenak, onde nosso rio completou cinco anos desde que foi anulado pela lama da mineração. À minha direita agora está passando um caminhão pipa. Se eu virar a câmara para lá, você vai ver um caminhão pipa. Você está ouvindo ele tocar uma sirene? Sim, escuto É como se nós estivéssemos em um campo de refugiados. Só que em casa. Você acorda de manhã com essa coisa. E isso aqui é zona rural, é uma reserva indígena. A semana passada dei uma entrevista para um jornal e disse que nosso território havia virado um “Rally das empreiteiras”. Foi uma imagem que me ocorreu por conta desse tanto de caminhão, de máquinas, tratores, retroescavadeiras. Sabe aquelas máquinas que se usam para abrir barragens e fazer rodovias? Elas estão aqui dentro. Tem uma coleção de máquinas dessas, contratadas pela Vale do Rio Doce, por meio da fundação Renova, supostamente para nos ajudar. [risos]

E há algum diálogo com o povo Krenak?

Eles [empreiteiros] não compartilham o planeamento das ações que fazem aqui dentro com a gente. Eles nos invadem. As máquinas entram, viram tudo de cabeça para baixo, e vão embora. Os engenheiros deles não conversam com a gente, não dialogam. Eu fico me sentindo invadido dentro do nosso próprio território. Por isso que eu disse que estamos vivendo uma condição de refugiados domésticos.

Todas essas atividades predatórias me lembram a imagem que falas sobre o progresso. O progresso como uma flecha. Poderia falar sobre isso?

Esse grande ecossitema da nossa Mãe Terra não tem externalidade. Por isso que eu citei o caso da mineração. Claro, têm muitas atividades que são consideradas importantes. A agricultura, por exemplo. Esta que começou nosso divórcio com Terra, quando os humanos achavam que poderiam dominar tudo. Mas depois tem um outro período que chamamos de modernidade, que ajustou os termos desse divórcio, estabelecendo uma lógica, uma racionalidade que sugere que o tempo é uma prospecção, é uma flecha. E nós, os humanos, vamos tomar essa flecha como uma medida de sucesso, de realização, de empreendimento, onde a vida passa a ser calculada e pode ser capturada pelo enunciando de que “tempo é dinheiro”. Ora, essa ideia do tempo como uma medida e da vida como algo que pode ser controlado por um processo que pode ser calculado monetariamente, tudo isso me obrigou a refletir sobre esse descolamento que nós passamos em relação a nossa Mãe Terra. Um contingente muito numeroso disso que chamamos de população do planeta, 7 bilhões e tanto de pessoas, vive rotinas alienadas ou alienantes, em que de manhã elas sequer olham onde estão. Não olham se o céu está nublado, se vai chover. Muitas, inclusive, nem olham o céu, porque vivem em condições urbanas e de condicionamento. Entram e saem de caixas. Tem um homem nativo das Ilhas do Pacífico Sul que refletiu sobre essa humanidade que vive caixinhas. Um livro dele se chama O Papalagui. É a história desses humanos que esqueceram que podem andar na terra, mexer na terra, viver na terra e que, então, decidiram viver em caixinhas. A caixinha é a moradia, o meio de transporte. Você se transporta em uma caixinha que é o carro, que é o avião, que é o metrô. Como esse autor sempre viveu em uma Ilha do Pacífico Sul e sempre viveu no sentido do corpo em liberdade, com o vento, com o mar, ele achou muito escandaloso quando o missionário o levou à Holanda na década de 1960. Ele achou um escândalo. Saiu de uma aldeia, de um lugar que permitia observar que estávamos indo para um caminho errado. Ele observou isso cerca de sessenta anos atrás. Na mesma época em que o poeta Drummond escrevia o poema “O homem e as suas viagens”. É um poema muito bonito do Drummond e que mostra esse descolamento do corpo da Mãe Terra, como se fosse uma propulsão para ele voar daqui para outro lugar. E esse humano realizou isso, mandando as primeiras missões à Lua. Finalmente fincando a bandeira na lua. E o poema fala sobre isso. Ele mostra o descolamento do humano do organismo da Terra quando o humano começa a cogitar colonizar outros planetas fora daqui. Mesmo uma criança já inclui no seu universo de realização a possibilidade de ir colonizar outros mundos. E isso pode ser pior do que o covid-19, do ponto de vista da distopia, pois instala no nosso ser, no nosso coração, o desejo de não estar aqui. Seria como uma mãe, um dia pela manhã, reunir os filhos e ela sentir que os filhos estão dizendo: a gente não quer ficar aqui com você. A Terra está ouvindo isso da gente. Ela está sentindo isso da gente. E a maior parte desses filhos não estão nem aí. Eles estão mesmo a fim de ir para Marte. Neste ano, quatro nações distintas investiram para enviar missões ao espaço. Duas eram da Europa, uma dos Estados Unidos e uma dos Emirados Árabes. Ora, em um período de pandemia, de tanta falta de perspectiva, qual o propósito de investir bilhões para enviar estações a Júpiter, a Marte e à Lua. Isso é uma prova do divórcio que a nossa humanidade fez com o corpo da Terra. É uma forçação de barra, tá? Vamos fazer de conta que exista essa Humanidade. Então, se a Terra tiver febre, eles não vão perceber. Aí entra o discurso negacionista, de autoridades, inclusive de gente que ocupa importantes cargos em órgãos multilaterais e que tem a coragem de negar que está havendo uma mudança climática. Tem autoridades que dirigem a vida de um país inteiro e negam. Então, viver uma manhã no seio da Pachamama, da Terra, consciente dessa filiação, é um conforto diante de tanta desolação do ponto de vista ambiental e também do ponto de vista dos sonhos, de pensar mundos.

Porque tanto o progresso-flecha acerta em algum lugar quanto para nave não basta chegar, é preciso fincar a bandeira. A pergunta não é só sobre como ir para Marte, mas como dominar Marte. Por que esse desejo de dominação? Por que o desejo de dominar vem antes do desejo de conhecer?

Alguns pensadores têm sugerido que o Homo Sapiens, essa variante que veio dar nessa humanidade que nós constituímos agora, eliminou os outros possíveis Homos, os outros parentes dele. Quer dizer, ele é um exterminador [risos]. Ele é. E bem-sucedido. Aquele ideia horrorosa do cinema de produzir um Exterminador do Futuro é uma metáfora sobre o homem. O ser humano é o exterminador do futuro em certo sentido. Inclusive, porque não existe futuro – ele é uma construção totalmente mental. O que existe é esta manhã. Entre 8h40 e 10h da manhã que nos possibilita respirar, olhar, sentir o que tem ao nosso redor. E isso constitui um presente. Não existe esse futuro no qual o Homo Sapiens quer fincar uma bandeira e dominar. É uma ilusão. Em algumas tradições, essa pessoa vai ser convidada a meditar, a esvaziar a mente para experimentar um sentido de estar presente, em vez de estar buscando outro lugar, fugindo para outro lugar. Em vez de buscar um lugar para domínio, é necessário esvaziar esse espaço do domínio e ficar no presente. É difícil, mas talvez seja o exercício mais necessário para esse tempo de pandemia. Ele vai nos permitir concluir que, estando aqui e agora, não importa o amanhã. O amanhã não está à venda. Porque, quando você cogita que você pode fazer alguma coisa amanhã, você já está vendendo o amanhã.

Em Ideias para Adiar o Fim do Mundo, tu falas sobre como é muito presente, especialmente dentro dos povos indígenas, a tradição de cantar e dançar, de fruir com a vida. Muitos povos resistem no cantar e dançar a essa lógica da dominação e do progresso. Qual o papel da alegria, desse corpo que dança e canta?

Esse cantar e dançar tem uma qualidade sensível que é de não buscar nada. Você não canta e dança para alguma coisa. Uma imagem que a gente poderia compartilhar é como um Dervish: ele está girando, fazendo aquela dança dele, e não está indo a lugar algum. Ele está centrando, buscando um eixo no qual se esvazia a própria ideia de tempo e de espaço. É um movimento que dança até zerar o espaço e o tempo. Como se fosse um peão. E não é a busca de algo, porque pode parecer que essa dança esteja buscando uma experiência de êxtase, tipo o carnaval. Não é desse canto e dança que a gente está falando. É dele também, porque ele é uma celebração e uma festa, só que produzida. Aqui nós estamos falando de um cantar e dançar para suspender o céu, para instaurar outras subjetividades, outros campos de experiência sútil. É como meditação. Não é como algo que vai acontecer depois. É aqui e agora.

O que tu aprendeste sobre o sonho e o sonhar com os teus mais velhos?

Eu aprendi com os meus mais velhos que o sonho é uma instituição vasta. Se uma pessoa é orientada e introduzida nesse mundo dos sonhos, ele vai poder viver a vida toda – mesmo que viva 100 anos – sem nunca exaurir esse campo de subjetividade, de expansão. O sonho é educativo e promove o que estávamos falando antes, a alegria. Ele anima a experiência da vida como uma evolução, evoluindo de vários estágios, inclusive do corpo. Porque a experiência do corpo deixa de ser só física e passa a ser sensorial. No sonho, é o seu espírito que vai cantar e dançar, mesmo que seu corpo esteja descansando, dormindo. Esse sentido do sonho vai abrir possibilidades singulares para cada indivíduo. Não dá para você imaginar que exista um manual de sonhos. Isso não existe. Se alguém quiser te vender um manual de sonhos, não compre.

Tu contas que a gente “respira e sonha com a Terra”. Com o que sonha a Terra?

O sonho da Terra é uma metamorfose. O que é pedra vira borboleta, o que é pau vira vento, o que é vapor vira chuva, as nuvens despencam em tempestade. Toda essa fantástica movimentação da vida é o sonho da Terra. É a transformação, a metamorfose. Tem um autor que começou a ser divulgado no Brasil agora que se chama Emanuele Coccia. Ele é autor do livro Metamorfose. É um livro que estou considerando uma leitura muito bacana porque ele consegue nos dar um roteiro para entender esse maravilhoso organismo. A vida é um organismo. A Terra é uma materialidade dessa vida. Nosso corpo, assim como o de uma formiga ou de uma borboleta, é a materialidade da vida. A vida passa na gente e vai para outro lugar. Ela não fica parada em lugar algum. Esse sonho da terra é essa vida. A vida maravilhosa. E ela não tem fim. O que Metamorfose traz é uma leitura sobre o darwinismo, sobre a evolução, contrária à ideia comum de que o mundo foi criado – a ideia criacionista, a ideia de que o mundo foi criado e que os humanos receberam o condomínio do mundo para o predar. Essa é a narrativa ocidental. Mas há narrativas de outros povos que podem sugerir que nós tivemos diferentes evoluções e origens, que viemos justamente do sonho da Terra. Esse sonho vivo da Terra.

Com Silvia Ribeiro

MENOS DE 10% DA POPULAÇÃO MUNDIAL CONSOME A MAIOR PARTE DOS RECURSOS NATURAIS

Silvia Ribeiro é diretora para América Latina do Grupo de Ação sobre Erosão, Tecnologia e Concentração (Grupo ETC), organização com status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas. Nascida no Uruguai, vive há mais de duas décadas no México, onde realiza um trabalho reconhecido internacionalmente como ativista social e ambiental. A entrevista é de Santiago Liaudat, com a colaboração de Candela Reinares, publicada na revista argentina CTyP e reproduzida por Rebelión. A tradução é do Cepat /IHU

Você disse que existe uma relação entre o sistema agroalimentar industrial e o surgimento e expansão de doenças, entre elas, a pandemia de coronavírus. Poderia nos explicar como é esta relação?

O sistema alimentar agroindustrial, não o sistema alimentar em geral, mas o agroindustrial, tem um papel central na geração de pandemias, sob vários pontos de vista. Se tomamos os dados oficiais da Organização Mundial da Saúde (OMS), 72% das causas de morte da população mundial são doenças não transmissíveis. E, desse conjunto, mais ou menos a metade delas estão diretamente relacionadas ao sistema alimentar agroindustrial. Por exemplo, as doenças cardiovasculares, que são a causa número um de morte em quase todos os países, estão muito relacionadas ao excesso de colesterol, e, portanto, à forma de alimentação. Mas, além disso, entre as seguintes principais causas de morte encontraremos a diabetes, as doenças renais, vários tipos de câncer associados ao aparelho digestivo, como o câncer de cólon ou de estômago. Precisamos mencionar também a epidemia mundial de obesidade, que está na base de muitas das doenças mencionadas anteriormente. Já faz tempo que, segundo a Organização das Nações Unidas, há mais obesos que famintos. Tudo isso está relacionado ao sistema agroindustrial, à produção e consumo de alimentos ultraprocessados, com baixo nível nutritivo e à apropriação da cadeia agroindustrial por empresas que se preocupam mais em manter uma “longa vida” dos alimentos nas prateleiras, ou o atrativo estético dos produtos, antes que com a qualidade nutritiva em si. Por último, muitas doenças pulmonares estão relacionadas à atividade agroindustrial. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) destaca que, na população rural, sobretudo entre os trabalhadores, o uso de agrotóxicos é uma das principais causas das doenças respiratórias. Por tudo o que foi dito, e ainda que não se possa extrapolar linearmente, afirmamos que parte importante das doenças não transmissíveis estão relacionadas ao sistema alimentar agroindustrial. Por outro lado, temos as mortes por doenças infecciosas, as transmissíveis. Neste momento, como vivemos em uma pandemia, possivelmente seja gerada a falsa imagem de que estas doenças são a maior causa de morte. Mas representam 28%. Pois bem, desse número, segundo a OMS, na última década, 75% têm a ver com doenças zoonóticas. E dentro das zoonóticas, a maioria são doenças relacionadas com a agricultura e a pecuária industrial, como a gripe aviária ou a gripe suína. Inclusive doenças derivadas de animais silvestres, como a COVID-19, tem uma conexão com o sistema alimentar agroindustrial. Por um lado, em razão dos vírus destes animais entrarem em contacto com as “grandes fábricas de pandemia”, que são as instalações de criação de porcos, frangos e bois em grande escala e em confinamento extremo. Grandes quantidades de animais, com sistemas imunológicos muito fragilizados, em que estão sendo geradas, a todo momento, novas cepas de vírus, até que alguma se torne contagiosa para os seres humanos. E tem, além disso, um grande potencial de disseminação internacional, porque são parte de cadeias globais de produção e comercialização. Por outro lado, os micro-organismos potencialmente infecciosos para os seres humanos, que vivem nos animais silvestres, estão em equilíbrio nessas populações. Mas a destruição de ecossistemas rompe esses equilíbrios naturais. E qual é o principal fator de devastação dos ecossistemas? O desmatamento relacionado à expansão da fronteira agrícola. Segundo a FAO, na América Latina, de 70% a 80% do desmatamento está relacionado à expansão da fronteira agropecuária, tanto para pastagens como para plantações. E, destas últimas, quase 60% são destinadas a rações para animais em criadouros industriais. Por tudo isto, as epidemias estão diretamente relacionadas a algum dos fatores dos sistemas alimentar-agroindustriais. O que está documentado, entre outros, por Rob Wallace em seu livro “Grandes granjas, grandes gripes”. Conectar todos estes pontos é o que faz com que, apesar da COVID-19 vir de um morcego, o fator principal continua sendo o sistema alimentar agroindustrial.

Como analisa a fusão corporativa de empresas agroalimentares com companhias farmacêuticas, químicas e biotecnológicas? Qual é a relação entre o sistema agroalimentar industrial e o controle sobre estas áreas científicas e tecnológicas?

A indústria química, a farmacêutica e a agropecuária industrial estão historicamente entrelaçadas, através dos agroquímicos e produtos farmacológicos. Nas últimas décadas, soma-se a estas indústrias tradicionais a biotecnologia, com as sementes transgênicas e outros produtos. Muitos dos novos empreendimentos biotecnológicos estavam vinculados ao setor farmacêutico e ao agronegócio ao mesmo tempo, ou derivam diretamente do farmacêutico. Ao passo que outras pequenas empresas biotecnológicas, as conhecidas como “empresas startups”, acabam sendo absorvidas pelas grandes multinacionais. Ou seja, estes quatro setores, químico, farmacêutico, agroindustrial e biotecnológico são da mesma matriz. Ultimamente, com a compra da Monsanto pela Bayer, ficou muito claro esta relação entre setores, porque todo mundo sabe quem é a Bayer e quem é a Monsanto. Mas sempre estiveram entrelaçadas, só que se juntam ou se separam conforme convém ao mercado no momento. Por exemplo, há vinte ou trinta anos, ocorreu uma separação entre as farmacêuticas e as empresas de sementes transgênicas, porque estas foram muito questionadas e combatidas, em nível mundial. Então, as farmacêuticas quiseram cuidar dessa má reputação, razão pela qual a separação foi de tipo comercial. Nos últimos tempos, ao contrário, voltaram a se juntar no marco de uma rodada de fusões das empresas de agronegócios. Vou dar outro exemplo que apresentamos em um relatório do Grupo ETC. Neste momento, quatro empresas transnacionais têm cerca de 60% do mercado global de sementes e agrotóxicos. A primeira é a Bayer, uma farmacêutica que acaba de comprar a Monsanto. A segunda é a Corteva, que provém da Dupont e da Dow, companhias que também possuem o seu ramo farmacêutico. Depois vem a Basf, que também está no setor veterinário e farmacêutico, além no de sementes e agroquímicos. Por fim, a Syngenta, origem direta na indústria farmacêutica, já que é uma divisão agrícola que se forma com a fusão da Novartis e AstraZeneca. Este exemplo do setor das sementes é muito interessante para dar um panorama dos efeitos da concentração global. Se voltarmos quarenta anos, existiam sete mil empresas de semente no mundo, e nenhuma chegava a 1% do mercado. Então, as empresas fabricantes de produtos químicos, que por sua vez eram farmacêuticas, começam a comprar as empresas de semente. Vão desaparecendo as empresas nacionais, que tinham majoritariamente uma origem familiar. Por que compraram todas as empresas de sementes? Para criar uma dependência a seus produtos químicos. A expressão máxima disso são as sementes transgênicas, que requerem um produto agroquímico em especial que é comercializado pela mesma empresa que vende a semente. Assim fecham o círculo.

Qual é o papel dos direitos de propriedade intelectual na dinâmica destas companhias globais? A quem beneficia a expansão da propriedade intelectual e que função tem no capitalismo globalizado?

A propriedade intelectual é fundamental no domínio de mercado e no processo de fusões corporativas. As grandes empresas farmacêuticas e biotecnológicas, que eram praticamente da mesma matriz, são as que lutaram para impor sistemas de propriedade intelectual sobre os seres vivos. Pressionaram sobre o que era o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês), que depois, a partir de 1995, se tornou a Organização Mundial do Comércio. Lá pelos anos 1980 e inícios dos anos 1990, influenciaram nas rodadas do GATT para impor um sistema de propriedade intelectual que validasse que suas sementes fossem patenteadas. Em termos históricos, este processo de privatização é muito recente. A agricultura tem milhões de anos. E somente há poucas décadas as sementes começaram a ser registradas com patentes. Antes disso, até inícios dos anos 1980, eram de livre circulação. O número de sementes com registros ou patenteadas era muito baixo, na ordem de 5%. Neste processo, há dois marcos fundamentais ocorridos nos Estados Unidos, no ano 1980. Em primeiro lugar, a sentença da Suprema Corte dos Estados Unidos, no julgamento Diamond vs. Chakrabarty. Ali, permite-se o patenteamento sobre um micróbio transgênico que se afirmava que era capaz de comer petróleo. Esta famosa sentença abre o antecedente jurídico para as mudanças legislativas que viriam depois, permitindo patentes sobre seres vivos. Em segundo lugar, a sanção da Lei Bayh-Dole, que permite o patenteamento dos processos e produtos obtidos em universidades e centros de pesquisa públicos. Até então, compreendia-se que se esses estudos eram financiados com fundos públicos, deveriam ser bens públicos. É uma mudança de concepção muito perversa. As pesquisas públicas passam a ter fins lucrativos e deixam de ser abertas. O que afeta, é claro, a própria produção de conhecimento, que antes funcionava melhor que agora. Finalmente, quando se instaura a propriedade intelectual sobre as sementes, ficam estabelecidos dois mecanismos. Por um lado, as patentes sobre seres vivos, respaldadas pelo Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao Comércio (ADPIC), da Organização Mundial do Comércio. Por outro, os certificados de obtentor da União para a Proteção das Obtenções Vegetais (UPOV). Trata-se de um organismo que já existia antes, mas, em 1991, é sancionada uma nova normativa conhecida como UPOV91, que é muito mais restritiva que as anteriores. Estes dois mecanismos de propriedade intelectual tiveram um impacto muito nocivo em termos de privatização, tanto dos conhecimentos, como das sementes. Em definitivo, tanto as fusões corporativas, como a restrição ao acesso a sementes e tecnologia, por meio da propriedade intelectual, servem às empresas transnacionais para exercer um controle de mercado.

Isto se relaciona à crescente pressão sobre cientistas, tecnólogos e instituições públicas para patentear conhecimentos?

Efetivamente. Tudo o que foi dito se traduz em uma pressão sobre pesquisadores do âmbito público, que começaram a ver que a qualidade de sua atividade se media pela quantidade de patentes. É uma aberração avaliar os cientistas pela quantidade de patentes! Devemos pensar sistemas de reconhecimento que não impliquem patenteamentos. O sistema de patentes é funcional aos países do norte global e às empresas transnacionais. Os dados da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD, na sigla em inglês) destacam que mais de 90% das patentes registradas no mundo são de países do norte global e mais de 75% são de empresas transnacionais. Está claro que é um sistema que favorece estes atores. Além disso, as patentes não se vinculam mais diretamente à inovação. Registrar uma patente é parte das estratégias das grandes empresas para obstruir que outra companhia pesquise o mesmo ou impedir que entre em um mercado. De fato, a maioria das patentes nunca são aplicadas. Por tudo isto, no Grupo ETC, pensamos que todo o sistema de propriedade intelectual não é um sistema de proteção, mas de privatização. Portanto, somos contra todo tipo de propriedade intelectual. Por isso, os materiais que geramos são de livre acesso. Acreditamos que é preciso buscar formas não privatizadas de reconhecimento das pesquisas e desenvolvimentos.

A publicidade destas grandes corporações as apresenta como a base da alimentação mundial. Este discurso tem permeado fortemente gestores públicos, meios de comunicação, profissionais e técnicos agrícolas, universidades e produtores rurais. O que há de correto nessa afirmação?

Esse é um dos muitos mitos com os quais se sustenta o sistema alimentar agroindustrial. Dizem: “bom, pode ter alguns defeitos, tem agrotóxicos, é venenoso, está ultraprocessado, mas não podemos sobreviver sem isso, porque produz a maior parte dos alimentos”. Isso é uma mentira! Desenvolvemos um material de referência em que realizamos uma comparação entre a cadeia agroindustrial e as redes de produção camponesa. E o que acontece é que as cadeias alimentares agroindustriais produzem efetivamente uma grande quantidade de grãos. Mas, se analisamos país por país, em quase todo o mundo, as hortaliças são produzidas na média e, sobretudo, na pequena agricultura. O mesmo acontece com a produção de leite. A grande produção agrícola produz principalmente uma grande quantidade de cereais para a ração, a maioria destinado à criação industrial de animais. Além de outros cultivos de exportação, que não são a base da alimentação, como o café e o açúcar. A agricultura industrial, além disso, tem um enorme grau de desperdício. Segundo dados da FAO, da semente aos lares, ocorre até 50% de desperdício. Por último, a alimentação baseada nesta forma de produção gera nas pessoas doenças como obesidade, colesterol, hipertensão, doenças cardiovasculares. Ou seja, na realidade, não é alimentação, mas excesso que não consideramos que deva ser chamado de alimentação, porque não nutre e adoece. Então, caso se faça o cálculo do impacto que tem tudo isto, constatamos que a cadeia alimentar agroindustrial somente alimenta, no sentido de nutrição saudável, o equivalente a 30% da população mundial. E para isso usam mais de 75% da terra agrícola, mais de 80% da água agrícola e mais de 90% de todos os combustíveis que são utilizados na agricultura. Usam a grande maioria dos recursos agrícolas, mas produzem um enorme desperdício e o que não é desperdício é excesso, devido ao vício produzido pelos alimentos processados industrialmente e a doença. Do outro lado, estão as redes campesinas que, com muito menos recursos, alimentam 70% restante da população. Com estes dados cai outro mito que ressalta que a produção agroindustrial é eficiente e a pequena produção, não. É totalmente o contrário. O problema é o que e como se mede. Também há um mito de tipo malthusiano que diz: “a população cresce a tal ou qual velocidade, portanto, a expansão da produção de alimentos deve acompanhar essa taxa de crescimento para que não haja fome”. Com esse discurso, legitimam o desmatamento, a monocultura... É um discurso gravemente preconceituoso. Quando se fala de qual é o problema da população, devemos partir da consideração de que a maior parte dos recursos naturais no mundo é consumido por menos de 10% da população mundial. Então, falar em termos de população, em abstrato, é uma falácia. Em relação à alimentação, neste momento, são produzidos mais do que o dobro dos cereais que são necessários para alimentar toda a população... em 2050! A razão pela qual não é suficiente é porque a maior parte é destinada para alimentar porcos, frangos e bois em confinamento. O desperdício é enorme. Na produção de um porco industrial, por exemplo, calcula-se que chega como alimento às pessoas apenas de 5% a 10% da energia investida. Em termos de uso de energia, a produção industrial de carne é muito ineficiente. Esclareço que não me oponho ao consumo de carne. Mas é preciso ver o modo como é produzida. Porque é evidente que a alimentação com base em plantas é muito mais eficiente do ponto de vista energético, sobretudo quando se produz localmente. Para entender isto, é importante levar em conta o chamado “efeito diluição”. Porque às vezes se acredita que mais quantidade sempre é melhor. Por exemplo, pode ocorrer que a agricultura agroindustrial obtenha o dobro de toneladas por hectare frente a outras formas de produção orgânicas, camponesas, locais. Mas quando analisamos o valor nutricional dos alimentos, quando avaliamos o tempo de viagem, o gasto energético, ocorre que estas últimas são muito mais nutritivas e mais eficientes que os agronegócios. Nas monoculturas são produzidas mais plantas de um só cultivo por unidade de superfície, mas os nutrientes do solo se diluem, por isso se chama “efeito diluição”. Por isso, é muito importante o que dizia antes, ver como e o que se mede. Por exemplo, nos sítios do México, a pequena agricultura não cultiva uma só coisa, mas existe diversidade. Então, quando se faz a comparação entre a grande e a pequena produção, se mede só o milho, para mostrar a diferença em quantidade de produto obtido. Mas, na realidade, na produção camponesa temos sistemas integrados de milho com feijão, com abóbora, com pequenas hortaliças. Caso mudemos a visão e olhemos para a integralidade, vemos que a produtividade das pequenas propriedades é muito maior que a dos agronegócios. Não se deve olhar só para o volume de um determinado cultivo, mas a produtividade total do terreno. Há um trabalho de Peter Rosset, entre outros, que fornece evidências substantivas nesse sentido.

Sem dúvidas, a agroecologia é uma alternativa ambientalmente sustentável ao modelo de agronegócios com base química-industrial. Mas... pode ser também uma opção em termos econômicos para países como a Argentina, altamente dependentes do ingresso de dinheiro por exportações de grãos?

Sim, a resposta é definitivamente sim. Neste momento, na Argentina, após três décadas de agronegócio, há 40% de pobres. Então, de que desenvolvimento estamos falando? A quem enriqueceu essa entrada de dinheiro? Se só olhamos números agregados como a quantidade de dinheiro que entra no país ou os dólares per capita, não estamos dando conta do que realmente ocorre. Esse tipo de produção em grande escala, uniformizado, é realmente argentino? Se olhamos para dentro da produção agropecuária argentina, o quanto é nacional, veremos que a maior parte é controlada por empresas globais transnacionais, em cada um dos setores da cadeia. Ou seja, da semente à distribuição, o armazenamento, o processamento, a comercialização. O que é que a Argentina põe? A terra, o trabalho mal remunerado, os povos fumigados, as doenças, a erosão, a contaminação e... para quem fica o dinheiro da exportação? É claro que algo disso paga impostos. A Argentina é um dos países onde se paga impostos pela exportação agrícola, mas na maioria dos outros países de agricultura industrial mal são pagos ou diretamente não pagam impostos. É um mecanismo sumamente perverso. Uma roda que faz com que as transnacionais ganhem muito, mas que chegue pouquinho lá embaixo e que a maioria das pessoas sejam pobres. Tudo com um enorme custo em matéria de devastação ambiental, doenças e contaminação por agrotóxicos. Como disse Walter Pengue, a Argentina sofreu, nas últimas décadas, uma reforma agrária ao avesso, com uma enorme redução de estabelecimentos agropecuários, despovoamento do campo, etc. Toda essa gente foi parar nos cordões de pobreza das grandes cidades. A Argentina poderia ampliar a agricultura orgânica ou agroecologia, inclusive de forma descentralizada e em pequenas parcelas, e pelas condições naturais do país, poderia ter uma produção alta e inclusive exportar. Por sua vocação agrícola, por suas características geoclimáticas e históricas, a Argentina poderia ter excedentes muito importantes para exportação. Além disso, o fato de que conjunturalmente os produtos agroecológicos estejam mais bem pagos no mercado internacional, torna-os uma opção ainda mais viável. Mas penso que o fundamental é repensar as prioridades. A primeira coisa deveria ser produzir para uma alimentação nacional sadia e suficiente, depois ver os excedentes que podem ter uma saída no mercado internacional. É preciso apontar para um desenvolvimento endógeno que esteja baseado no bem-estar da população, tanto na alimentação como em saúde. Isso traria uma equação completamente diferente em favor da produção agroecológica. O problema é que os grandes ganhadores nacionais e transnacionais do modelo agroindustrial não o permitem.

Conhece experiências, especialmente na América Latina, em que a ciência e a tecnologia ofereçam um apoio valioso às redes campesinas e a produção popular de alimentos? O que seria possível fazer para que essa contribuição seja ainda mais substantiva e transversal em diferentes áreas científicas e tecnológicas?

Há uma contribuição histórica vinculada aos setores de extensão das faculdades de agronomia e da pesquisa agrícola pública. Há muitas demonstrações de que pode haver uma relação muito frutífera. Por exemplo, instituições públicas de pesquisa que trabalham junto com os produtores para desenvolver sementes adaptadas a certos climas, situações e necessidades. Mas tudo isto vem sofrendo um desmantelamento e privatização na América Latina, há ao menos trinta anos. Embora em alguns lugares existem lutas para que existam e conseguem sobreviver. O que contávamos sobre as patentes é justamente uma das coisas que começa a esvaziar este tipo de relação. Porque essas sementes e variedades eram públicas, de livre circulação. Os sistemas de extensão rural também mudaram. Os agrônomos que trabalhavam junto com os camponeses ou produtores começaram a ser substituídos por vendedores das empresas. As empresas chegam diretamente até o produtor e dizem que convém usar o veneno que elas oferecem. E que, com esse produto, irá funcionar bem a semente que elas vendem. Vou contar um exemplo que me surpreendeu e que é desconhecido. Nas cidades, segundo o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), produz-se de 15% a 20% dos alimentos. É muitíssimo! Isto desmantela outro mito do sistema alimentar agroindustrial. Em geral, pensa-se que as hortas urbanas são algo marginal, para hippies ou ambientalistas. Na realidade, em todo o mundo, as hortas urbanas, justamente pela migração que houve do campo para a cidade, produto do sistema agroindustrial, têm um papel muito importante também na alimentação. Bom... qual é a cidade do mundo com a maior agricultura urbana? Rosário, em Santa Fé, Argentina. A razão é que houve um programa antigo mediante o qual o INTA promovia a criação de agricultura urbana. Há outros exemplos, claro. Por um lado, frente ao desmantelamento das instituições públicas, surgem muitas organizações não governamentais ou organizações independentes de pesquisa, como o Grupo ETC, que fazem um trabalho muito bom, muitas vezes, em colaboração com instituições públicas, mas sem as restrições que às vezes são impostas nesses âmbitos. Por outro lado, existe a Sociedade Científica Latino-Americana de Agroecologia (SOCLA), que reúne muita gente trabalhando de diferentes universidades e instituições cientificas e onde há muitos exemplos de apoio entre tais tipos de pesquisadores críticos e associações de pequenos produtores e camponeses. Outro exemplo é a União de Cientistas Comprometidos com a Sociedade e a Natureza da América Latina (UCCSNAL), uma rede de pesquisadores que, inspirados em Andrés Carrasco, consideram que a ciência pode e deve contribuir com conhecimentos necessários para a maior parte da população. Um último exemplo é a contribuição dada por profissionais das Universidades Nacionais de Rosário e La Plata para apresentar em números os impactos da agricultura industrial nas províncias argentinas em que a produção de soja transgênica é mais intensa. Trata-se de uma contribuição extraordinariamente importante! São estudos e iniciativas, como os acampamentos sanitários, que colaboram para que as pessoas saibam que o que está acontecendo com elas não é um problema individual ou familiar, ou que tiveram má sorte porque tiveram câncer, mas é consequência de um modelo de produção. Isso seria impossível se de fazer sem a colaboração destes cientistas e pesquisadores críticos que estão trabalhando junto com as populações afetadas. E também devemos nomear as ciências sociais, que nos ajudam a entender as dinâmicas que estamos descrevendo.

A Ciência e a Tecnologia estão na base das modernas técnicas de exploração e manipulação da natureza. Mas também nos permitem conhecer, prever e agir. São parte ao mesmo tempo do problema e da solução da crise ambiental? Como seria possível gerar uma maior responsabilidade social, ambiental e política no setor de Ciência e Tecnologia?

Por tudo o que são as pressões empresariais, que também se manifestam através de políticas públicas sobre a pesquisa, é fundamental o pensamento crítico através de organizações como a UCCSNAL e a Rede PLACTS. Ou seja, que os próprios pesquisadores e as pessoas que trabalham na academia pensem criticamente qual é o papel da ciência e da tecnologia. Porque é fácil pensar que a ciência e a tecnologia estão somente a serviço das transnacionais e, na realidade, na maioria dos casos, não é assim ou não é o que se pretende. Mas é necessário um pensamento crítico de dentro das instituições para conceber um tipo de pesquisa e de resultados completamente diferentes, que tenham a ver com o bem-estar da maioria da sociedade. Algo tão simples como isso, nesses dias, nem sequer se leva em conta. A esse respeito, gostaria de mencionar algo que iniciamos a partir do Grupo ETC, mas com muitas outras organizações. Chama-se Rede de Avaliação Social das Tecnologias na América Latina (Rede TECLA). Ainda que seja modesto, porque praticamente não temos fundos e se baseia na colaboração das instituições e nas organizações em que estamos, é um enfoque que tem a ver com como podemos criar uma plataforma de análise que integre perspectivas, visões e necessidades que vão do acadêmico e o técnico, com cientistas e tecnólogos de diferentes disciplinas, à visão das organizações camponesas, ambientalistas, de mulheres, de indígenas, de trabalhadores. Não vemos tanto esta rede como uma organização, mas como uma plataforma, é um lugar onde buscamos promover essa confluência. Outro exemplo que gostaria de mencionar é algo muito interessante ocorrido no México. A partir de um estudo realizado pelo atual governo desse país, descobriu-se que o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CONACYT) contribuía com milhares de milhões de pesos... para empresas transnacionais de pesquisa! E não é só uma questão de dinheiro, mas, claro, estas coisas favorecem que as pesquisas críticas tenham menos recursos e mais dificuldades. Então, acredito que é muito importante a promoção de mudanças de dentro das instituições. Tudo isto tem muito a ver com o conceito da ciência digna que foi pensado por Andrés Carrasco. Felizmente, estão crescendo as associações de cientistas críticos em todas as disciplinas. Além disso, são interdisciplinares. Existe uma contribuição aí que é fundamental para analisar, entender, questionar as políticas dentro das academias, das instituições, etc. E, por último, o reconhecimento de outras formas de conhecimento. Não precisamos chamar tudo pelo mesmo nome, não precisamos chamar tudo de “ciência”. Mas é muito importante a interlocução com outas formas de produção de conhecimento. Há todo um conhecimento ambiental muito sofisticado, por exemplo, que provém do conhecimento tradicional, das comunidades locais. Temos um exemplo recente de articulação no México que é muito bom. Existe o que se chama de Assembleia Nacional de Afetados Ambientais (ANAA). Há uns quinze anos, começaram reunindo pessoas afetadas por fumigações, por lixões, por contaminação. A UCCSNAL fez um importante trabalho em conjunto com a ANAA, cujos temas e relatórios foram retomados para alimentar um dos Programas Nacionais Estratégicos do CONACYT sobre toxicidades. A contribuição das populações nestes temas é imprescindível. Quando em um lugar as pessoas têm o problema de uma instalação poluente, desenvolve uma experiência, adquire muitíssimo conhecimento, porque teve contato, buscou averiguar, reúne informação do que está acontecendo. Mas, muitas vezes, ainda faltam elementos do ponto de vista técnico e científico. Por isso, tal tipo de colaboração é fundamental, e além disso nutre muito as duas partes. Certamente, há outros exemplos na América Latina, no mesmo sentido.

Nos países periféricos, muitos conflitos socioambientais são atravessados por uma dicotomia. Por um lado, a possibilidade de atrair investimentos, gerar dinheiro e criar emprego. Por outro, as consequências socioambientais que geram. O que há de certo nesse dilema e no que a ciência e a tecnologia podem contribuir para superá-lo?

É sobretudo uma dicotomia assentada em mitos. Particularmente, neste momento em que estamos em uma pandemia que mexeu com todas as economias do mundo, e particularmente impactou as nossas economias do sul, do terceiro mundo. Como dizia no início, a pandemia está diretamente relacionada ao sistema alimentar agroindustrial. Razão pela qual pensar em ampliar os riscos a partir da mesma base que criou o que está acontecendo é demencial. Por exemplo, o recente anúncio de investimentos para megacriadouros de porcos na Argentina. É o tipo de produção que gerou a gripe suína. Quanta gente sabe que neste momento há uma nova cepa de gripe suína na China, que ainda não proliferou? Na realidade, há 179 novas cepas, mas há uma que é altamente contagiosa e que tem características para se desenvolver como pandêmica. Como a China quer abrandar seus riscos, a transfere para outro país e, ironicamente, o governo da Argentina vê isso como se fosse desenvolvimento. Na realidade, o que esse investimento trará é muito pouco trabalho, novas doenças e uma enorme quantidade de contaminação. E esse mesmo volume de investimento poderia estar dedicando à produção descentralizada, agropecuária e de transformação de pequenas agroindústrias, que dariam muitíssimo mais trabalho, mas sobre a base de garantir uma boa alimentação e, sobretudo, não produziriam novos problemas de saúde. Falei da Argentina porque é um caso recente, mas poderíamos mencionar as fábricas de celulose no Uruguai, ou qualquer um destes grandes projetos. Está errado o modo de pensar o tema do investimento estrangeiro. Quando já vem definido de fora, o que buscam é retirar mais do que trouxeram, aumentar os lucros das empresas transnacionais. E o que deixam? Algumas migalhas frente ao impacto social e ambiental. É preciso pensar em formas de desenvolver, em nível nacional, uma produção muito mais diversificada e integrada. A ciência e a tecnologia podem contribuir para analisar para onde realmente vai e a quem beneficia tais tipos de projetos de grandes investimentos estrangeiros, além dos efeitos sociais e ambientais que tem. E, é claro, pode contribuir para agregar valor na origem, sempre em conjunto com os conhecimentos que já existem distribuídos entre as pessoas, nas e nos produtores.

A urgência em resolver os déficits sociais privilegiando o crescimento econômico e relegando a questão ambiental foi e é um dilema para os governos progressistas de nossa região. Crescimento econômico é sinônimo de desenvolvimento? Que parâmetros deveriam ser considerados?

Está claro que o crescimento econômico não é o mesmo que desenvolvimento. Pode até ser o contrário! Por exemplo, todo o crescimento econômico que vimos nas últimas duas décadas, na América Latina, inclusive em nível mundial..., levou a maior desigualdade social da história! Então, temos que começar a pensar em formas de desenvolvimento que tenham a ver com a integração de todos os fatores sociais e ambientais, que façam com que o núcleo desse “desenvolvimento” seja o bem-estar das pessoas, da maioria, de todos e todas, mas sobretudo das maiorias. Esse momento deveria ser aproveitado para, justamente, estimular um desenvolvimento baseado no bem-estar social e na integração com os ecossistemas e com a natureza, com a recuperação da biodiversidade, etc. A política pública deveria apontar nesse sentido. Mas, lamentavelmente, a maioria dos Estados aponta para uma recuperação pelas mãos do grande capital transnacional.

Existe um ecologismo despolitizado ligado, quando não exclusivamente, a condutas individuais ou ao chamado “capitalismo verde”. Considera que a pandemia produziu alguma mudança favorável na consciência social e política acerca das causas estruturais da problemática ambiental?

Não sei se houve uma mudança favorável, mas, sem dúvidas, deveria haver. O sistema atual baseado nas transnacionais e o peso que têm sobre as políticas públicas, que conduz a uma falta de políticas para o bem-estar da maioria das pessoas, mostra que estamos em um caminho realmente perigoso. É espantoso ver Bill Gates, um dos oito homens mais ricos do mundo, dizendo que haverá novas pandemias, e que então é preciso preparar vacinas. É um enfoque sumamente estreito, porque não diz nada em relação às causas. Veem nas pandemias a possibilidade de criar um mercado cativo. Nesse sentido, o que o capitalismo verde está fazendo é ver como é possível fazer mais negócios sobre as próprias crises criadas pelo capitalismo. Isto é terrivelmente nocivo, porque em vez de atacar as causas, sempre está criando novos negócios sobre os desastres, sobre as catástrofes. É o que está acontecendo, neste momento, em muitos planos. Acredito que há uma mudança favorável na consciência acerca de que os sistemas de produção estão ligados à saúde. Existe uma crise de saúde há muito tempo, mas agora fica mais claro, e que não é possível ser separada da crise da biodiversidade. Nesse sentido, por exemplo, um relatório recente do PNUD e da ONU Ambiente afirma que as pandemias vão continuar se repetindo, caso não haja um cuidado com a biodiversidade. E também fala do sistema agropecuário industrial e do impacto que tem. Nesse ponto, sim, houve um avanço. Mas é preciso ter clareza de que é necessário insistir justamente para não cair nesta nova onda de “capitalismo verde” ou nesta espécie de “capitalismo de arrumações tecnológicas”, em que se acredita que a solução está nas vacinas. É a mesma ideia de fazer novos negócios com as catástrofes que as próprias empresas criam, sem questionar em nada o sistema que criou esses desastres.

Tem aparecido que a solução para a gravíssima crise ecológica em que estamos não pode ser encontrada dentro do capitalismo. Qual é sua opinião a esse respeito? A partir de quais coordenadas podemos pensar essa superação?

Tem a ver com o que estava dizendo antes. Há vinte anos, ninguém falava do capitalismo, exceto as organizações de esquerda ou militantes. Deixou-se de falar do capitalismo, como se não fosse o que está no substrato de tudo. Isso mudou. Agora está claro que é necessário falar e questionar o capitalismo, é um avanço muito importante. É uma mudança de época, como a marcou, por exemplo, o feminismo. Não é de um dia para o outro, pode durar dez ou vinte anos até que comece a se generalizar um questionamento ao capitalismo. O capitalismo é um sistema no qual não podemos continuar, porque está acabando com a vida no planeta, a dos humanos e a dos outros seres vivos. É um sistema suicida! Talvez esse seja o gatilho que leve as sociedades a questionar a base do capitalismo. Mas, alguém poderia dizer: "Bem, então, sem questionar o capitalismo não podemos fazer nada?”. Não, porque como disse Eduardo Galeano, “finalmente, somos o que fazemos para mudar o que somos”. Não podemos ficar esperando, porque “um dia o mundo irá mudar”. Devemos ter claro que é necessário um questionamento radical do sistema, que começa pela reflexão e a ação cotidiana e que deve ser ampliado para todos os lugares onde possamos enfrentá-lo. Nesse sentido, as ciências sociais têm um papel fundamental. Não podemos continuar pensando dentro dos mesmos parâmetros, sem questionar as empresas transnacionais, sem questionar a desigualdade e o crescimento cada vez mais monopólico de empresas cada vez maiores. É preciso questionar radicalmente esta imoral desigualdade. Isso tem que ser uma tarefa de ampla difusão e discussão em todos os níveis, na vida acadêmica e fora da academia.

Ao mesmo tempo, já temos que estar pensando em alternativas, dia a dia, a partir do local, de cada um. É claro que cada um tem que pensar qual é o seu lugar, através de, por exemplo, o consumo. Mas isso não é o suficiente, porque oferece uma falsa imagem. É como dizer “bom, se mudarmos o consumo, tudo mudará”. E não, porque temos que mudar as formas de produção. O que precisamos realmente como sociedades para satisfazer as nossas necessidades? O que estamos dispostos coletivamente a assumir para cobrir nossas necessidades?

Sou bastante otimista. Temos pontos de partida. Por exemplo, as redes campesinas. Abarca não só o que se produz no campo, mas também as hortas urbanas, as redes de pescadores e de pastores, etc. Enfim, a pecuária descentralizada e em pequena escala. Estas coisas são as que alimentam 70% da humanidade e que ajudam a prevenir a mudança climática. Tudo isso já está acontecendo e acontece em um plano de luta, já que muitas vezes precisam resistir para se manter como camponeses e defender seus direitos. E é a luta que incomoda, que tem efeitos, por isso, lamentavelmente, assassinam uma grande quantidade de defensores da terra, da água, do território. A organização Global Witness reúne informação o tempo todo e mostra que defender a natureza tem consequências graves. Apesar disso, sou otimista. É preciso reconhecer a realidade como é, com todas essas dificuldades. Mas, ao mesmo tempo, entender que muitas das soluções que necessitamos já existem e poderão se estabelecer e expandir. Ou seja, já existem respostas. Não é que um dia o capitalismo irá cair e aí iremos começar a construir algo. Mas que tudo isto está sendo feito a partir da construção das comunidades locais e da agroecologia camponesa, que é o tema que hoje mais falamos. Mas também, por exemplo, a partir do questionamento do patriarcado, que é fundamental como um dos pilares do capitalismo. Ou o questionamento acerca do tema do desenvolvimento. Tudo isso já está construindo esse futuro, já o estamos prefigurando, já o estamos fazendo. Então, eu penso que sim, é possível.

Edição 162, novembro 2020

Com Catherine D’Ignazio

AS PRÁTICAS CLÁSSICAS EM CIÊNCIA DE DADOS FOMENTAM O SEXISMO

Catherine D’Ignazio (Chapel Hill, Carolina do Norte, Estados Unidos) é professora de Ciência e Planejamento Urbano no Instituto Tecnológico de Massachusetts (MIT). Também dirige o Data + Feminism Lab, que utiliza dados e métodos computacionais para trabalhar pela igualdade de gênero. Define-se como professora, artista visual e desenvolvedora de software e tem o apelido de kanarinka nos hackathons feministas que organiza. D’Ignazio, que viveu durante um tempo em Barcelona, quando era estudante secundarista, escreveu, junto com Lauren Klein, diretora do Digital Humanities Lab, na Universidade de Emory [Geórgia, Estados Unidos], o livro “Data Feminism”, publicado este ano. As autoras consideram fundamental reconhecer os vieses de gênero – e também os de racismo, classismo e discriminação de minorias – dos algoritmos usados massivamente em aplicativos de inteligência artificial e big data. Além disso, destacam a necessidade de entender estes vieses tecnicamente para assim introduzir medidas que os combatam. A entrevista é de Ana Hernando, publicada por Viento Sur. A tradução é do Cepat /IHU

O que é o feminismo de dados e para que serve?

É uma forma de refletir sobre os dados, tanto em termos de seus usos como de suas limitações. Está fundamentado na experiência direta, no compromisso para a ação e o pensamento feminista interseccional. O ponto de partida é algo que geralmente não se reconhece na ciência de dados: que o poder não está distribuído equitativamente no mundo, já que aqueles que o exercem são, desproporcionalmente, homens brancos com acesso à educação, heterossexuais e do norte. O trabalho do feminismo de dados consiste, em primeiro lugar, em examinar como as práticas padronizadas em ciências de dados servem para reforçar estas desigualdades existentes, que se traduzem em sexismo, como também em racismo, classismo e discriminação de minorias. E, em segundo lugar, em utilizar esta mesma ciência para desafiar e mudar esta distribuição de poder e lutar contra a discriminação em suas diferentes formas.

Quais são os principais vieses discriminatórios que você encontra?

Vemos o feminismo de dados como parte de um crescente corpo de trabalho que responsabiliza os atores corporativos e governamentais por seus produtos com dados racistas, sexistas e classistas. Por exemplo, encontramos sistemas de detecção de rostos que não reconhecem as mulheres negras, algoritmos que degradam as mulheres, algoritmos de busca que fazem circular estereótipos negativos sobre as meninas negras, algoritmos de detecção de abuso infantil que penalizam os pais de baixa renda, visualizações de dados que reforçam o binarismo de gênero. Tudo isto e muito mais.

Claramente, há ganhadores e perdedores no âmbito dos dados.

Sim, claro, como dizia, quem perde são desproporcionalmente mulheres, pessoas negras, indígenas e outros grupos marginalizados, como pessoas trans, não binárias e as pessoas pobres. Algo que igualmente pode ser considerado como uma perda é o que chamamos de missing data, ou seja, todos aqueles dados que podem ser importantes e que não estão sendo coletados. No livro, descrevemos o exemplo dos dados sobre os feminicídios e denunciamos que os governos não coletam dados exaustivos para entender o problema e implementar soluções políticas para acabar com este flagelo. Outros exemplos de missing data são os dados de mortalidade materna, que só começaram a ser coletados recentemente, e os de assédio sexual. Além disso, não esqueçamos que grande parte de nosso conhecimento médico e de saúde procede de dados de pesquisas que se baseiam quase unicamente no corpo masculino.

Em seu livro, utiliza o termo ‘Big Dick Data’ [‘dick’ é ‘pênis’ na gíria popular e a expressão poderia ser traduzida como ‘dados de quem o tem maior’]. Pode nos explicar seu significado?

É uma crítica ao machismo oculto na maioria das narrativas em torno do big data. As descrições de projetos neste âmbito se caracterizam por fantasias masculinas e totalizadoras de dominação mundial que se realizam mediante a captura e a análise de dados. Assim, os projetos de Big Dick Data ignoram o contexto dos dados, fetichizam o tamanho da base de dados e inflam suas capacidades técnicas e científicas, normalmente com fins lucrativos, poder ou ambos.

Os algoritmos de ‘machine learning’ se alimentam de dados históricos que perpetuam preconceitos, não só em questões de gênero. Por exemplo, muitos estudos de criminalidade nos Estados Unidos apontam que pessoas afro-americanas têm mais probabilidades de cometer crimes.

Conforme dizia, no feminismo de dados deixamos espaço para uma posição de rejeição aos dados e a seu uso em certas situações. Em relação aos dados de criminalidade nos Estados Unidos, por exemplo, considero que teríamos que descartar completamente o seu uso porque estão corrompidos pelo racismo. Após séculos de encarceramento desproporcional de afrodescendentes e indígenas, não podemos usar esses registros para prever quem deveria ser colocado em liberdade sob fiança e imaginar, de alguma forma, que os algoritmos serão neutros. Repito: estes dados foram corrompidos por séculos de supremacia branca e devem ser rejeitados. Esta é a minha opinião.

Como mudar essa narrativa?

A mudança narrativa que necessitamos tem a ver com deixar espaço para esta posição de rejeição no diálogo público e nas políticas. Existem algumas tecnologias que não deveriam ser construídas. Existem alguns dados que não devem ser usados.

Seria possível conseguir a neutralidade dos dados?

Não, os dados jamais serão neutros porque nunca são dados “crus”. São produzidos por seres humanos que vêm de determinados lugares, têm suas próprias identidades, suas histórias particulares e que trabalham em instituições concretas. Mas isso não significa que os dados não possam ser úteis. Só que precisamos utilizá-los com os olhos abertos. E nos fazer as perguntas adequadas: quem se beneficia? Quem se prejudica? Quem faz o trabalho? Quem recebe o crédito?

No momento em que estamos, que avaliação faz da gestão de dados na pandemia?

Aqui, nos Estados Unidos, está sendo terrível. Apresento um exemplo. No início da pandemia, [o presidente Donald] Trump expressou seu desejo de não permitir que um cruzeiro com passageiros afetados pela Covid-19 atracasse. Suas palavras foram: “Gosto que os números fiquem onde estão. Não preciso que se dupliquem por um barco que não é nossa responsabilidade”. Outras agências governamentais também estão envolvidas nesta subestimação deliberada. Durante onze semanas, de março a maio, os CDC [Centros para o Controle e a Prevenção de Doenças] não publicaram dados sobre quantas pessoas estavam sendo testadas para detectar o vírus. Em certo momento, publicou-se silenciosamente uma nova página web dos CDC que realizavam um acompanhamento dos testes nacionais. No entanto, segundo uma verificação independente da revista The Atlantic, os números não coincidiam com os reportados pelos próprios estados. Agora, a responsabilidade por monitorar os dados da Covid-19 foi transferida ao departamento de Saúde e Serviços Humanos [HHS] por razões políticas.

Soa tudo muito desastroso.

Sim. E, além disso, os detalhes demográficos sobre as mortes por coronavírus também não são reportados. Sabemos que os homens morrem em proporções mais altas que as mulheres. Também que as comunidades negras, indígenas e latinas são as mais afetadas. Mas os estados não estão rastreando de maneira confiável questões como a de gênero e raça, nos casos de Covid-19. E, quando assim agem, categorizam as populações nativas como outros, o que torna impossível desagregar os efeitos racializados da doença em pessoas indígenas. É um grande desastre.

Com Vittorino Andreoli, psiquiatra

NOS DIAS DO MEDO, VAMOS CONSTRUIR A ERA DO 'NÓS'

Vittorino Andreoli diz o que pensa e pensa o que diz. Uma raridade. Ele acha cada vez mais difícil distinguir entre loucos e não loucos: vê os normais fazendo coisas de loucos e os loucos fazendo coisas extraordinárias. Do jeito que está, este mundo não lhe agrada. Está ficando cada vez mais difícil. Poluído pelas palavras. Feito por gente que foge diante da responsabilidade. Como psiquiatra, ele vê avançar uma nova patologia: a incoerência. Aqueles que dizem tudo e o contrário de tudo. Existe um egoísmo generalizado, um abuso do "eu". Dá vontade de fugir, ele admite. Procurar o silêncio das pedras, contra o ruído inútil das banalidades. Mas não podemos fugir, ele explica. Seria covardia. Nós fazemos a sociedade. Quem vê certos perigos tem o dever de alertar sobre os riscos que se correm. A entrevista com Vittorino Andreoli é de Gian Giacomo Schiavi, publicada por Corriere della Sera. A tradução é de Luisa Rabolini /IHU

No escuro, existe o medo. Por que você começou disso, professor Andreoli?

Esta é a sociedade do medo. Nossos dias hoje são cadenciados pelo medo e o medo gera violência, nos paralisa. E mesmo assim ...

E mesmo assim...

E mesmo assim, sem medo, não haveria a coragem. Veja, o medo é um elemento estrutural da existência. O herói também sente medo. Mas o supera pelo bem dos outros.

Qual é o medo que mais assusta?

Neste momento, a solidão.

E como se contrasta?

Com a proximidade, com o outro, com o conjunto. O homem assustado precisa de alguém que o escute, de uma voz, alguém em quem possa confiar. Juntos, a vida é mais humana.

O que alimenta o medo?

Hoje não há dúvida, a Covid. Mas o que preocupa é a política que vive do medo dos homens. Fez dela o seu negócio.

Muitos egoísmos e individualismos ...

Existe um narcisismo exasperado.

Quando o medo se transforma em perigo?

Quando ultrapassa uma determinada intensidade e vira angústia, pânico.

Em vez disso, o que é a ansiedade?

A ansiedade surge como condição para melhor enfrentar novas situações, é um ativador de energias. Como, por exemplo, a ansiedade do aluno antes de uma prova.

E quanto à raiva?

É um impulso, é a violência dentro de nós que tende a sair.

Hoje há tanta raiva ...

Hoje vivemos mal. Por isso, acumulamos raiva, mal-estar, frustração. Existe uma raiva interna que precisa ser gerenciada. Quando sai por acumulação, produz violência.

Dicas para viver com menos raiva e menos medo?

Devemos partir do homem que deve ajudar o homem.

E redescobrir a alegria de viver ...

A alegria é um sentimento belíssimo. Todo mundo fala sobre felicidade, mas a felicidade diz respeito ao eu. A alegria é um sentimento compartilhado, diz respeito ao nós.

Você elogia o valor do perdão.

O perdão nos toca profundamente. Traz consigo a humildade, que não é modéstia, é a grandeza de São Francisco. O perdão é para-doar. Assim o significado fica ainda mais claro.

Existe um sentimento para relançar?

A paixão. A paixão é o que dá cor à nossa vida.

Você a combina com a vontade.

A vontade é um acto de energia, mostra o desejo que você tem de continuar: serve para superar um obstáculo, para enfrentar desafios impossíveis.

Os sentimentos se desgastam com muita facilidade hoje, como a sola dos sapatos, você escreveu. Vivemos de emoções. Mas qual é a diferença entre sentimento e emoção?

O sentimento é um vínculo. As emoções dizem respeito aos sentidos, a fisicalidade. O computador e a TV transmitem emoção, não sentimento. Os sentimentos são duradouros e nos unem uns aos outros.

Você considera que certas definições dadas aos sentimentos, como fragilidade, estão erradas.

A fragilidade indica que você precisa do outro. Mas não é uma fraqueza.

Como no amor, escreve você.

O amor é a combinação de duas fragilidades.

Um sentimento belíssimo.

Amor é vida, é relação e significa: sem você eu não posso viver. Assim, vivem duas pessoas que se amam. O amor é um sentimento essencial: do pai pelo filho, do irmão pelo irmão, do avô pelo neto ...

O que é o desejo?

É a capacidade que cada um de nós tem de se considerar diferente do que é hoje. Mas a sociedade matou o desejo.

Como?

Virou spot comercial: você comprou isso? E esse outro? O desejo reduzido a objeto é outra coisa. Em vez disso, é aspiração, uma meta a ser alcançada, um passo à frente. Mas para isso você tem que se empenhar ...

O que você vê no fim do túnel?

Que a vida se expressa vivendo nos outros. Temos que construir a era do “nós”.

Com Santiago Alba Rico

'DESCOBRIMOS O LIMITE MAIS RADICAL DO CAPITALISMO: A MORTE'

O ensaísta, escritor e filósofo Santiago Alba Rico (Madrid, 1960) apresenta uma profunda e sincera reflexão sobre os efeitos produzidos pela pandemia, em todos os âmbitos, até transformar a sociedade tal e como a conhecíamos. Uma análise multidisciplinar que também expôs no ciclo de palestras organizado pelo Museu Etnográfico de Castela e Leão sobre “Pensamento e pandemia”. A entrevista é de M. J. Fernández, publicada por El Correo de Zamora. A tradução é do Cepat /IHU

Em sua conferência, em Zamora [Espanha], abordou os efeitos da recente crise sanitária e as carências que revelou. Temos um sistema mais frágil do que pensávamos?

Muito mais frágil e em duas direções. Por um lado, as políticas neoliberais de privatização e desmantelamento da saúde pública dos últimos anos revelaram como nós, espanhóis, estávamos muito menos protegidos do que acreditávamos. Por outro, em um sentido mais global, descobrimos, como à luz de um relâmpago, a fragilidade de um sistema que, em última instância, depende dos corpos, que são naturalmente frágeis. Por anos, nosso sistema econômico gerou a ilusão de que se reproduzia à margem dos corpos, sem corpos, e a pandemia foi, por isso, uma tremenda bofetada de realidade. Descobrimos, de alguma forma, o limite mais radical do capitalismo: a morte, com a qual sempre é preciso contar.

Quais são as dificuldades geradas pela contradição entre movimento e imobilidade provenientes da pandemia?

Esta contradição sempre esteve presente em nossas vidas. As mercadorias, as notícias, as operações financeiras, os turistas, movimentavam-se a toda velocidade e sem obstáculos, ao passo que os mais pobres, os imigrantes, os refugiados, ficavam presos nas fronteiras e, por isso mesmo, ficavam presos em seus corpos. Quem se movimenta tem menos corpo do que aquele que não se movimenta. Assim, o capitalismo neoliberal precisa decidir a todo momento quem se movimenta e quem não se movimenta, a quem dá corpo e a quem não. A pandemia obrigou a parar – ou seja, a corporificar – parte desse movimento. A solução para esta contradição, no marco da crise, foi tecnológica. Onde podemos estar imóveis e sem corpo? Na tecnologia. Por isso, o confinamento foi, entre outras coisas, um negócio para as grandes empresas tecnológicas. Vínhamos, por assim dizer, de um confinamento tecnológico que podia conciliar movimento e imobilidade e que agora se fechou sobre si.

Considera que os “bárbaros” de nossa civilização não estão no exterior. O que pretende dizer com isto?

Quero dizer que não há mais nenhum exterior. E isso significa duas coisas. A primeira que, ao contrário dos cristãos dos séculos IV e V em uma crise da civilização parecida, não podemos fugir ao deserto, nem à montanha. Mas também significa que não podemos ser salvos de fora, segundo o modelo clássico da decadência e renovação das civilizações. Nossos bárbaros estão dentro e não são humanos: são pandemias e catástrofes climáticas, que vão desempenhar, por certo, um papel muito parecido ao do terrorismo em termos de governação global. Frente à catástrofe estrutural, será necessário tomar constantes medidas de exceção.

Como avalia que será a sociedade em um futuro, após a obrigatória revisão ou mudança de nossos modelos de gestão impostas pela pandemia?

Não me atrevo a fazer previsões. Limito-me a expressar meus temores. Se não compreendermos que a defesa da vida é indissociável da defesa da democracia, o mundo pós-pandemia aprofundará o processo de desdemocratização global já iniciado antes da ameaça da Covid-19.

Reside há vários anos fora da Espanha, na Tunísia. Quais são as diferenças que observa no tratamento da pandemia neste país e, em geral, entre o mundo ocidental e o árabe?

Poucas. A pandemia universalizou comportamentos e medidas. A humanidade foi traumaticamente globalizada de supetão. A diferença está em que a população do norte da África é muito mais jovem e, em contrapartida, seus sistemas de saúde muito mais frágeis.

Após sua incursão na política, em 2015, mostrou-se bastante crítico ao ‘Podemos’. Considera que a classe política não deu conta de enfrentar a crise sanitária?

Minhas críticas ao Podemos, que são muitas e muito profundas, são compatíveis ao alívio de que, nesta crise, faça parte de um governo que, de outro modo, teria agido pior. Além disso, se julgo pela forma como [Isabel Díaz] Ayuso está atuando em Madrid, também fico aliviado que neste momento o PP não esteja no governo central. Em relação à classe política, não se pode generalizar. Em termos sanitários, não se fez nada muito diferente do que foi feito em outros países europeus. O que, sim, é diferente é a ideologização da crise por parte das direitas espanholas. É preciso exigir de todos, em todo caso, maior responsabilidade porque a democracia se baseia na confiança cidadã nas instituições. A presença de boa parte de nossa classe dirigente no Casino de Madrid, um dia desses, no ato de entrega de prêmios do jornal El Español, tem um efeito brutalmente desmoralizador.

Considera que nas próximas eleições a esquerda será punida nas urnas por sua gestão da pandemia?

Em um país em que as competências sanitárias estão nas mãos das Comunidades Autônomas, todos – esquerda, direita e nacionalistas – administram a pandemia. Minha impressão é que a esquerda que não atuou bem, não é a que atuou pior.

Em uma sociedade em que cada vez é mais difícil marcar os limites entre ficção e realidade, avalia que a pandemia voltou a demonstrar, mais uma vez, que a realidade supera a ficção?

Ocorre, sobretudo, que a realidade, quando nos coloca em contato coletivo com a morte, parece uma ficção. Não nos parece real. Entre outras coisas porque, como disse antes, nossas sociedades ocidentais não estavam preparadas para assumir esta repentina fragilidade. A pandemia é a primeira coisa real que nos ocorre em muito tempo e por isso parece um sonho.

A crise acentuou a fragmentação dos modelos de autoridade tradicionais e, em geral, de valores?

Mais que esses modelos e valores, já muito erodidos pelo neoliberalismo, o que a crise erodiu ainda mais foi a confiança nos discursos públicos e no conhecimento comum. A confiança é o fundamento de todo contrato social. Em sua ausência, impõem-se – como está ocorrendo – o negacionismo, a tristeza, a impotência e o cinismo.

Avalia que na sociedade atual há uma carência de líderes de opinião que não sejam “influencers” ou “youtubers”?

Nos anos 1980 e 1990, ocorreu uma mercantilização da “autoridade pública, de modo que os futebolistas e as estrelas de televisão ocuparam o lugar tradicional dos intelectuais. Nos últimos anos, a autoridade pública, em uma nova guinada, se tornou tecnológica e qualquer um que pretenda chegar a um público amplo – também os futebolistas, os políticos e os filósofos – precisam se tornar ‘influencer’ ou ‘youtuber’. O problema é que as redes não são feitas para pensar ou se comprometer, mas para reagir, e para reagir de um modo homogêneo a todos os estímulos: com as vísceras e com a amnésia.

As novas tecnologias estão produzindo um efeito alienante na sociedade?

Tem um efeito, sobretudo, “descorporificador”, roubam o nosso corpo, que agora é apenas um apêndice incômodo de nosso celular ou de nosso tablet, de nossa conexão à rede. O fato de nos roubar o corpo quer dizer que nos roubam a possibilidade de prestar atenção. E sem a atenção as coisas não têm valor. Sendo assim, as tecnologias, na medida em que substituem a própria vida, facilitam os processos de desligamento dos outros corpos e de desvalorização do mundo. Diante delas, nossos corpos – quanto mais uma árvore! – são muito lentos. O capitalismo não pode se permitir a lentidão.

As novas restrições provenientes da crise sanitária aumentarão ainda mais as distâncias e a tendência à redução do contato pessoal?

Já ocorreu. Quando vemos o protagonista de um filme fumar, ficamos surpresos, mas não sentimos vontade de fumar: vemos com distância, como outro mundo já irrecuperável. Quando nesses dias vemos em um filme muitas pessoas juntas e sem máscara, em uma casa ou em uma praça, sentimos uma sacudida de estranheza e quase de ameaça. Todos os nossos filmes, neste sentido, nos falam do passado. É sem dúvida bom que não recuperemos esse mundo em que os médicos fumavam na sala de cirurgia, mas não que renunciemos a esse outro – o de ontem mesmo – em que nos tocávamos sem medo e sem desconfiança. “Perdida nossa verdadeira natureza, tudo é nossa verdadeira natureza”, dizia Pascal. Nós, humanos, nos acostumamos a tudo. Confio em que o impulso de tocar seja mais imperativo e mais verdadeiramente natural que o de fumar.

Em muitas de suas publicações, teve especial interesse na informação tóxica, nos boatos e nas notícias falsas. Como avalia que podem ser combatidas em uma realidade mediatizada?

Sempre houve boatos e ‘fakes’, sobretudo em períodos de crises, pandemias e ameaça. E com uma propagação em velocidade vertiginosa, sem a necessidade de internet. Mas seu meio de vida é a ausência de marcos de credibilidade compartilhada, como a ausência de oxigênio é o meio de algumas bactérias. Penso que se nossos políticos e nossos jornalistas não se tornassem difusores voluntários de boatos partidaristas e em oportunistas fabricantes de ‘fakes’ no espaço público – incluído o Parlamento - poderíamos nos permitir ter algumas bactérias no ar rarefeito das redes. É a corrupção do espaço público que torna os “fatos alternativos” credíveis. E essa corrupção é responsabilidade dos que têm um acesso privilegiado a ele.

Considera que é essa desinformação que sustenta os negacionistas da Covid e a falta de conscientização sobre a importância de se respeitar as medidas de prevenção?

Os negacionistas se sustentam, na realidade, na desconfiança, às vezes razoável, em relação ao “sistema”, suas instituições e seus saberes. E na necessidade de construir um mundo comum alternativo a este, no qual todo o mundo, segundo eles, viveria isolado e enganado. Em períodos de crises, com frequência, o ceticismo se converte em niilismo, e o niilismo em credulidade. Quando não acreditamos mais em nada, podemos acreditar em qualquer coisa, por mais incoerente que seja, inclusive em que a Terra é plana. O negacionismo tem um efeito analgésico e ansiolítico: evoca uma ameaça incontrolável e real e inventa um falso culpado concreto e manipulável. Preferimos acreditar em monstros do que no acaso. É um mecanismo de defesa tão perigoso como banal.

Com Luciano Floridi

SER HUMANO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: OS PRÓXIMOS DESAFIOS

Luciano Floridi, professor titular de Filosofia e Ética da Informação da Universidade de Oxford, é uma autoridade internacional no âmbito da filosofia da informação. Ainda em 1997, ele havia se distinguido como autor de um breve livro introdutório intitulado “Internet”, publicado pela editora Il Saggiatore. Entre os seus cargos mais importantes, ele é diretor do Digital Ethics Lab do Oxford Internet Institute, também na Universidade de Oxford, é Turing Fellow e presidente do Data Ethics Group do Alan Turing Institute. Em 2014, chamou a atenção do público sobre aquela que ele apresenta como uma revolução epocal, que tornará cada vez mais difícil distinguir entre a vida online e offline (“La quarta rivoluzione: come l’infosfera sta trasformando il mondo” [A quarta revolução: como a infosfera está transformando o mundo], Milão: Raffaello Cortina, 2017). A entrevista foi publicada por La Ricerca. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Professor, há um termo que parece fazer par com biosfera, isto é, “infosfera”. Por que esse neologismo é útil? O que ele designa?

O termo circula há algum tempo. Eu o recuperei filosoficamente para falar de duas coisas. Por um lado, ele nos ajuda a definir o ambiente em que vivemos, feito de informações, fluxos de dados, interações com softwares e sistemas automáticos, em um misto de analógico e digital, e assim por diante. Nesse sentido, é uma atualização do velho termo “ciberespaço”. Aqui a utilidade está em abandonar a ideia de que há espaços separados, como se a infosfera fosse um lugar quase alheio, diferente, inatural, isto é, “ciber”, no qual entramos e saímos como e quando queremos. Na realidade, a infosfera é o habitat cotidiano para bilhões de pessoas, cada vez mais, e cada vez mais comumente. Por outro lado, eu usei o termo “infosfera” ontologicamente, para falar da realidade em geral, em uma metafísica que interpreta o Ser de modo informacional. Se, de um ponto de vista informacional, tudo pode ser lido como feito de informação (pensemos no estruturalismo ou na filosofia da ciência), então “infosfera” e “Ser” se tornam correferenciais. Neste caso, a utilidade está em poder apresentar, com clareza e – espero – convicção, uma forma de Monismo relacional que me parece mais condizente com a nossa época: só existe um Ser, mas o Ser é uma rede (não um conjunto de elementos, como maçãs no cesto), em que as relações constituem os nós (as coisas, que são como as rótulas constituídas de estradas), com articulações (o múltiplo) e transformações (o devir).

Você cunhou o termo onlife. Pode nos explicar?

Eu o cunhei para fazer referência à vida na infosfera, onde não faz mais sentido perguntar se você está online ou offline, conectado ou não conectado. Pense em como o nosso celular nos geolocaliza continuamente, como o nosso relógio mede as nossas atividades físicas ou no fato de que temos à disposição todas as informações constantemente, a apenas um clique de distância. A cozinha é um lugar onde a Alexa ou um relógio digital que se atualiza automaticamente com um sinal de rádio convivem com o sal e a pimenta. Como expliquei com uma metáfora, vivemos cada vez mais na foz do rio, ou seja, onlife, onde perguntar se a água é doce ou salgada (se estamos online ou offline) não faz sentido, pelo contrário significa não ter entendido onde se está, porque ali a água é salobra.

Esses novos dispositivos – você mencionou a Alexa e os relógios digitais – estão mudando as nossas vidas. Os celulares, especialmente desde que evoluíram nos smartphones, nos tornam cada vez mais encontráveis, mas também, de algum modo, nos forçam a estar disponíveis para os outros. Para dar outro exemplo, a facilidade da fotografia com os smartphones permite a satisfação do desejo de capturar o instante, mas também dificulta esquecer o evento. Em suma, estamos vivendo as alegrias e as fadigas da infosfera. Para onde estamos indo? Para o que precisamos nos preparar?

Trata-se de transformações profundas, mas às vezes também difíceis de perceber na sua natureza exata. Tomemos o caso da memória e do esquecimento. Viemos de uma experiência milenar, durante a qual o problema sempre foi o de que escolher, preferir, selecionar, privilegiar para que permanecesse para a “memória futura”. Hoje sabemos que, ao invés disso, o digital se acumula como a poeira em casa, e a nossa cultura parece cada vez mais uma cultura do apagamento: o que remover, editar, curar ou simplesmente não registrar. Não é uma passagem linear, de uma cultura da memória para uma cultura do esquecimento, porque também se acrescentam outras variáveis, particularmente a da fragilidade da memória digital. No passado, eu cultivei a paixão pela história da filosofia e, ao longo de muitos anos, fiz pesquisas e acabei publicando um livro sobre a tradição manuscrita de Sexto Empírico. Pois bem, aqueles manuscritos que eu consultei em tantas bibliotecas e arquivos espalhados pela Europa e pelos Estados Unidos têm uma estabilidade analógica que o digital só pode invejar. As tecnologias se tornam obsoletas, os suportes se desmagnetizam, o conceito de programação tem uma radicalidade de reescrita que, no caso do digital, é total e muitas vezes irreversível. Fico feliz por ter uma cópia impressa das minhas teses, porque sei que aqueles floppy disks na mesma prateleira já são ilegíveis. A vastíssima memória que estamos acumulando é também uma memória extraordinariamente frágil. E essa dialética entre memória e esquecimento, entre quantidade e fragilidade do que registamos, é apenas um dos muitos aspectos da nossa vida cultural que o digital está transformando. É por isso que há tanta necessidade de uma filosofia à altura dos novos desafios: devemos entender o presente de modo mais aprofundado para desenhar melhor o futuro, e não para entrar nele como se fôssemos sonâmbulos.

Fala-se muito de smartphones, de smartwatches, de sistemas inteligentes, em suma, o tema da inteligência artificial é fundamental para entender o mundo em que vivemos. Quão inteligentes são as chamadas “máquinas inteligentes”? Acima de tudo, a sua crescente inteligência criará em nós novas formas de responsabilidade?

É verdade, tudo é rotulado como “smart” ou “deep”: deep learning, deep neural networks. Brincando com o pessoal de Oxford, eu digo que não fazemos pesquisa sobre ethics ou philosophy, aquela que todo mundo faz. Nós fazemos pesquisa sobre deep ethics e smart philosophy... Mais seriamente, a inteligência artificial (IA) é um oxímoro. Tudo o que é verdadeiramente inteligente nunca é artificial, e tudo o que é artificial nunca é inteligente. A verdade é que, graças a extraordinárias invenções e descobertas, a sofisticadas técnicas estatísticas, à queda do custo da computação e à imensa quantidade de dados disponíveis, hoje, pela primeira vez na história da humanidade, somos capazes de realizar em escala industrial artefatos capazes de resolver problemas ou executar tarefas com sucesso, sem a necessidade de serem inteligentes. Esse descolamento é a verdadeira revolução. O meu celular joga xadrez como um grande campeão, mas tem a inteligência da geladeira da minha avó. Esse descolamento epocal entre a capacidade de agir (o inglês tem uma palavra útil aqui: agency) com sucesso no mundo, e a necessidade de ser inteligente ao fazer isso escancarou as portas para a IA. Nas palavras de von Clausewitz, a IA é a continuação da inteligência humana com meios estúpidos. Falamos de IA e de outras coisas como o machine learning porque ainda não temos o vocabulário certo para lidar com esse descolamento. A única agency que conhecemos sempre foi um pouco inteligente, porque é, no mínimo, a do nosso cachorro. Hoje, quando temos uma totalmente artificial, é natural antropomorfizá-la. Mas acho que, no futuro, vamos nos acostumar com isso. E, quando se disser “smart”, “deep”, “learning”, será como dizer “o sol nasceu”: sabemos bem que o sol não vai a lugar nenhum, é um velho modo de dizer que não engana ninguém. Isso continua sendo um risco, entre muitos, que eu gostaria de enfatizar. Acabei de mencionar alguns dos fatores que determinaram e continuarão a promover a IA. Mas o fato de a IA ter sucesso hoje também se deve a mais uma transformação em andamento. Vivemos cada vez mais onlife e na infosfera. Esse é o habitat em que o software e a IA estão em casa. Os algoritmos são os verdadeiros nativos, não nós, que continuaremos sempre sendo seres anfíbios, ligados ao mundo físico e analógico. Pensemos nas recomendações nas plataformas. Tudo já é digital, e os agentes digitais têm a vida fácil de processar dados, ações, estados de coisas igualmente digitais, para nos sugerir o próximo filme que poderia nos agradar. Tudo isso absolutamente não é um problema, pelo contrário, é uma vantagem. Mas o risco é que, para fazer a IA funcionar cada vez melhor, transforme-se o mundo à sua dimensão. Basta pensar na atual discussão sobre como modificar a arquitetura das estradas, da circulação e das cidades para possibilitar o sucesso dos carros autônomos. Quanto mais o mundo for “amigável” (friendly) em relação à tecnologia digital, melhor esta funcionará e mais seremos tentados a torná-lo mais friendly, a ponto de sermos nós a termos que nos adaptar às nossas tecnologias, e não vice-versa. Isso seria um desastre. Há duas circunstâncias em que um adulto fala como um estúpido: quando se dirige a um recém-nascido e quando fala com a Alexa. O primeiro caso é justificado pela evolução; o segundo deve ser evitado pela inovação.

Recentemente, a OMS falou em “infodemia” em relação à disseminação de fake news sobre o coronavírus. Cada vez mais, o aumento de informação gera insegurança e temores. Como viver a revolução digital sem ser oprimido e manipulado por ela?

Infelizmente, o excesso de informações gera confusão. Mesmo se fossem todas e apenas informações corretas, a superabundância confunde. Imagine entrar em um bar onde 10 prêmios Nobel estão todos falando juntos e em voz alta. Mesmo que todos digam coisas razoáveis e corretas, seria difícil entender alguma coisa. Além disso, há o fato de que o bar da informação se assemelha muito mais ao do Star Wars: não há apenas prêmios Nobel, mas também malandros, trapaceiros, pessoas suspeitas, embusteiros e também muita desinformação. A solução é dupla. É preciso fazer um pouco de limpeza, e, para isso, são necessárias intervenções sociopolíticas. O bar sozinho não se limpa facilmente. Fora da metáfora, são necessárias regras e leis bem feitas. Aqui o Estado e a União Europeia podem fazer muito. E é preciso preparar melhor todos os usuários. A formação, a capacidade crítica e um pouco de inteligência para entender o que vale a pena ler ou seguir, e o que, pelo contrário, é lixo são fundamentais, assim como saber atravessar a rua. Aqui, a escola pode ter um papel vital.

A revolução da informação está mudando a escola. Não se trata apenas de dispor de novas tecnologias e de ter um acesso facilitado ao conhecimento. Trata-se talvez, sobretudo, de enfrentar novos desafios educacionais. Você acha que já é hora de repensar as prioridades do ensino? Nesse caso, quais passos deverão ser dados, na sua opinião?

Acredito que sim. Acabei de mencionar o papel essencial que a escola pode e deve ter na preparação das pessoas para viverem bem onlife. Também seria útil se a escola não fosse vista como uma fase da vida (antes, durante e depois), mas como uma instituição que acompanha toda a vida, a latere. Hoje, ainda é raro “voltar à escola”. Na realidade, deveríamos “ficar” nela. É a simples ideia da formação permanente, em que o sistema escolar, também em colaboração com o setor privado, poderia fazer muito. Quanto aos ensinamentos, deveríamos evitar seguir modas. Se começássemos hoje a discutir o ensino escolar de Python (talvez a mais popular linguagem de programação), não seria um desastre, mas eu temo que não seria a melhor estratégia. Lembremos que os tempos de transformação de um sistema educacional são muito longos, desde a aprovação de uma reforma, à formação dos professores até o seu emprego, passam-se muitos anos. Se tivéssemos seguido as modas, hoje estaríamos ensinando, como competência essencial, o HTML, isto é, a fazer páginas web, algo de que não se sente muita necessidade. Na realidade, as prioridades no ensino devem ser exatamente estas: prior, isto é, anteriores e superiores ao que é exigido pelo mercado de hoje ou de amanhã. Portanto, acredito que hoje devem ser ensinadas cada vez mais as várias matérias não como fatos e informações (a Wikipédia cuida disso), mas como linguagens da informação. Devemos ensinar as meninas e os meninos a falar, a ler e a escrever as linguagens da matemática e da história, da música e da informática, da geografia e da economia, da arte e da química, da física e da literatura, não apenas a própria língua materna (que é a língua de todas as línguas) e o inglês. Se se conhece bem uma língua da informação, de modo crítico e articulado, não importa tanto quanto essa língua evolui nos anos seguintes, pois você continua sendo um bom falante, que sabe se expressar e sabe entender e se comunicar nessa língua. A atualização é simples. Cada linguagem aprendida, que assumimos como nossa (em inglês, usa-se a bela expressão ser conversant com uma disciplina), será um limite removido à nossa capacidade de sermos protagonistas na sociedade da informação. Por exemplo, se eu não sei ler e escrever a linguagem da estatística ou dos meios de comunicação de massa, serei sempre excluído desses dois mundos como ator, não só do ponto de vista do trabalho, mas também de um ponto de vista sociopolítico, porque serei no máximo apenas um usuário passivo, dependente das competências e das decisões alheias. Para simplificar, é preciso ensinar a escrever e a corrigir os verbetes da Wikipédia,não apenas a consultá-los.

Duas sensibilidades estão se confrontando justamente com o fato de não se dever seguir a moda do momento: a dos inovadores e a dos conservadores, uns abertos e fascinados pelo novo, outros ligados à tradição e aos seus valores. O que você salvaria da escola tradicional? E a filosofia?

Acredito que inovação e conservação podem ser conciliadas apontando para dois fatores. Por um lado, os clássicos deveriam ser lidos muito mais. Espero que todos possam concordar com isso, pelo menos como orientação geral. Se mandamos traduzir Tácito, ou interpretar Dante, é bom fazer estudar sobre Platão, Aristóteles, Descartes, Kant ou Wittgenstein diretamente, nos seus textos, até porque, em muitos casos, os filósofos se esforçaram para falar a todas as pessoas, de modo exotérico. Por outro lado, e me dou conta de que isto pode ser mais polêmico, se poderia abandonar o ensino historicista, para reavaliar o ensino teórico. Ter manuais escolares cujos capítulos são intitulados Metafísica, Ética, Filosofia Política e Filosofia do Direito, Epistemologia, Filosofia da Linguagem, Filosofia da Mente, Lógica, Filosofia da Ciência e assim por diante seria muito bom e permitiria que os estudantes e as estudantes realmente obtivessem uma boa imagem das questões filosóficas importantes e da instrumentação conceitual necessária para abordá-las. Eles entenderiam que não é verdade que a filosofia nunca resolve nada, mas que, pelo contrário, ela identifica e refina as perguntas fundamentais que, pouco a pouco, preocuparam a humanidade ao longo da sua história, para oferecer um espectro de respostas que, assim como as perguntas, evoluem com a evolução da humanidade, mas permanecem sempre abertas intrinsecamente ao debate informado, razoável e urbano. Eles poderiam desenvolver um modo de pensar filosófico que olha para as perguntas e para as respostas, e para o modo como elas se ligam entre si, e não adquirir uma competência enciclopédica sobre quem disse o quê. Seria um modo de ensinar filosofia que iria de acordo não só com as disciplinas humanísticas, mas também com as científicas. A filosofia na escola pode voltar a ser a dona de casa daquele saber que não conhece barreiras, mas que hospeda todas as disciplinas, dando as boas-vindas a todos os esforços feitos pela mente humana para entender algo mais dos mistérios que a cercam. É dessa filosofia que se tem tanta necessidade hoje, também para estar à altura dos desafios levantados pelo digital.

Edição 161, Outubro 2020

Com Adolfo Zon

A ECONOMIA ACTUAL NÃO SALVA NINGUÉM, MUITO MENOS OS POBRES”

Deixou seu belo vilarejo de Xeixalbo (Ourense), para se encarnar como missionário xaveriano na imensidão da Amazônia brasileira. Adolfo Zon custou um pouco para aprender o idioma. Custou um pouco mais para assumir a mitra e se converter, sem esperar, no bispo de Alto Solimões em 2014. A pandemia, que arrasou seu território, o manteve recluso, porém não de mãos-atadas para socorrer os pobres em meio “ao terror ocasionado pelas numerosas mortes”. Agradece as ajudas de diversas partes, sobretudo, de Manos Unidas, e denuncia que “a economia atual não salva ninguém, nem os próprios economistas e muito menos os pobres”. A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital. A tradução é de Wagner F. de Azevedo /IHU

Os missionários estrangeiros ainda são necessários ou, como alguns defendem, sua presença induz a um novo colonialismo clerical europeu?

É claro que eles são necessários aqui e em todas partes, na Europa também. O mundo tornou-se uma aldeia e, como discípulos e missionários de Jesus, devemos humanizar a globalização junto com todos os homens e mulheres que habitam a Casa Comum, isto é, como nos exorta o Papa Francisco na Encíclica “Fratelli Tutti”: globalizar a fraternidade, a fraternidade que se constrói com o diferente. O perigo e a tentação de um novo colonialismo sempre existe, apesar de que, há mais de 100 anos, Bento XV e todos os papas posteriores nos alertaram para esse perigo. Porém, a evangelização e o encontro com os povos devem ser realizados tendo em conta o paradigma da Encarnação, como o próprio Jesus nos ensinou, de que veio para servir e não para ser servido. Assim, os missionários, convivendo com as pessoas em que se encontram inseridos, procuram colaborar na busca e realização da vida plena para todos, onde ninguém fica de fora. Hoje a missão “ad gentes” e “inter gentes” é muito atual e seu caminho, como nos mostra a Exortação Apostólica “Querida Amazônia”, passa pelo diálogo intercultural e inter-religioso entre a diversidade dos povos que povoam o mundo, nossa Casa Comum: o diálogo não permite neocolonialismos e menos ainda o colonialismo clerical!

O que você deu e recebeu nestes mais de 25 anos como missionário no Brasil?

O que eu dei? Não sei. Você tem que perguntar isso às pessoas com quem convivi ao longo dos anos. Da minha parte, tentei e procuro estar presente no meio das pessoas com quem convivo e nos enriquecemos mutuamente com a vivência de várias experiências. É um enriquecimento mútuo. Essa convivência está me ajudando a ser o que sou, e também contribuiu para enriquecer minha experiência de fé, ajudando-me a viver uma síntese entre fé e vida.

A mitra o separou ou o aproximou das pessoas?

A confiança e a responsabilidade que o Papa Francisco me deu como bispo desta Igreja Local do Alto Solimões me colocou em contacto com experiências que nunca havia pensado viver tão de perto. Mais do que me afastar, me deu e me dá a oportunidade de conhecer outras pessoas e outras experiências religiosas, que me ajudam a aprofundar e purificar a minha.

Como você e seu povo estão vivendo a pandemia?

Depois de um período de medo e nervosismo, nos acostumamos a conviver com a covid-19. Embora as autoridades municipais tenham tomado medidas de prevenção, após várias semanas a covid-19 entrou em nossos territórios, sendo no Peru e na Colômbia os locais mais afetados. Desde 19 de março estamos em isolamento social, ficando em casa. Apenas os supermercados funcionavam por algumas horas. Além disso, toda a programação pastoral foi suspensa. Ao longo dos meses de abril e maio nosso povo foi bastante obediente às rotinas sanitárias decretadas pelas autoridades sanitárias. Os momentos de maior nervosismo foram a última semana de abril e a primeira quinzena de maio, onde os casos positivos foram mais numerosos e também as mortes. Mortes que criaram um clima de terror, já que os falecidos não podiam ser velados ou despedidos por seus familiares. Tivemos que improvisar um Cemitério, porque o da cidade não tinha espaço suficiente para tantas mortes seguidas. Tornamo-nos o 4º município com maior taxa de mortalidade no Estado do Amazonas e com maior índice de letalidade do que Itália e Espanha. Desde junho as autoridades municipais começaram um relaxamento gradual no isolamento social e no dia 14 de junho pudemos reabrir nossas igrejas para o culto com capacidade de 30% e com os procedimentos de saúde pertinentes: três pessoas por banco, um banco vazio, máscara, álcool em gel... Apesar de fecharmos nossas igrejas para o culto, uma grandíssima ação caritativa-assistencial foi realizada por meio de nossa Caritas diocesana e paroquiais. Começou com um apelo ao nosso povo à solidariedade local: “Quem tem algo partilha com quem não tem”. Começou assim, ajudando as famílias que mais precisavam. A ajuda de diversas entidades do Brasil e do exterior também nos alcançou rapidamente. O Papa Francisco ajudou-nos por meio da Nunciatura Apostólica e, também, as Pontifícias Obras Missionárias do Brasil colaboraram nesta ação emergencial. Aproveito este espaço para agradecer a ajuda que veio da Espanha da Delegação da Missão da Diocese de Ourense e das Manos Unidas, que acaba de aprovar um Projeto de Emergência para 850 famílias carentes das 8 paróquias que formam nossa diocese do Alto Solimões.

O que os indígenas de sua diocese pensam de Bolsonaro?

Graças a Deus os povos indígenas que vivem no Alto Solimões são muito fortes em sua organização social, pois possuem associações que os ajudaram a se defender, a serem respeitados, após terem conquistado a demarcação de seus territórios. Existem alguns povos que ainda lutam pela demarcação de seus territórios. Nossos povos indígenas esperam que o governo lhes ofereça as condições necessárias para sua sobrevivência por meio da implementação de políticas públicas. Melhorando as já existentes, como de educação, saúde e assistência social, e criando outras políticas públicas no campo de sua organização econômica.

Compartilha da ideia do Papa Francisco em Fratelli Tutti de que no capitalismo não há salvação para os pobres?

Ainda não li a Encíclica Fratelli Tutti. Parece-me estranho que a Fratelli Tutti retome a palavra capitalismo, pois desde a “Caritas in veritate” essa palavra foi silenciada pelo Ensino Social da Igreja, já que o capitalismo nos últimos séculos adquiriu significados muito diversos. O que estamos sofrendo é essa economia que vivemos aqui e agora, sempre criando crises para os outros, entre os quais estão os pobres, e que muitos governos estão implementando seguindo seu roteiro, uma economia baseada na atividade financeira e não produtiva, manipulada pela “mão invisível” de quem manda... essa economia não salva ninguém, nem os próprios economistas e muito menos os pobres.

Com Pier Luigi Maria Dell’Osso

ESCÂNDALOS FINANCEIROS NO VATICANO:

DEPOIS DE 40 ANOS, O ROTEIRO É O MESMO”

Pier Luigi Maria Dell’Osso, que, como procurador-geral da Bréscia, na Itália, coordenou as investigações sobre o desaparecimento e a morte da pequena Yara Gambirasio, foi membro da Direção Nacional Antimáfia. E, pelas suas competências no combate à lavagem de dinheiro, é membro do Conselho de Estabilidade da Itália e leciona em Roma e em Sevilha . A reportagem é de Maria Antonietta Calabrò, publicada em L’Huffington Post. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

Que impressão você teve sobre o novo escândalo vaticano ligado à compra do edifício da Sloane Ave, em Londres?

Depois de 40 anos, sinto que estou revendo o mesmo filme: incompetentes, fraudados, coniventes. Mas o IOR não está mais envolvido. Pelo contrário, a denúncia partiu do IOR, que deu início às investigações da magistratura vaticana. Certamente, essa é a diferença, porque, a partir de 2010, começaram os procedimentos para os controles dos operadores financeiros profissionais dentro do Estado vaticano. O IOR e a APSA estão submetidos ao controle da AIF, a Autoridade de Inteligência Financeira, e à revisão periódica dos avaliadores do Comitê Moneyval.

A segunda visita in loco, após a de 2012, terminou há pouco tempo e dará origem a um relatório de avaliação recíproca na primavera de 2021.

Sim, mas a questão é que, para um setor submetido às regras internacionais, descobrimos agora outro, fora da jurisdição da AIF: o fundo da Secretaria de Estado. E, nesse setor, podem ser verificadas as costumeiras e velhas dinâmicas: uma incompetência generalizada, fraudes e conluios.

Porém, foi justamente graças ao Fundo Paolo VI da Secretaria de Estado que os credores estrangeiros do Banco Ambrosiano foram pagos na hora, chegando a uma transferência de 250 milhões de dólares que encerrou a disputa com eles. Não é assim?

Certamente, mas também naquela época a Santa Sé não reconheceu qualquer responsabilidade pelas famosas cartas de patrocínio que serviram para Calvi criar, no último ano de vida do banco, uma enorme destruição de recursos, atraindo compradores estrangeiros de ações que, de outra forma, ele não poderia ter. Calvi, por sua vez, escreveu uma carta de indenização ou carta-resposta que isentava o IOR, mas criava as condições para uma fraude contra os financiadores estrangeiros. Em suma, uma história opaca onde fraudados e fraudadores dificilmente eram distinguíveis. Ainda que a soma “devida” aos credores estrangeiros era muito, muito maior, mesmo considerando apenas as dívidas do Ambrosiano de Milão (sem falar das subsidiárias estrangeiras), os liquidatários decidiram aceitar esse montante inferior que, no entanto, permitia pelo menos uma recuperação parcial do dano. Também naquela época, porém, o Vaticano afirmou ter sido fraudado por Calvi. Como se vê, são todas histórias um pouco semelhantes. Mesmo 40 anos depois.

Mas você também falava de incompetência?

Certamente, os prelados, aqueles que decidem, muitas vezes, sem culpa, não sabem bem do que estão lidando, porque não é o trabalho deles. Vou dar um exemplo: o próprio Marcinkus, das Bahamas, conhecia o Golf Club, e ia lá para isso, mas era Calvi quem fazia tudo em Nassau. É claro que, nesse quadro, é fácil passar para o passo posterior, ser enganado ou, para alguns, entrar em conluio com sujeitos externos que se aproveitam disso.

Por falar em Marcinkus, você emitiu o famoso mandado de prisão contra ele pela bancarrota do Ambrosiano. Foi uma iniciativa muito chamativa...

Certamente, o mandado de prisão solicitado e obtido por mim também dizia respeito, além de Marcinkus, aos dois diretores-executivos do IOR. O Vaticano, a fim de defender Marcinkus até o fim – apesar de o IOR ser considerado pela Cassação, ao contrário da minha tese, como ente central da Igreja e, portanto, imune à jurisdição italiana com base no antigo Tratado de Latrão – até o nomeou presidente do Governatorado. Porém, sem um barrete cardinalício. Mas ele ficou preso, mesmo que dentro dos Muros Leoninos...

Por que o Papa João Paulo II o defendeu com a espada desembainhada?

Também por causa do financiamento ao Solidarnosc, o sindicato polonês, obra, aliás, benemérita. Há outra semelhança entre as duas histórias, de ontem e de hoje. O cenário de Londres, onde o prédio do último caso foi comprado e onde Calvi se encontrou com a morte... Londres é o maior centro financeiro europeu, e, temos que dizer, por causa dos muitos perfis offshore. Mas Calvi, na minha opinião, depois de passar pela Suíça, foi para Londres, também porque estava convencido de que lá estava suficientemente perto dos bens do IOR, dos bens do Vaticano.

Se lhe pedissem um conselho hoje, o que sugeriria ao Vaticano?

Que todo o sistema econômico vaticano não seja reformado, mas refundado do zero, porque senão, por trás de um setor que foi “regularizado”, aparece outro que reproduz depois os problemas do primeiro. Foi o que aconteceu no último caso. Eu entendo que pode haver motivos de sigilo ao sustentar as obras religiosas em países de risco, mas esse facto não pode ser um pretexto para outros negócios.

O escândalo mais recente também se misturou com casos bancários italianos (como o banco Popolare de Bari).

Sim. E também vejo a presença de alguns mediadores que foram protagonistas do caso Ambrosiano: não seus filhos ou netos, mas precisamente eles, os mesmos, depois de 40 anos.

Com Emilio Santiago Muíño

SEM AS CIÊNCIAS SOCIAIS, A CRISE CLIMÁTICA É SIMPLESMENTE INCOMPREENSÍVEL”

A mudança climática não é apenas um assunto ambiental, de um planeta que aquece. Também é uma questão da ação e percepção humanas, e abordar o aspecto social parece ser cada vez mais relevante para reconhecer e tratar o problema. Isto se demonstra pelo fato do Conselho Superior de Investigações Científicas – CSIC ter criado, este ano, o primeiro campo dedicado a analisar as “transformações antropológicas da crise climática”, que acaba de ser atribuído ao antropólogo social Emilio Santiago Muíño (Ferrol, Espanha, 1984). No novo posto, a tarefa do pesquisador galego será a de aprofundar a complexidade social e cultural de fenômenos relacionados a esta crise ecológica, algo que avança e pode abarcar “desde um conflito por uma mina de lítio em Cáceres às assembleias cidadãs pelo clima, o movimento dos coletes amarelos, a atividade lobista ou aspectos da vida cotidiana como os hábitos de transporte dos cidadãos”. A entrevista é de Marta Montojo, publicada por El Diario. A tradução é do Cepat /IHU

Com seu novo posto, inicia-se no CSIC uma linha de pesquisa de antropologia climática. O que é a antropologia climática?

Poderíamos chamar de antropologia climática a atenção que a antropologia social e cultural está dando ao problema da crise climática e as transformações que impõe. É um campo de trabalho acadêmico, com suas publicações e seus projetos de pesquisa. Mas também é um enfoque científico de vital importância para a deliberação cidadã sobre o que é a crise climática, como nos afeta e o que podemos fazer, prioritariamente para a mitigar, e como plano B para nos adaptar às suas consequências.

Por que isto é importante para a ciência da mudança climática ou a ação climática?

Sem as ciências sociais, a crise climática é simplesmente incompreensível. O aquecimento global não é um problema atmosférico. É um problema social e cultural que se manifesta “atmosfericamente”. É originado por determinado tipo de economia concreta, baseada no crescimento perpétuo e a queima de combustíveis fósseis. Também por determinada cosmovisão, algumas relações de propriedade específica, alguns costumes, alguns imaginários sobre o que é a tecnologia e a vida boa, e algumas pautas de consumo insustentáveis. É administrado pela a política, com suas diferentes ideologias, suas lutas de interesses. E afeta de modo muito desigual em função de você ser rico ou pobre, de um país do Norte ou do Sul, homem ou mulher, de um grupo cultural dominante ou periférico. De facto, nem todos os povos do mundo concebem a relação com a natureza da mesma maneira. Essa palavra, do modo como a empregamos, carece de sentido para uma parte da humanidade. Não é uma entidade separada da sociedade que possamos explorar, mas parte da comunidade em que se vive. Por tudo isso, não se pode pensar a insustentabilidade como um problema técnico, de engenharia. Os dados estão aí, mas a crise climática é algo muito mais complexo: é um problema social, cultural e político. E a antropologia, como ciência social que estuda como as sociedades apresentam modos muito diferentes de interpretar o mundo e vivê-lo em suas práticas cotidianas, tem uma contribuição imprescindível. Sem a antropologia nossa compreensão da crise climática ficará capenga. No puramente científico, e também no político. No científico, por exemplo, não se pode desconectar a crise climática do capitalismo. Mas não somente como sistema econômico, também como projeto de civilização. No político, para apresentar outro exemplo simples, se alguém pensa que uma iniciativa de mitigação climática poderá funcionar de cima para baixo, sem levar em conta qual é o seu impacto do ponto de vista das comunidades onde será implementado, no melhor dos casos fracassará. E no pior, terá êxito à custa de impor um colonialismo climático.

As mobilizações da juventude pelo clima são o movimento pelos direitos civis do século XXI?

Todas as sociedades humanas são conflitivas. Evoluem e se transformam, mudam e se adaptam, por meio de conflitos, às vezes para o bem e às vezes para o mal. Quando Marx disse que a história é a história da luta de classes, captou muito bem a ideia, ainda que de modo um pouco reduzido, pois nem sempre os grupos humanos se enfrentam na forma de classe contra classe. E, sem dúvida, as mobilizações dos jovens pelo clima, que são um fenômeno novo e esperançoso, são um conflito que pode transformar a nossa sociedade. Neste caso, para melhor. Poderíamos relacionar esta luta com a luta pelos direitos civis, sem dúvida. Mas também com muitas outras lutas modernas. É claro, com a luta ambientalista clássica, em relação a qual os jovens pelo clima significam uma nova onda. Mas também de alguma forma com a luta do movimento operário, as lutas antirracistas e decolonias, a luta feminista... Todas apresentam uma fórmula parecida: aqueles que sofrem, aqueles que perdem por carência na ordem social e política estabelecida, rebelam-se. E conseguem articular uma identidade de luta comum, marcando um horizonte de mudanças desejáveis, e entrando na disputa pelo rumo que a sociedade deve tomar. Além disso, as conexões e a herança recebidas pelos movimentos sociais mais antigos são evidentes. A transformação social sempre é uma corrida de revezamentos. Hoje, são os jovens que a assumem pelo clima.

O que esta “nova onda” de ativistas climáticos está fazendo diferente?

As lutas dos jovens pelo clima apresentam uma novidade fascinante. Estão colocando sobre a mesa uma demanda imprescindível, mas inédita: a democracia geracional. Estão dizendo aos de 50 e 60 anos que não possuem o direito de decidir sobre suas vidas, sem levá-los em conta, porque as piores consequências de não se fazer nada contra a emergência climática serão pagas pelas e pelos jovens, não pelos altos funcionários, nem os altos executivos que hoje monopolizam decisões climáticas que, além disso, serão irreversíveis. Os avanços democráticos são sempre novos direitos conquistados. E a juventude pelo clima está abrindo espaço para novos tipos de direitos que a crise ecológica colocará na linha de frente de disputa: a democracia geracional, o direito ao futuro, que estamos perdendo. Nada garante a vitória nesse combate, na história não há leis, nem certezas. Mas, sim, o certo é que se conseguirmos evitar uma mudança climática catastrófica, nas próximas décadas, terá sido graças à sua irrupção rebelde, desobediente, pela sua bela maneira de dizer: por aqui, não.

Qual é a sua leitura a respeito do momento em que estamos agora em relação à ação climática, também no plano institucional?

Por um lado, estamos tornando a mudança climática um ponto forte na agenda política oficial da Europa. Isso tem algumas implicações muito amplas: desde a constatação de que está em trâmite uma lei de mudança climática - enfim -, até o fato que um organismo de pesquisa como o CSIC considere que a mudança climática é uma linha prioritária de pesquisa, a médio e longo prazo. A mudança climática se tornou um problema social oficial e a sociedade está orientando suas instituições a buscar uma solução. Mas isto não significa que a solução que será dada esteja apontando para a direção correta, aos meios corretos e ao ritmo correto. Sem dúvida, é uma primeira vitória, mas não é suficiente. O resultado dependerá agora de como estas ações, estas políticas públicas e estas linhas de inovação se desenvolverão. O que está claro é que a mudança climática já é um tema a respeito do qual nenhum partido político pode se esquivar e que estará nas decisões de orçamentos públicos, mas a pandemia gerou uma situação social complexa, porque estamos em um momento muito complicado para enfrentar o lado difícil da emergência climática. É conjunturalmente um momento ruim para a luta climática, entre outras coisas porque a mobilização está limitada pelas próprias características do confinamento e das restrições para proteger a saúde pública, mas também porque os imaginários sociais estão ainda muito impactados pela dor e o drama que a pandemia significou. Enquanto não sairmos do assunto pandemia, será difícil que a mudança climática volte a estar no centro da preocupação coletiva do modo como, por exemplo, esteve em 2019. O que é paradoxal porque não há melhor forma de recompor nossas economias e nossos países do que fazendo da transição ecológica uma coluna vertebral da reconstrução.

Com Edgar Morin

O PODER DA INCERTEZA

Entramos na era das grandes incertezas.” Filósofo, sociólogo, antropólogo, Edgar Morin completou 99 anos em julho, sem nunca esgotar a sua curiosidade intelectual, reavivada pela crise da Covid-19, que faz com que os governantes pareçam navegadores sem coordenadas. A bússola de Morin indica uma direção precisa. “Cambiamo strada” [Mudemos de rumo] é o convite do intelectual francês no seu livro recém-publicado pela Raffaello Cortina Editore. A entrevista é de Anais Ginori, publicada por La Repubblica. A tradução é de Moisés Sbardelotto /IHU

O grande pensador propõe “quinze lições do coronavírus” sob a insígnia da solidariedade, da inteligência, do advento da “ecopolítica” e do fim da “tecno-economia”. “Não conseguindo dar um sentido à pandemia, aprendamos com ela para o futuro”, escreve Morin. Seus ensaios vão da elaboração do luto aos novos mitos do espetáculo, da ecologia à reforma do bem-estar social. Em uma época de simplificações, o filósofo teoriza há muito tempo sobre o “pensamento complexo”, a união dos opostos e dos saberes, como ele explicou nos seis volumes do “Método”, a obra enciclopédica escrita entre 1967 e 2006, e pela qual ele ganhou o apelido de “Diderot do século XX”.Eis a entrevista.

Você começa o livro com uma anedota pessoal: sua mãe adoeceu com a gripe espanhola, e essa experiência marcou o seu destino.

O psiquiatra Boris Cyrulnik demonstrou como um grave trauma pode nos dar, se conseguirmos sobreviver, uma capacidade de resistência que ele define, com um termo emprestado da física, “resiliência”. Eu resisti desde o nascimento. A menina que se tornaria minha mãe tinha problemas cardíacos por causa da gripe espanhola. Quando ela se casou, disseram que ela não poderia ter filhos, porque o parto seria fatal para ela. Ela engravidou pela primeira vez e abortou. Na segunda vez, a abortista clandestina lhe deu produtos que não funcionaram. O feto resistiu. Foi assim que eu nasci.

A resiliência vale para as nossas sociedades?

Embora não se corra o risco de uma morte imediata, uma grande crise social, política ou econômica constitui uma prova para a sociedade, que pode sair enfraquecida ou fortalecida. Podemos ir rumo a uma desagregação ou experimentar uma forma de resiliência e sair regenerados, apenas se mudarmos de rumo.

Você nunca usa o termo “revolução”.

A revolução soviética e depois a revolução maoísta produziram uma opressão que vai em sentido oposto à missão de emancipação. Seu fracasso restaurou aquilo que queriam liquidar, ou seja, capitalismo e religião. Em 1968, alguns acreditavam em uma prova geral de revolução; outros, que a economia havia sido atingida de morte pela revolta. Eu interpretei o fenómeno apenas como uma concessão momentânea da nossa civilização.

Desta vez, não se trata apenas de mais uma concessão? A “tecnoeconomia”, que você tanto critica, está sempre presente.

É verdade: hoje, a globalização “tecnoeconômica” é mais hegemônica do que nunca. Com a sua sede insaciável de lucro, ela foi o motor da degradação da biosfera e da antroposfera, provocou fechamentos nacionalistas, étnicos e religiosos. Mudar de rumo pode parecer impossível. Mas todos os novos caminhos que a história humana conheceu eram imprevistos, filhos de desvios que puderam criar raízes e se tornar forças históricas.

O sucesso dos Verdes na França é um sinal de que algo está se movendo?

Os sucessos dos Verdes nas eleições municipais dão esperança de progressos em nível local. Mas, para passar para o nível nacional, há uma grande distância. A ecologia deve ser integrada em um verdadeiro New Deal político-econômico-ecológico-social-cultural a fim de reverter o hipercapitalismo e diminuir as desigualdades. A ecopolítica agora é de importância primordial. Estamos apenas no início.

As epidemias existem desde o início dos tempos. O que é realmente inédito?

A impotência da ciência diante de um vírus desorientador, o caráter multidimensional da crise que atinge a vida de cada indivíduo, de todas as nações e do planeta inteiro. Há a sensação de que o mundo de amanhã não será mais como o que conhecemos.

Os cientistas lutam em posições diferentes, como os políticos.

A ciência não tem um repertório de verdades absolutas. Apenas a teologia se considera infalível. As teorias científicas são mutáveis, e os princípios aparentemente mais sólidos do século XIX, como o determinismo, dão lugar a outras teorias. A ciência, assim como a vida política, vive de conflitos e debates. As controvérsias, longe de serem uma anomalia, são necessárias para os progressos da ciência. O progresso científico nasce da competição e da cooperação. O risco, no entanto, é que a competição se torne concorrência, como na busca o tratamento ou da vacina, em detrimento da cooperação, que permitiria acelerar a eliminação do vírus.

Macron tem razão quando fala da necessidade de se “reinventar”?

Devemos nos repensar para nos reinventar. Mudar de vida e mudar de rumo. Muitas transformações parecem necessárias ao mesmo tempo: são necessárias reformas econômicas, sociais, pessoais, éticas. Por toda a parte no mundo, graças a essa crise global, apareceram miríades de nascentes, miríades de riachos, que, unindo-se, poderiam formar córregos e confluir em cursos de água, dos quais poderia nascer um grande rio.

Mudar de rumo significa seguir em frente sem esperar ter certezas absolutas?

Não se pode conhecer o imprevisível, mas é possível prever a eventualidade. A vida é uma navegação num oceano de incertezas, através de ilhas de certezas. Embora oculta ou removida, a incerteza acompanha a grande aventura da humanidade, cada história nacional, cada vida individual. Porque cada vida é uma aventura incerta: não sabemos primeiro aquilo que nos espera, nem quando a morte chegará. Todos fazemos parte dessa aventura, repleta de ignorância, desconhecido, loucura, razão, mistério, sonhos, alegria, dor. E incerteza.

Com Mark Alizart

A CRISE ECOLÓGICA É O CAPITALISMO COM MENOS PESSOAS

Temos que voltar a tomar o mundo como os sans-culottes tomaram a Bastilha, como os insurgentes de 1917 tomaram o Palácio de Inverno, posto que este mundo é nosso, nos pertence e é porque nos foi roubado que não se faz justiça”, escreve Alizart (Londres, 1975) ao final de Golpe de Estado climático, livro traduzido [para o espanhol] por Manuela Valdivia e publicado por La Cebra, editora independente de Adrogué [Argentina], dirigida por Cristóbal Thayer e Ana Asprea, que também publicou, do mesmo autor, Criptocomunismo e Perros. A entrevista é de Silvina Friera, publicada por Página/12. A tradução é do Cepat /IHU

Por que afirma em “Golpe de Estado climático” que a causa ecologista retrocede?

Basta ver quem conduz as maiores nações do mundo! Trump, Putin, Xi Jinping, Modi, Scott, Johnson, sem falar de Orbán e Duterte... Não apenas não há um ecologista no cargo, como também há pessoas que, conscientemente, fazem guerra à ecologia. E isso apesar de 40 anos de difusão da palavra ecologista. Ou melhor, ‘por causa’ disso, agora, sabem que são eles ou os ecologistas. Eles ou a democracia. Portanto, fazem o que for para que sejam eles. De agora para frente, apostam tudo.

Os governantes estão informados do aquecimento climático, há 40 anos, por meio do Relatório Charney. Em que estágio da “negação” do aquecimento climático estamos hoje? Como entender a passividade e a falta de ações?

Estamos na última fase: a destruição ativa dos ecossistemas. Os loucos que nos governam acabaram com o clima-ceticismo. Foi útil para eles, mas o seu tempo já passou. Não é mais possível esconder das populações que o clima está em crise. Portanto, chegou o momento de convencê-las de que tudo ‘bem’ que o clima esteja em crise. É o que Tony Abbott, o ex-primeiro-ministro australiano contratado por Boris Johnson para avançar nas negociações do Brexit, disse textualmente em 2018: “a mudança climática provavelmente seja boa”.

É interessante quando você destaca a relação que há entre aqueles que rejeitam a ecologia, porque a crise ecológica ameaça essencialmente, no momento, as populações indígenas e os pobres da Ásia, África e o Oriente Médio, com o fato de que quando ficou evidente que pela Covid-19 morriam os idosos, os mais pobres e os trabalhadores menos qualificados, vários dirigentes políticos, em diferentes países do mundo, argumentaram que a economia não deveria ser sacrificada por “essa gente”. O lucro ilimitado empurra o capitalismo a flertar com sua própria destruição?

O capitalismo nunca flerta com a sua destruição. De facto, é preciso chegar a compreensão disso, caso contrário, não se compreende nada. O capitalismo passa por fases de destruição, mas elas são sempre criadoras, conforme destacou (Joseph) Schumpeter. Dito de outro modo, a crise ecológica é para o capitalismo apenas uma oportunidade para obter mais lucros ou para obtê-los em outra parte, sobre as costas de outras pessoas. A crise ecológica não é o fim do capitalismo, é o capitalismo com menos pessoas, aquelas que morrerão por causa dela, os losers da crise ecológica, como diria Trump. Do mesmo modo, a Covid não foi o fim do capitalismo, apenas levou a uma transferência de riqueza dos pequenos comerciantes para a Amazon.

Poderia explanar a sua afirmação: “Os megaincêndios da Amazônia são os nossos incêndios do Reichstag”, em razão do resgate que faz de Trotsky-Luxemburgo-Marx?

O incêndio do Reichstag foi orquestrado para que Hitler não perdesse as eleições legislativas. Neste incêndio perpetrado pelos nazistas, subjazia a ideia de endossar a responsabilidade do mesmo a um comunista para demonstrar que se seu partido não fosse reeleito massivamente, os socialistas destruiriam a Alemanha. Neste momento, uma lógica similar está por trás da exaltação das revoltadas nos Estados Unidos. Trump quer convencer sua base de que é ele ou o caos. Mas esta também é a lógica que se aplica aos megaincêndios florestais e, de modo geral, ao aquecimento climático: são tentativas de Golpe de Estado. Trata-se de agravar a crise climática para fragilizar a democracia. Tudo leva a crer, com efeito, que com a multiplicação dos dramas ecológicos, o mundo será desestabilizado por ondas migratórias e revoltas de fome. Mas um mundo desestabilizado é um mundo que se arma e se protege, que declara a lei marcial, que impõe o toque de recolher e que, ultimamente, suspende suas eleições democráticas. Trump, outra vez ele, por outro lado, não escondeu o seu desejo de adiar as eleições por causa da Covid. Mas o mais extraordinário de tudo isto é que os climatofascistas podem se apropriar das acusações dos ecologistas e dizer que os responsáveis pela crise climática são “o capitalismo”, a “modernidade” e “o progresso”, não eles! Então, deste modo, fazem um duplo golpe: desestabilizam a democracia liberal e, além disso, podem encarcerar os liberais e os democratas!

O que os ecologistas podem aprender, em termos de ativismo político, da associação “Act Up”?

Na época em que surgiu a SIDA, muitos militantes dedicaram seu tempo, em primeiro lugar, para acompanhar os doentes esperando que os governantes e os laboratórios encontrassem um remédio. A Act Up nasce ao tomar consciente de que este remédio não chegaria nunca, pois a morte de homossexuais, prostitutas, viciados em drogas e haitianos não importava aos governantes, inclusive, essas mortes caiam bem para alguns políticos. Desde então, a Act Up decidiu assumir as cartas no assunto e ir aos laboratórios e ministérios para forçar os cientistas e os políticos a trabalhar. Do mesmo modo, a guinada da Act Up da ecologia que apoio consiste em que os ecologistas parem de acreditar que os governantes e os industriais reduzirão voluntariamente as emissões de dióxido de carbono ou a produção de plástico. Isso não irá acontecer porque, como disse, hoje, estamos em uma fase terminal, na qual as nações se servem do clima para fazer guerra entre elas e para fazer guerra contra uma parte de sua população. É preciso, portanto, que os ecologistas de agora em diante sigam até as empresas, os ministérios e também os laboratórios de pesquisa, que obriguem as pessoas a fazer o seu trabalho.

Por que as mortes da crise ecológica não são contadas? Por que não se mostra a “curva” das emissões de carbono que teremos que achatar, assim como a cursa de contágios da Covid-19?

Porque são como os mortos da SIDA: invisíveis. São velhos, imunodeprimidos, distantes, de cor... A única razão pela qual a curva da Covid-19 foi tão demonstrada é porque se tinha medo de adoecer. Nos Estados Unidos, agora que se sabe que atinge mais as pessoas invisíveis, trabalhadores sociais, pessoas de cor, Trump não a mostra mais, e inclusive deu ordens para que os mortos não sejam mais contados.

Que impacto a eleição presidencial nos Estados Unidos pode ter, caso seja vencida por Joe Biden, um candidato sensível ao ecologismo?

Biden é literalmente a última chance para o planeta. Sei que pode parecer um pouco dramático dizer isto nestes termos, mas se o país mais poluidor do planeta seguir poluindo nos outros quatro anos como até agora, e sobretudo caso não assuma a liderança mundial em torno do clima e não impeça os outros de poluir, será o fim.

Greta Thunberg prometeu que logo seguirá com suas campanhas e iniciativas, em pausa pela pandemia, respeitando os protocolos sanitários que forem necessários. As direitas no mundo, que não costumam respeitar nenhum tipo de protocolo, saíram para se manifestar nas ruas, sem cumprir o distanciamento necessário, sem usar máscaras, com um discurso ‘conspiranoico’ da pandemia. Por que as direitas estão nas ruas e as esquerdas em casa?

Boa pergunta! Há muitas coisas. Em primeiro lugar, a direita é mais rica que a esquerda. O capital está do seu lado, e o capital se organizou para vencer a luta de classes e a batalha das ideias, criando todas estas redes de informação que transmitem sua propaganda dia e noite. Entre essas ideias difundidas, está a de que o Ocidente cristão branco luta no momento para sobreviver. Foi dito até a exaustão aos brancos norte-americanos que logo seriam uma minoria. Para os cristãos em todo o mundo, de que seriam superados por outras religiões, com o Islã na liderança. Para os Ocidentais, de maneira geral, que suas antigas colônias, África, Índia, China, iriam ultrapassá-los, que lutem com a força louca dos condenados à morte. Pela esquerda, a organização é mais frágil. As divisões ideológicas mais fortes. E o sentimento de que sua vida está em jogo menos forte. Certamente, existe o aquecimento climático, mas o essencial da intelligentsia de esquerda é suficientemente próspera, velha e instalada nas democracias moderadas, para não ter que sofrer suas consequências diretas. Vendo bem, vacila, assim como a esquerda alemã, em 1933, frente ao nazismo. Existe uma esquerda que diz que, apesar de tudo, as coisas não são tão graves. Outra que diz que frente à violência sempre é possível opor o diálogo. Outra, enfim, que continua apegada a questões sociais e societais. Tudo isso compõe um ponto de vulnerabilidade que não tem ideia do que vai cair sobre si.

No último capítulo do livro, você recorda um livro de Bataille, “A parte maldita”, que buscava pensar uma economia humana que imite a natureza, uma espécie de comunismo cósmico capaz de triunfar sobre o duplo beco sem saída do capitalismo e o sovietismo. Em que aspectos esse projeto político segue atual?

É atual em tudo. Bataille estava apaixonado pela termodinâmica que é a ciência mais geral dos sistemas caóticos, e a respeito da qual alguns aspectos podem ajudar a compreender e estabelecer um modelo dos ecossistemas. A meteorologia, por exemplo, é uma aplicação das leis da termodinâmica, de modo que o estudo do clima e da ecologia dependem também dela. Neste sentido, seu comunismo cósmico era uma espécie de “ecologia do capital”. Nos anos 1970, os teóricos da bioeconomia recuperaram esta ideia e se aprofundaram nela. Após alguns anos, descobre-se que o próprio Marx pensava que o socialismo precisava assumir a forma de uma gestão termodinâmica da economia. “O ecossocialismo” é hoje o nome desta corrente de pensamento que é o único escudo contra o carbofascismo.

Como você está vivendo esta “grande pausa” que a pandemia implica? Conseguiu escrever e ler ou é tamanha a incerteza que até seus próprios hábitos se viram alterados?

Não, não pude trabalhar muito. Foi uma comoção muito grande. Mas vi na pandemia, infelizmente, a confirmação da ideia central do [livro] Golpe de Estado climático. A pandemia foi administrada segundo os princípios do darwinismo social. E agora, posteriormente, são liberadas todas as pulsões autoritárias do Estado. Infelizmente, a Covid não é mais que o trailer do desastre climático para o qual nos dirigimos.

Edição 160, Setembro 2020

Com Boris Cyrulnik e conduzida por Stéphanie Combe

OS 'PRIMEIROS 1000 DIAS' DA CRIANÇA

É fundamental acompanhar os “primeiros 1000 dias”, do 4º mês de gravidez ao 2º aniversário da criança: esta é a questão destacada no relatório apresentado no dia 8 de setembro a Adrien Taquet, secretário de Estado encarregado da Criança e das Famílias. A bola está agora com o presidente, que se manifestará sobre o assunto antes do final do mês. Ótima entrevista com o neuropsiquiatra Boris Cyrulnik, que presidiu a comissão de 18 especialistas. A entrevista é conduzida por Stéphanie Combe e publicada por La Vie. A tradução é de André Langer /IHU

Você teria imaginado a criação dessa comissão multidisciplinar há alguns anos?

Não! Quando comecei a trabalhar nesta perspectiva em 1982, todos estavam contra mim. Alegava-se que havia risco de confusão e falta de profundidade; era melhor que cada um fosse especialista em sua área. Os Prêmios Nobel têm sua utilidade e eu não os questiono. Mas reunir nossas experiências como profissionais – neurologistas, psicólogos, parteiras, etc. – permite a coleta de conhecimentos transversais que também têm sua utilidade. Nós, lavradores, que temos os pés no chão, também “elaboramos”, para usar a expressão de Rabelais. Essa atitude passou a ser recomendada pelo CNRS, pela Agência Regional de Saúde e pela Agência Nacional de Segurança Sanitária.

Como surgiu a questão da primeira infância?

Na França, existem fortes entraves culturais à sua acolhida: as mulheres grávidas e as mães jovens ficam deprimidas, os pais não sabem como substituí-las, os empregadores fazem caretas diante da perspectiva da licença maternidade e paternidade. Quando eu era criança, apenas 3% dos jovens chegavam ao bacharelado. Aos 20 anos, todas as minhas namoradas já tinham um ou dois filhos, enquanto os rapazes trabalhavam no campo, na fábrica ou em oficinas de artesanato. Antigamente, um nascimento era algo que se festejava, a família não estava longe, apoiando. A jovem mãe estava cercada de cuidados. Atualmente, uma jovem dá à luz seu primeiro filho, em média, aos 31 anos. Recordo que a fertilidade atinge o auge por volta dos 25 anos, razão pela qual as gestações são tão medicalizadas e mais angustiantes, marcadas por exames, exames de sangue e ansiosas esperas de resultados. A nova mãe estudou, começou sua carreira e, às vezes, nunca segurou um bebê nos braços! Ela se encontra sozinha, com esse pequeno ser de quem não sabe cuidar e que a deixa angustiada. Ela se refugia nos livros para pais que fornecem informações, mas não dão segurança. A mãe dela está longe, ainda trabalhando, sobrecarregadas como estão os avós de hoje. Essa revolução dos costumes ocorreu em apenas duas gerações.

Esta falta de acolhimento seria, pois, resultado da nossa sociedade individualista, caracterizada pela fragilidade dos seus laços e pela sua baixa taxa de fecundidade?

A jovem mãe sofre com o isolamento e com o facto de que tudo recai sobre os seus ombros. Na Idade Média e até o final do século XIX, havia uma “cama de ‘relevailles’”, situada no centro da sala. Se a parturiente dissesse “estou cansada”, as outras mulheres da casa lhe diziam para se deitar e assumiam os cuidados da criança. Ela nunca ficava sozinha. Nessa cultura, tinha-se o direito de ficar cansado. A explosão do burnout não encontraria a sua explicação no fato de que esse direito natural e legítimo ao descanso nos foi confiscado? Os números são alarmantes: 10% a 15% de depressão materna nos bairros ricos, até 30% em bairros pobres.

E quanto aos homens?

Os homens também estão enfrentando uma revolução cultural sem precedentes, eles que trabalhavam em grupos e agora estão por conta própria, sozinhos atrás de seus computadores. O culto do desempenho que induz a uma corrida permanente já está produzindo seus efeitos deletérios em países onde a competição social é estimulada. Encontrar seu lugar não é fácil. Os rapazes estão abandonando cada vez mais os estudos no Japão, Canadá, Estados Unidos, e isso está acontecendo também na França. No Japão, por exemplo, as avaliações escolares dos adolescentes de 12 anos mostram um atraso de dois anos em relação às moças. Este fenômeno sociocultural é preocupante, tanto mais que seu corolário é uma valorização cultural da violência viril, que existe em países em guerra: os rapazes devem aprender a lutar para serem respeitados e sobreviver.

Entre os riscos que pesam sobre a mulher e a criança, você destaca a violência doméstica. Como você explica esses riscos hoje?

A violência doméstica não pára de aumentar, apesar das campanhas públicas de prevenção, e o confinamento suscitou situações dramáticas. Esses maus-tratos começam na maioria dos casos quando a mulher está grávida. São obra de um homem imperialista que quer impor sua lei. Porém, pela maternidade, a mulher lhe escapa: ela não se dedica mais inteiramente a ele. E ele não suporta isso! Esses tiranos domésticos – eles mesmos em grande dificuldade – procuram redescobrir essa relação de exclusividade e, por falta de elaboração suficiente, buscam impô-la pela violência.

Como o estresse materno afeta a criança, mesmo no útero?

Os trabalhos científicos sobre a epigênese mostram que o estresse de uma mãe grávida atravessa a barreira placentária. O bebê engole 4 a 5 litros de líquido amniótico impregnado de cortisona, um hormônio tóxico para o seu cérebro. Alguns bebês nascem com danos cerebrais. Eu insisto: não é culpa da mãe, mas sim do seu infortúnio. Vem de sua história, da precariedade social, da violência conjugal, da guerra, dos acidentes da vida, de uma morte, etc. A desigualdade social começa no útero.

E continua no berço...

As capacidades de um bebê se desenvolvem espontaneamente ao seu máximo na idade de 3 ou 4 meses, se ele estiver em um ambiente afetivo seguro. A aquisição da linguagem será mais rápida. Françoise Dolto recomendava falar com os bebês. Sua hipótese agora é confirmada pela neurociência. Assim, Ghislaine Dehaene mostrou que o simples fato de falar esculpe o planum localizado no lobo temporal esquerdo, que se tornará a zona da linguagem. Ao contrário, o que acontece quando o bebê se desenvolve em um ambiente vulnerável onde não é solicitado, onde ressoam os choros, onde a ansiedade é generalizada? Aos 3 anos, quase 70% das crianças têm um apego seguro e um estoque de 1.000 palavras. Mas, inversamente, quase 1 em cada 3 desenvolveram um apego inseguro e seu estoque de palavras é de apenas 200. Adivinhe quem terá sucesso...

Em última análise, a questão não se limita ao bem-estar do recém-nascido: através dele, afeta o conjunto da sociedade e ajudaria a combater as desigualdades sociais?

Exatamente, é por isso que devemos colocar o bebê no centro do debate público. Um nascimento se prepara bem antes da concepção... A OMS considera que os 1000 dias começam na data da entrevista do 4º mês de gravidez. À medida que os trabalhos da nossa comissão avançavam, parecia-nos que, na realidade, este período começa antes da concepção, quando os futuros pais se encontram! Muitas coisas dependem de como eles saberão articular suas personalidades. Quando pai e mãe se conjugam harmoniosamente, segundo a bela expressão da psicóloga e terapeuta familiar Elisabeth Fivaz, eles criam um ambiente sensorial afetivo tranquilizador, que permitirá que a criança seja tutelada até falar.

Você também está defendendo uma pequena revolução na licença maternidade, proposta calorosamente acolhida pela União Nacional das Famílias. Num comunicado de 11 de setembro, ela espera que esta recomendação passe a fazer parte das leis de Seguridade Social 2021 e 2022...

Os pais precisam de tempo. É urgente reformar nosso sistema francês de licença maternidade. A licença maternidade de 16 semanas (para os primeiros dois filhos) até 26 semanas (a partir do terceiro filho) é muito curta. Também queremos uma medida mais forte: que a licença paternidade seja estendida para 9 semanas. Todos os nossos trabalhos convergem – Blaise Pierrehumbert, doutor em psicologia e especialista em apego, Isabelle Roskam, professora de psicologia do desenvolvimento na Universidade de Louvaina e diretora de estudos em desenvolvimento infantil e parentalidade: a intervenção afetiva precoce do pai é fundamental. Ele desempenha um papel nas interações com a criança, mas também com sua esposa, ao estar perto e oferecer-lhe segurança. A sociedade deve dar a ele a oportunidade de estar mais presente. Propomos também a constituição de uma licença paternidade de 9 meses, que pode ser partilhada entre os dois progenitores, com um nível de compensação suficientemente atrativo, correspondente a pelo menos 75% dos rendimentos percebidos.

Esse “Curso 1000 dias” que você quer ver instituído não corre o risco de ser percebido pelos pais como uma obrigação adicional?

O objetivo é, ao contrário, desenvolver o sentimento de confiança e de competência dos pais. Uma em cada 5 mulheres que estão esperando o primeiro filho não se beneficia da preparação para o nascimento, de acordo com a Pesquisa Nacional Perinatal de 2016. Como informá-la sobre a importância de uma alimentação equilibrada, do ritmo de vida, dos perigos do álcool? Este curso incluiria, portanto, sessões de informação pré-natal, sessões de preparação para o parto e a parentalidade. Parece-nos importante que os pais se beneficiem de uma equipe profissional identificada até o pós-parto, com um acompanhamento domiciliar personalizado reforçado em caso de fragilidades (deficiência, transtornos mentais, etc.). Defendemos também a criação das “Casas dos 1000 dias”, um espaço não medicalizado onde os jovens pais pudessem se encontrar, trocar experiências, fazer amizades... Esse tipo de estrutura já existe no Brasil ou nos países nórdicos. A integração de um grupo de pais favorece a troca de experiências entre os pares e a ajuda mútua, tranquiliza e também possibilita a identificação precoce de atrasos neuro-comportamentais, por exemplo: “Ei! ele ainda não se senta”, “ela ainda não fala...”. Na França, devemos nos reconectar com uma cultura de proximidade.

No entanto, conhecemos as limitações orçamentárias que as maternidades e o PMI [proteção materno-infantil] sofrem. Temos os meios para a sua ambição?

O ministro da Saúde e da Solidariedade Olivier Véran e o secretário de Estado encarregado da Criança e das Famílias Adrien Taquet parecem receptivos a esta causa, que gostaríamos que fosse nacional, e mostram uma verdadeira vontade política. Nossa comissão convidou Tove Mogstad Slinde, conselheiro sênior do Ministério da Educação e da Pesquisa da Noruega. Os países do Norte da Europa nos precederam nesta reforma. A acolhida da criança depende de seu desenvolvimento socioemocional, psicomotor e cognitivo. Investir na primeira infância é, portanto, um bom negócio financeiro. Porque uma criança insegura fica enfadada com a escola, mal socializada e sem perspectivas profissionais. Há uma boa chance, infelizmente, de ela afundar na delinquência. Portanto, será necessário ajudá-la durante toda a vida e custará caro à sociedade. De um ponto de vista estritamente orçamentário, a prevenção, mais do que a reparação, representa uma economia social. Quanto ao custo humano, seu benefício é, obviamente, incomensurável.

Felipe Calabrez entrevistado por Patrícia Fachim /IHU

Populismo de esquerda: um chamado à ação política para canalizar e dar sentido às insatisfações sociais

O esgotamento do establishment que governou o capitalismo nos últimos anos abre novas janelas de oportunidades políticas, diz o pesquisador Felipe Calabrez, a propósito novo livro de Chantal Mouffe, 'Por um populismo de esquerda' que “poder ser lido como uma chamada à ação política”, a partir de uma nalise à conjuntura e às razões que levaram à ascensão da ultradireita na Europa e nos EUA e de Bolsonaro no Brasil.

Por que compreende a ascensão da direita, tanto nos EUA quanto no Brasil, como um fenômeno social e não como um fenômeno político?

Muitos têm buscado compreender a ascensão de líderes políticos de extrema direita, que possuem certas características e discursos que não os configuram propriamente como pertencentes à direita tradicional. Cito em específico as análises de Chantal Mouffe, Nancy Fraser e também Wendy Brown. Algumas dessas análises identificam o que chamam de crise de hegemonia, ocasionada por um processo no qual os consensos básicos em torno da dominação e da legitimidade do exercício do governo pela classe política tradicional são quebrados. Nesses momentos, o acúmulo de insatisfações difusas facilita o surgimento de figuras de retórica agressiva, capazes de canalizar tais insatisfações contra os “poderosos”, ou “os políticos”, ou qualquer outro inimigo interno ou externo. Essa retórica, que, diferentemente da direita “tradicional”, se apresenta como antissistema, contribui com o enfraquecimento da autoridade dos partidos tradicionais. Apesar das diferenças nas trajetórias aqui e nos EUA, tivemos isto em comum: tanto Trump quanto Bolsonaro se elegeram atacando políticos e partidos tradicionais. O recente discurso de Trump por ocasião da oficialização de sua candidatura à reeleição pelo Partido Republicano reiterou essa visão ao bradar contra o que chamou de “estrutura de Washington”, a versão americana do nosso “menos Brasília”. Mas esses fenômenos políticos, defendo em consonância com as análises que falam em “crise de hegemonia”, só podem ser lidos como resultado de um processo ocorrido, antes de tudo, fora da política institucional, no tecido social e suas contradições. Eles seriam, dito de modo muito resumido, a expressão política daquele conjunto de insatisfações sociais.

Ao comentar o novo livro de Chantal Mouffe, Por um populismo de esquerda, o senhor disse que o título é um “chamado à ação política e soa especialmente provocativo no atual contexto brasileiro”. Pode explicar essa ideia? Que tipo de ação política o livro propõe e por que o considera provocativo para o contexto brasileiro?

O livro de Chantal Mouffe pode ser lido como um chamado à ação política – e na verdade a autora já explicita desde o início tratar-se de um livro político –, pois seu objetivo seria, em suas palavras, “refletir na conjuntura”, isto é, refletir sobre os processos políticos a partir de um posicionamento, de uma maneira não neutra, e buscando compreender os discursos e as subjetividades políticas para pensarmos estratégias de enfrentamento à atual tendência a que ela chama de populismo de direita, que é regressiva em todos os aspectos. O tipo de ação política que o livro propõe não passa pela sugestão de algum programa político específico. Sua proposta é na verdade o desdobramento de um conjunto de elementos teórico-críticos dos quais eu destacaria aqui a visão adversarial de política e o antiessencialismo. O primeiro diz respeito à noção de que o antagonismo é próprio do político e que cabe à política democrática lidar com isso. O antiessencialismo parte da ideia de que os sujeitos não possuem uma identidade política fixa e estrutural (por exemplo, a ideia de que o trabalhador assalariado, não proprietário dos meios de produção, terá, por conta de sua posição na estrutura, uma autoidentificação com a “classe trabalhadora” e votará em partidos de esquerda). Ao contrário disso, para a abordagem antiessencialista, o agente social é constituído por um conjunto de posições discursivas não fixas, sua identidade é sempre contingente e precária. Caberia então a uma estratégia progressista ou de esquerda compreender isso e saber trabalhar discursivamente uma estratégia política inclusiva e emancipadora e com ideais pluralistas e democráticos. O livro me parece especialmente provocativo no contexto brasileiro por pelo menos duas razões. Primeiramente o termo “populismo”, que costuma carregar conotação pejorativa, no Brasil ganhou uso corrente, sendo usado diariamente por especialistas, economistas e jornalistas de variedades, para se referir a toda e qualquer política que se proponha (genuína ou demagogicamente, não importa) a melhorar as condições econômicas dos mais pobres (aqui cabe aumento de salário mínimo, ampliação de gastos sociais ou toda e qualquer proposta que exija orçamento para os mais pobres, o que é feito sob o prisma de um fiscalismo rudimentar e cada vez mais desafiado pela realidade). Em segundo lugar é provocativo no nosso atual contexto que, dadas as diferenças com os contextos estadunidense e europeu, também poderia ser entendido como “momento populista”, cujo ápice seria a eleição de 2018. A pergunta que a esquerda ainda não soube responder é: Como um sujeito agressivo e despreparado conseguiu convencer parte expressiva do eleitorado de que era um outsider contrário à “velha política” e às elites econômicas, sendo morador de condomínio fechado e parlamentar por anos seguidos? Como conseguiu convencer que representava “o povo” contra as “elites poderosas” enquanto encampava o projeto destas últimas? A verdade é que ele soube canalizar um conjunto difuso de insatisfações com “tudo o que está aí” (uma mistura de insatisfações com o sistema político, com os partidos tradicionais, com as elites econômicas e intelectuais). Nosso desafio político seria, como sugere Mouffe olhando para Europa e Estados Unidos, compreender como esse processo foi possível e como chegamos até aqui, em lugar de simplesmente culpar seus eleitores por aderirem a discursos raivosos que miram em um conjunto de inimigos fictícios (artistas que se beneficiariam de uma lei de fomento, estudantes que fariam balbúrdia com dinheiro público, esquerdistas, políticos em geral, para não falar do velho fantasma do “comunismo”). O ponto de Mouffe é o de que precisamos compreender que a adesão a tais discursos pode ter sido inicialmente motivada por insatisfações legítimas que apenas ali encontraram expressão política. Reparem que esse discurso roubou inclusive parte da linguagem originária da esquerda, como a questão dos privilégios e de opressões estruturais, invertendo seu sinal. O desafio, portanto, seria articular tais demandas por meio do discurso democrático e inclusivo, e que seja capaz de se construir em oposição às oligarquias de fato. Dito de modo simples, é preciso identificar o verdadeiro adversário.

Mouffe declarou recentemente que para impedir o desenvolvimento do populismo de direita é preciso desenvolver um populismo de esquerda. Concorda? O que caracterizaria um populismo de esquerda e em que aspectos ele se diferenciaria ou se aproximaria dos últimos governos de esquerda da América Latina e do populismo de direita?

Esse posicionamento de Mouffe é uma decorrência coerente de suas posições teóricas e analíticas e de seu diagnóstico histórico e político da Europa e EUA. Se é verdade que Tony Blair e sua terceira via no Reino Unido significaram uma capitulação da crítica ao capitalismo e da visão adversarial de política em favor de um “consenso no centro” (Blair dizia que não há política de esquerda ou de direita, apenas política certa ou errada), e se é verdade que com o tempo isso gerou nos eleitores a visão de que “os políticos e partidos tradicionais são todos iguais”, já que suas condições econômicas não foram substancialmente melhoradas por nenhuma das alternativas, ou melhor dizendo, diferentes partidos não representam alternativas de fato diferentes, fica mais fácil entender o atual caldo de insatisfação. A linguagem tecnocrática que predominou desde os anos 1990, mesmo entre os partidos social-democratas na Europa, não tem mais apelo entre os eleitores. Vejam o que foi o governo Hollande, na França, do Partido Socialista. O que Mouffe está dizendo é que isso tudo produziu uma insatisfação que se tornou uma energia contestatória difusa, momento em que frases como “a política correta” não tem mais apelo entre os eleitores. É hora de confrontar, e nisso a direita tem levado a melhor. E para entender e enfrentar isso é preciso uma visão sofisticada e precisa do que são os sujeitos, a que são movidos na política, como dão sentido aos discursos que são feitos e que remetem às suas situações concretas no mundo social. É preciso levar em conta, por exemplo, os afetos que operam nesse processo. Não estamos falando do eleitor racional de Anthony Downs, nem do eleitor da classe operária clássica. O populismo então seria caracterizado pela estratégia política capaz de organizar um discurso que produza sentido para esses sujeitos e seja capaz de canalizar suas insatisfações. Para onde e “contra quem” é o que diferenciaria o populismo de esquerda do populismo de direita. O primeiro deve articular aquelas demandas (a princípio, democráticas) para um projeto inclusivo, progressista, marcado pela tolerância etc. O que o populismo de direita tem feito nos EUA, por exemplo, é articular as insatisfações de parte da classe trabalhadora americana em decadência num vocabulário xenófobo. Nesse sentido, eu tendo a concordar com Mouffe que precisamos de um populismo de esquerda (frise-se, desde que bem entendido seu conceito). E nesse sentido sua análise permite-nos pensar em alguns líderes latino-americanos que na primeira década dos anos 2000 lideraram governos progressistas. O fato de um indígena como Evo Morales liderar um país predominantemente indígena, ou de Rafael Correa, no Equador, ou sim, Chávez, na Venezuela, liderarem governos abertamente adversários de forças políticas e econômicas tradicionais e mobilizarem base popular de apoio com seus discursos, os aproxima da noção de Mouffe. Agora o que se tornaram tais governos, seus problemas e contradições internas, é assunto mais complexo e no Brasil tem se tornado um tabu, espécie de non-starter no debate. Sem dúvida a prática política de tais governantes demonstrou não se coadunar muito bem com os procedimentos da democracia liberal e suas instituições e mecanismos de freios e contrapesos. Penso que nesse aspecto trata-se de um dilema que marcou o século XX. As instituições liberais podem servir de barreira a transformações mais radicais nas estruturas de poder e dominação (como reclamavam os socialistas), mas sua existência é fundamental para garantia das liberdades, e sua destruição pode trazer o pior. Além disso, prefiro entender os processos menos sob a ótica do moralismo político e mais pela ótica do realismo político. Alguém imagina ser possível governar a Venezuela tranquilamente com instituições liberais? Como já ouvi dizer, pior que o governo da Venezuela é a oposição na Venezuela. Talvez isso ajude a compreender a tendência ao fechamento do regime. Tem outras tantas questões aí, inclusive geopolíticas, que são frequentemente ignoradas pelos analistas. Enfim, cada país tem suas características próprias. Mas algo que esses processos possuem em comum é a centralidade que o líder carismático adquire. No caso de Mouffe, seu esforço é em conjugar a preservação de instituições liberais com um reforço da noção de soberania popular rumo à radicalização da democracia. Vale dizer também que ela não condena a ideia de que um líder carismático conduza o processo.

Um dos aspectos centrais do populismo de esquerda, segundo Mouffe, é questionar o modelo neoliberal. O que seria um modelo alternativo?

Mouffe na verdade pouco desenvolve o que entende por modelo neoliberal, citando rapidamente aspectos como privatização, financeirização e desmonte dos sistemas de bem-estar social europeus. Mas no fundo podemos entender que a oposição estaria entre a lógica mercantil e a lógica da democracia e da cidadania. Nesse sentido um modelo alternativo seria aquele que questione os mecanismos que permitiram os atuais níveis de concentração de renda e que permitem que uma oligarquia financeira estabeleça os limites entre o possível e o impossível na política, sempre preservando seus ganhos. Estamos falando aqui das respostas que os governos deram à crise de 2008 e que fizeram proliferar um conjunto de movimentos contestatórios nos EUA e na Europa. Estamos falando da lógica tecnocrática que colocou o berço da democracia antiga de joelhos diante de credores internacionais mesmo tendo à frente nas negociações um Ministro das Finanças combativo como Yanis Varoufakis. Um modelo alternativo seria a superação dessa lógica e a possibilidade de que projetos realmente alternativos de sociedade possam ser debatidos e disputados politicamente, um modelo em que a política democrática e a soberania popular possam confrontar a pura lógica da acumulação privada em favor de formas coletivas de produção e organização, em favor de formas mais ecológicas e em favor de quaisquer demandas que emergirem das disputas políticas. Na visão de Mouffe, um modelo alternativo seria a própria radicalização da democracia.

Política e socialmente, o que significa apostar num populismo de esquerda?

Acompanhando o raciocínio de Mouffe, seria apostar na possibilidade de radicalização da democracia, na possibilidade de articulação de demandas em torno de princípios democráticos e de cidadania. Seria apostar na possibilidade de construção de uma vontade coletiva através de uma “cadeia de equivalências” capaz de contrapor um “nós”, o “povo”, a um “eles”. Traçar essa fronteira política é fundamental.

Em artigo recente, o senhor assinala que o diagnóstico central do livro de Chantal Mouffe é que “a crise da formação hegemônica neoliberal produziu o momento populista que marca a atual conjuntura” e que está em aberto, neste momento, “a possibilidade de construção de uma ordem mais democrática”. Pode explicar o que é este momento populista e quais são as possibilidades que vê nesse sentido?

O momento populista de que fala Mouffe representa o esgotamento do establishment que governou o capitalismo nos últimos anos. Trata-se na verdade de uma crise da formação hegemônica neoliberal. As contradições do modelo que tanto os partidos da centro-esquerda quanto da centro-direita tentaram gerir, com ares mais ou menos progressistas (aqui indico a análise de Nancy Fraser sobre o que chamou de “neoliberalismo progressista”), têm gerado prolongada insatisfação em populações que não vislumbravam mais alternativas nos partidos tradicionais e seus discursos amenos. Por essa razão é que no pós-2008 surgiram diversos movimentos contestatórios, à esquerda e à direita. Isso se traduziu na emergência de discursos mais radicalizados à esquerda, tanto dentro do Partido Trabalhista Inglês, com Jeremy Corbyn, quanto no Partido Democrata dos EUA, com Bernie Sanders. O primeiro sofreu derrota histórica e o segundo teve sua candidatura freada pela lógica decisória e burocrática de seu próprio partido. Mas ao menos pode-se dizer que eles chacoalharam os termos do debate. As possibilidades podem ser pensadas a partir desta constatação: o consenso anterior está sendo contestado. É quando as disputas se acirram. É quando o novo pode nascer.

Como a crise da democracia, a explosão das desigualdades e a descoesão social podem gerar transformações? Que possibilidades de transformação vislumbra no Brasil, por exemplo?

Veja, falar em “crise da formação hegemônica” ou mesmo crise dos partidos políticos tradicionais não é necessariamente a mesma coisa que “crise da democracia”. Sobre isso existem diagnósticos diferentes. Para manter a linha que vínhamos seguindo, eu diria que historicamente é em momentos de certa conturbação da ordem e dos consensos estabelecidos que as coisas acontecem, é quando abrem-se janelas de oportunidades.

Por que, na sua avaliação, seguindo o diagnóstico político de Mouffe, os partidos social-democratas “são incapazes de compreender o momento populista e que as demandas articuladas pelos partidos populistas de direita são democráticas”?

O diagnóstico de Mouffe (e aqui estou simplificando-o) é o de que os partidos social-democratas europeus sucumbiram a uma visão “pós-política” incapaz de oferecer alternativas reais ao modelo hegemônico, e isso por uma série de razões. Além disso teriam ficado presos a uma visão esquemática e incapaz de compreender os processos políticos dinâmicos e uma série de demandas e subjetividades políticas e oferecer a elas uma expressão política viável. Além de tudo, sobretudo no caso dos EUA, como analisado por Fraser, os elementos progressistas vieram à cena política presos a um “identitarismo” que além de não questionar as bases “econômicas” do modelo ainda ganharam um verniz elitista que menospreza os cidadãos menos “cosmopolitas” e ilustrados. A reação da “classe trabalhadora tradicional”, interiorana, pouco ilustrada, branca e ressentida, veio com Trump.

Quais são as principais demandas da sociedade brasileira hoje, não compreendidas pela esquerda e pelos sociais-democratas?

Veja, antes de responder a essa questão (e aproveito aqui para responder sobre que possibilidades de transformação vislumbro para o Brasil, como perguntado acima) é preciso fazer uma ressalva: a análise de Chantal Mouffe é centrada em EUA e Europa. De alguma maneira estamos supondo que o diagnóstico dela se aplica ao Brasil de hoje. Eu penso que nos ajuda bastante, mas é preciso aparar algumas arestas. O Brasil vinha de um processo de relativa estabilidade política organizada em torno do polo PT-PSDB. Sabemos que as experiências do PT no governo federal foram marcadas por um projeto de inclusão pelo consumo e por um conjunto de políticas públicas de corte progressista e inclusivo. Sabemos também que o PT, enquanto partido no governo, reproduziu a lógica que parece inerente às relações entre poder público e dinheiro, que envolve favorecimentos, irrigação de contratos, dinheiro não declarado financiando campanhas, enfim, uma combinação perversa entre patrimonialismo e lógica mercantil, aquilo a que chamamos de corrupção. Por isso esse processo é repleto de contradições. Acho interessante a interpretação da antropóloga Rosana Pinheiro-Machado. Ela entende que a relativa melhora econômica de certa camada da população (via consumo) e algum grau de inclusão social podem gerar a sensação de "querer mais", e isso ajuda a explicar a adesão em massa aos protestos difusos que eclodiram em 2013. Se olharmos para as Jornadas de 2013 em sua heterogeneidade, encontraremos demandas democráticas pela ampliação de bens públicos. Mas também intolerância e um antipartidarismo de traços fascistas. Tinha tudo ali. E no geral o caráter daqueles protestos também era antissistema. Eu penso que parte de nossa tragédia é o seguinte: essa bomba de insatisfações difusas explodiu bem no colo da única experiência progressista que tivemos no Brasil recente. Parece um paradoxo. Mas é compreensível. Essa geração jovem que, parte dela, ascendeu economicamente, conhece o PT governo, o PT establishment, o PT sistema. A imagem de Fernando Haddad ao lado de Geraldo Alckmin em 2013, logo no início dos protestos, diante das câmeras, explicando, com base em cálculos de planilhas, que não seria possível revogar o aumento das tarifas, é simbólica. “É a mesma coisa”, muitos poderíamos pensar. Tínhamos ali então um sentimento antissistema, antipartidos, tanto da parte daqueles que, à esquerda, reivindicavam melhorias e bens públicos (lembremos que o Movimento Passe Livre - MPL não se vinculava a partidos), quanto da parte daqueles que canalizaram sua frustração e insatisfação contra "a política", a "corrupção" e, num pulo, contra "a esquerda". A esquerda que, frise-se, era governo. E por essa via canalizou-se a revolta não dos que ganharam “economicamente”, mas dos que sentem que perderam. Uma certa classe média, que viu reduzir seu padrão de vida, incomodou-se com o aumento do custo do trabalho doméstico e de pouca qualificação, refletido no preço dos serviços, e ainda por cima se sentiu censurada por não poder mais fazer piada sobre pobre, preto e veado. Essa reação chamou os avanços culturais de “mimimi”, demonstrando sua completa incapacidade de compreensão da realidade social, e deu força política a uma agenda de desmonte de políticas públicas que materializaram aqueles avanços. Por um conjunto de razões esse ódio ganhou expressão política na forma de antipetismo. Desde 2013 a polarização ideológica só se acirrou. E eu digo que nossa tragédia foi a bomba de insatisfações explodir no colo do PT não para eximir o PT de seus erros, mas pelos efeitos que isso produziu em termos de hegemonia e projetos. A queda de popularidade dos políticos foi drástica e generalizada naquele momento. O resto da história é conhecida. Dilma se reelegeu numa eleição acirradíssima, a oposição não aceitou a derrota eleitoral, o então presidente da Câmara declarou guerra ao governo em rede nacional e seu vice passou-lhe a perna. Orquestrou-se a derrubada da presidente eleita por meio de uma aliança pragmática entre as forças políticas mais fisiológicas e reacionárias do Congresso e a lógica financeira mais vil que o capitalismo periférico é capaz de produzir. E esta última embarcou em 2018 com Bolsonaro e a promessa de seu "fiador econômico" de que o Estado venderia ativos e reduziria investimentos públicos. A promessa de retomada do crescimento é cínica e eles sabem. A lógica rentista e curto-prazista das finanças não precisa de crescimento econômico sustentado. Pelo menos não no curto prazo. Anunciaram a "Ponte para o Futuro", mas viemos ladeira abaixo. E nesse processo todo quem melhor captou certas demandas da sociedade foi a direita reacionária. Ela soube explorar politicamente o conservadorismo de parte expressiva da sociedade brasileira, desengavetou uma forte "agenda de costumes", fez o "trabalho de base" mais eficiente de que se tem notícia: as Igrejas Evangélicas. Trabalho que não começou ontem.

No artigo, o senhor também menciona a urgência de construir uma resposta política de esquerda a essas demandas. Que elementos fundamentais deveriam constituir essa resposta?

Não tenho uma resposta pronta para isso. Penso que, para começar, precisamos entender melhor essas demandas. Para isso precisamos democratizar muita coisa. Não basta a esquerda entender as "demandas do povo". É preciso democratizar os processos eleitorais em nível local, reduzindo o poder do dinheiro e do compadrio nas eleições, para que o "povo" também ocupe postos de poder. Mas é preciso entender que parcela significativa das periferias, homens e mulheres mais atingidos pela lógica perversa da mercantilização das coisas, são evangélicos e, portanto, organizam sua visão de mundo em torno de certos valores. É preciso entender a lógica do individualismo, a chamada subjetividade neoliberal. É preciso entender também que temos uma sociedade bastante conservadora, que temos fortes traços autoritários. Não há antipetismo que explique sozinho como a mensagem de Bolsonaro não causou ojeriza em muita gente. O casamento entre conservadorismo de valores e neoliberalismo nos EUA foi analisado por Wendy Brown num livro magnífico. No Brasil temos algumas análises, como a de Rosana Pinheiro-Machado, que mencionei acima. Procurem no Youtube um canal chamado "Favelado Investidor". Tudo isso nos ajuda a entender. O fato é que sem construir hegemonia, sem "descomunizar o senso comum", disputar visões, regimes de verdade, não há saída. "Bandido bom é bandido morto", ao contrário do que muitos preferem pensar, não é um chavão usado pela elite. Pessoas das periferias pensam isso. Elas são, afinal, afetadas pela violência. Penso no Rio de Janeiro e em como é possível as pessoas conviverem com a violência do tráfico e a violência policial, do Estado, e elegerem políticos que falam abertamente em atirar na cabeça. Mas o Rio de Janeiro também produziu Marielle Franco, e Marielle deixou um legado e uma energia de luta fortíssima. Enfim, eu não tenho a reposta correta, mas tento pensar publicamente.

Como analisa a recente declaração do ex-presidente Lula, de que é plenamente possível que o PT possa não ter um candidato para disputar a presidência em 2022? O que isso significaria para a esquerda?

Confesso que não acompanhei essa declaração. De todo modo, como venho dizendo, é preciso disputar hegemonia. Sem isso, ficamos presos a falsas polarizações. Como vimos, temos um cenário eleitoral extremamente volátil. Repito as perguntas que fiz no artigo-resenha sobre Chantal Mouffe: Onde está o lulismo enquanto fenômeno eleitoral? Teria sido possível ele se metamorfosear tão rapidamente em seu "oposto", o Bolsonarismo? O que explica que muitos eleitores tivessem Lula como primeira opção e Bolsonaro como segunda? O PT ainda é o único grande partido de esquerda do país, com base, capilaridade e força institucional. Nesse sentido é importante que ele dispute eleições. Por outro lado, sua estratégia, sobretudo em 2018, não me pareceu a mais razoável. Talvez fosse o caso de o partido aceitar ser vice de chapa, dependendo da conjuntura específica e da estratégia que ela demandar. Veja na Argentina o que Cristina Kirchner conseguiu fazer, sendo vice de Alberto Fernández e voltando ao poder depois de todo tipo de perseguição da oposição e de parte da imprensa. O fato importante é que por lá conseguiu-se resgatar um projeto alternativo ao neoliberalismo radicalizado, depois que este produziu seus habituais estragos. Por aqui, para falar sobre as perspectivas para o Brasil, ainda tem muito estrago para fazer. É o que convencionou-se chamar de "reformas", que prometem, cinicamente, trazer de volta o crescimento. A ironia é que eles mesmos sabem que elas não trarão, e, por isso mesmo, há um enorme conflito no governo, pois notaram que a agenda de Paulo Guedes gera miséria e não emprego. O problema é que não é possível se reeleger agravando a pobreza e piorando a vida das pessoas. Bolsonaro percebeu isso e tem confrontado em certos momentos seu posto Ipiranga no que diz respeito à prorrogação e ao valor do auxílio emergencial e à retomada de investimentos públicos. Notem que já o estão chamando de populista por conta disso. Neste momento, o casamento entre o autoritarismo reacionário e o neoliberalismo selvagem está abalado. A contradição é que uma política desejável agora, do ponto de vista econômico e social, pode nos gerar uma tragédia política, que é a continuação da direita reacionária no poder. As chances eleitorais da esquerda em 2022 dependem de como ela entender esse processo e de como será capaz de formular uma mensagem política que forneça um repertório democrático e de tolerância que sirva como trilha para as insatisfações populares.

Com Evgeny Morozov

sou a favor da tecnologia, mas vinculada a um sistema político e económico diferente para alcançar justiça”

Há anos, quando ainda parecia que a internet iria resolver todos os nossos problemas, o ensaísta bielorrusso Evgeny Morozov (Salihorsk, 1984) já era uma espécie de enfant terrible digital e um açoite ao Vale do Silício. Comparou Mark Zuckerberg a Putin e chamou Tim O'Reilly, o teórico digital que popularizou o termo Web 2.0, de “charlatão”. Em resposta, foi chamado de alarmista, exagerado, e “tecnófobo”, rótulo que ainda hoje rejeita. Conta que fica muito entediado com o debate tecnológico atual, centrado na regulamentação e na crítica às grandes empresas tecnológicas. Ao mesmo tempo, considera que ainda não estamos vendo o fundo da questão: o capitalismo. A entrevista é de María Sánchez Díez, publicada por El Diario. A tradução é do Cepat /IHU

Durante anos, alertou sobre os efeitos danosos da internet, e algumas de suas previsões parecem ter se materializado. Sente-se validado agora que seu ponto de vista, que era tão contestado, se generalizou?

Nunca tive nenhum problema com a tecnologia como tal. E em todos os meus artigos, especialmente nos últimos cinco ou seis anos, esforcei-me para ressaltar que a tecnologia não pode ser analisada de forma abstrata. É possível analisar a forma como o nosso sistema econômico se expressa através dela. Um sistema econômico diferente, baseado em um conjunto diferente de valores, demandas, formas de organizar a produção e a vida social, expressaria seus valores através da tecnologia de forma diferente. Eu não vejo o Facebook, o Twitter e o Google como tecnologia. Vejo que os agentes econômicos e os agentes históricos usam habilmente seu poder político para fazer o que se supõe que devem fazer, que é maximizar os lucros. Sou a favor da tecnologia, mas precisa estar vinculada a um sistema político e econômico muito diferente para alcançar justiça, solidariedade, igualdade e outros valores. Caso se vincule com o capitalismo e sua forma mais neoliberal e financeirizada, gerará miséria, precariedade e desesperança.

Na prática, como seria esse sistema mais justo no qual desvinculamos o progresso tecnológico do capitalismo e o associamos a outros valores?

Temos exemplos históricos de sistemas para compartilhar o conhecimento, cujo acesso financiamos: a biblioteca pública moderna. Para poder imaginar que tipo de alternativas são possíveis e poder implementá-las, deve-se politizar a questão da propriedade. Também a questão de quem pode experimentar as novas tecnologias e imaginar o futuro. Se isso é apenas permitido àqueles que trabalham nas startups e nos fundos de capital de risco, haverá um futuro que será de obtenção de lucros com seus dados, com publicidade e essencialmente cobrando de você pelo acesso a certas coisas. Não será necessariamente um futuro no qual as coisas sejam oferecidas como infraestrutura pública, informadas pela ideia de que os indivíduos têm direitos sociais, econômicos e humanos, mas pela ideia de que as pessoas (ou, melhor, os consumidores) precisam comprar acesso a serviços. São paradigmas diferentes e opostos. O paradigma dos direitos, em que temos direito ao atendimento médico, educação, e outras coisas que temos em um sistema democrático, em oposição a um sistema do Vale do Silício, que é um sistema em que não temos direitos e somos tratados como consumidores que compram serviços. E, ocasionalmente, esses serviços podem acabar, caso se tornem menos rentáveis para a empresa. Não há garantias. Você está sozinho em uma transação comercial, com uma contraparte que é muito mais poderosa e que pode cortar a relação a qualquer momento que desejar. Este modelo não é consequência da tecnologia, é uma consequência das relações de poder.

Como avalia alguns dos esforços de regulamentação que foram realizados, sobretudo na Europa, para buscar caminhar nessa direção?

Se você continua operando em um paradigma no qual a obtenção de lucros e a redução de custos são os objetivos principais, nenhuma lei permitirá alcançar o grau de humanidade que se procura. Você pode humanizá-lo aqui e ali, mas dado que o capitalismo atual é completamente global, financeiro e digital, não se pode mais esperar obter o mesmo tipo de efeito de domesticar o capital como uma besta dos partidos social-democratas de 100 anos atrás, introduzindo uma jornada de trabalho mais curta ou fazendo com que os capitalistas paguem mais impostos. Não acredito que no ambiente atual isso seja suficiente. A regulamentação está correta, mas precisa ter um propósito político e econômico explícito, tem que questionar o modelo econômico subjacente. Não pode ignorá-lo e simplesmente dizer: O que nos importa é esta privacidade ou a proteção de dados ou o direito ao esquecimento, e ignorar o elefante na sala. A Europa ignorou porque, por razões geopolíticas, nunca se permitiu questionar adequadamente sua dependência do modelo estadunidense, sua proximidade com Washington. Não pôde questionar muitos dos compromissos que teve que fazer, durante a Guerra Fria. E continuou assim nos anos 1990 e 2000. Agora, chegou um ponto em que a China está claramente fazendo as coisas estrategicamente. Os estadunidenses acumulam tanto poder político que podem jogar o jogo capitalista muito melhor que os europeus. E os europeus ficaram com um conjunto de eufemismos: humanismo e a defesa dos direitos dos indivíduos, privacidade. Mas as condições subjacentes que fazem com que todas essas coisas sejam sustentáveis a longo prazo, que permitem algum tipo de prosperidade, algum tipo de crescimento que inclua todas as camadas da sociedade e não apenas os bilionários, estão se desmoronando e eventualmente desaparecerão. Essas conversas tecnocráticas que temos na Europa sobre como enfrentar os gigantes digitais ou o que fazer com a propriedade de dados provavelmente não vão muito longe. Arrecadaremos algum dinheiro nas margens, mas se não vamos começar uma conversa sobre para onde vamos econômica e geopoliticamente, ou se estamos no caminho correto, não obteremos um mundo tecnológico muito diferente ao que já temos. É como quando a União Europeia multa o Google em uma base antimonopólio e anticoncorrência, mas não aborda de verdade seus mecanismos de vigilância e as lógicas que permitem ao Google ganhar dinheiro com os nossos dados. É um erro se centrar nesta empresa como uma espécie de maçã podre que faz coisas erradas. O Google faz tudo corretamente, caso o entendamos como agente capitalista. Estão seguindo essa lógica ao pé da letra. O que falta não é um modelo melhor para o Google, mas uma visão a nível europeu sobre como se quer organizar a sociedade para que seja mais beneficiada, dadas todas as ameaças que temos, da mudança climática à desigualdade. Não estou convencido de que ajustar o regime fiscal ou introduzir regras mais rigorosas de regulamentação de dados ou buscar monetizar nossos dados sejam medidas suficientes para superar as ameaças que os desafios como a desigualdade, o descontentamento popular, a mudança climática e muitos outros problemas nos apresentam. Os políticos simplesmente não são suficientemente corajosos para reconhecer que não possuem os meios e os mecanismos para abordar esses problemas dentro do marco atual. A esta altura, as grandes tecnológicas se tornaram um bode expiatório muito conveniente que os políticos podem apontar e dizer: Bem, não é nossa culpa, a culpa toda é de Mark Zuckerberg, da Apple e de Bill Gates e, tão logo os controlarmos, as coisas voltarão à normalidade. É uma ilusão e é tão populista como qualquer outra coisa. Permaneci muito calado, nos últimos anos. Não quero participar do circo de apresentar as grandes tecnológicas como malvadas que se atreveram a desafiar as normas do capitalismo. Parece-me risível esta repentina descoberta de que existem estas maçãs podres entre nós. Não é a minha luta.

Antes, mencionou a China e, no passado, escreveu sobre como alguns países estão tentando recuperar uma soberania tecnológica, adotando um enfoque intervencionista. Poderia falar um pouco mais a respeito dos diferentes modelos entre países que reafirmam essa soberania e dos que não fazem nada?

Estão fugindo da uma hegemonia de um só ator na esfera global tecnológica atual. E esse ator são os Estados Unidos, que conseguiram transformar sua hegemonia financeira e militar em hegemonia tecnológica. A razão pela qual países como China, Rússia e Irã buscam recuperar ou ganhar soberania tecnológica é porque entendem que, sem ela, também não obterão soberania econômica, militar, financeira, política ou de qualquer outro tipo, incluída a cultural. A Europa quer fazer o impossível: reivindicar soberania tecnológica, ao mesmo tempo em que permanece na órbita estadunidense, quando se trata de comércio e desenvolvimento. Gostaria de continuar vendendo carros, mantendo boas relações e tropas estadunidenses em solo europeu. A China não vê a si mesma como um país na órbita dos Estados Unidos. Vê a si mesma como o seu igual, como uma companhia que gostaria de ter sua própria política econômica independente. Claramente, pensam (acredito que razoavelmente) que não poderiam controlar todo o seu dinheiro e seu sistema financeiro, se este transcorresse pelo Stripe, Facebook ou Google. Nessa perspectiva, é algo completamente lógico. Podemos debater que um regime político que não seja uma democracia irá abusar da soberania tecnológica, mas, essencialmente, a questão se reduz a: o que é o correto para a China?

Por curiosidade, você está acompanhando a campanha presidencial estadunidense? O que pensa das propostas dos candidatos no âmbito tecnológico?

Os democratas querem romper as grandes tecnológicas, com a exceção talvez de [Joe] Biden e [Pete] Buttigieg. Não considero particularmente excitante. Se você analisa a linguagem utilizada por [Elizabeth] Warren, mas também por [Bernie] Sanders, pensam que passar de um grande Google a dez Googles menores é a resposta correta. E não pode ser, não para um político socialista. A resposta correta deveria ser buscar detectar infraestruturas alternativas de consumo comum de serviços que possam ter um efeito transformador na sociedade. Você precisa ser capaz de imaginar novas instituições para acessar o conhecimento e agir sobre elas, o que é possível porque o Vale do Silício, apesar de todos os seus pecados, nos proporcionou os materiais iniciais. Seria possível olhar para a Amazon e pensar em um sistema que distribua bens de maneira muito mais eficiente com todos esses dados ao seu alcance. Mas não precisa ser um sistema com fins lucrativos, assim como nossas bibliotecas. Infelizmente, a maioria das pessoas de esquerda não usou o tempo pensando nisso como um modelo, um exemplo, algo que deveria informar seu projeto, não apenas ser algo que possam tributar e regulamentar. E isto é o que me faz pensar que a maioria das forças de esquerda nos Estados Unidos, mas também na Europa, não tem ideias. É um projeto que basicamente busca aplicar as ferramentas do século XIX, como os impostos e a regulamentação, e não possui meios para criar algo que possa transcender isso. Nesse sentido, a campanha estadunidense é tão entediante como a maioria das campanhas eleitorais europeias.

Em um de seus artigos, dizia que os desenvolvedores de ‘software’ deveriam ser considerados responsáveis por algumas das coisas que constroem. Presenciamos uma onda deles, no Vale do Silício, que rejeitaram suas criações, nos últimos tempos. Acredita que veremos mais exemplos assim?

Vêm em ondas. Tivemos uma onda similar, nos anos 1970, quando os empregados de grandes companhias tecnológicas se negaram a trabalhar para elas porque estavam fornecendo armas ao Vietnã ou trabalhando para o Pentágono. Há coisas mais interessantes que estão acontecendo no âmbito sindical, com a sindicalização de muitas das forças tecnológicas que anteriormente não estavam sindicalizadas. Mas fora isso, não trataria como algo único ou excepcional, de modo algum. Coincide com um período particularmente feio na história dos Estados Unidos, com Trump no poder, o que claramente cansa as elites liberais. Há muitos liberais que são muito mais sensíveis a que sua companhia esteja trabalhando com a Defesa ou as autoridades de imigração. Estou bastante seguro de que se Bernie Sanders for eleito, sua relutância em trabalhar com o Pentágono desaparecerá de repente, o que não significa que o império estadunidense ou o establishment militar estadunidense irão embora. Continuará como continuou com Barack Obama, mas as pessoas dormirão melhor à noite.

Quais são as suas previsões para o futuro da Internet?

Tento não fazer previsões. Não sou muito otimista. Acredito que muito do descontentamento e da ira que poderiam ter ido para canais mais produtivos, como por exemplo analisar como funciona o sistema capitalista global, desviou-se para buscar entender os algoritmos do Facebook ou Google, o que acredito que é um exercício inútil, já que você pode entender tudo o que quiser sobre os algoritmos e seu viés e continuará sem entender porque a Arábia Saudita investe 30 bilhões de dólares em fundos tecnológicos que inflam artificialmente o valor da maioria das novas empresas do Vale do Silício. Há muitas perguntas produtivas que não foram feitas. E como as questões na aparecem, não é possível imaginar uma estratégia política efetiva que surgiria das mesmas. Há uma razão pela qual penso que as grandes tecnológicas e a indústria da tecnologia em geral ainda possuem algum tempo para seguir em frente, apesar de todos os problemas que causaram. A economia em geral está indo tão mal que muito do dinheiro que, de outro modo teria ido para outro lado, simplesmente flui para a tecnologia. E enquanto fluir, a tecnologia será uma indústria que quase todo mundo desejará apoiar porque está produzindo lucros e retornos. Nesse sentido, estão muito seguros. Também acredito que Trump nunca romperá com elas, porque destruiria todo esse crescimento de ações nas bolsas, do qual está muito orgulhoso.

Vê algum cenário no qual um descontentamento cidadão possa gerar algum tipo de mudança ou possa obrigar os políticos a reagir, especialmente na Europa?

Se os partidos políticos, sob a pressão de intelectuais, decidem problematizar suas preocupações e problemas, algumas coisas poderiam acontecer. Em última instância, é uma questão de capitalismo. Se realmente você quer fazer algo em relação à tecnologia, deve poder enfrentá-la nesse ambiente capitalista. Não existe outra opção a não ser começar a inventar modelos alternativos de como pagar por novas infraestruturas, como executá-las, como facilitar o acesso a elas, como distribuir direitos... Estas coisas podem ser feitas, mas por partidos que digam explicitamente: Pensamos que se trata de um problema político e econômico. Os partidos da direita normalmente se opõem ao que proponho quando se trata de imaginar e traçar o que devemos fazer. Os partidos de esquerda e centro-esquerda, caso acordem para o realmente está acontecendo no mundo, especialmente em nível de capitalismo global e não apenas em nível nacional, com sorte, prepararão algum programa, mas para isso devem reconhecer quais são os problemas. E, infelizmente, ainda não os vejo nisso. Por isso, não sou muito otimista sobre o que é possível na Europa, a menos que haja um reconhecimento adequado destes problemas. Trata-se de compreender a história dos últimos 30 anos e como o poder financeiro e militar se transformou em poder tecnológico. É possível que não haja espaço para esse projeto na Europa, em parte porque poderia significar que os mercados estadunidenses se fecham para companhias europeias. Se a Europa fechasse os seus mercados ao Google, aconteceria o mesmo com a Volkswagen ou o BBVA. Temos que ser conscientes desses equilíbrios. E acredito que temos que ter uma discussão de adultos e honesta sobre isso.

D. PEDRO CASALDÁLIGA

Entrevista inédita feita em 1998 por Camilo Vannuchi

O que transcrevo a seguir é uma entrevista inédita, feita com Dom Pedro Casaldáliga no dia de Natal de 1998 e jamais publicada. O entrevistado contava 70 anos vividos, 46 de sacerdócio, trinta deles no Brasil. O entrevistador, aos 19 anos, aproveitava as férias universitárias para percorrer o país com um amigo, quase irmão. Havíamos chegado à cidade dois dias antes, de carro, após uma semana de peregrinação desde São Paulo, passando por Brasília, Goiás Velho e Barra do Garças. Estávamos hospedados ali mesmo, na casa do bispo. Uma casa muito simples, com paredes de tijolo, sem tinta ou reboco nem água aquecida. Pelas paredes, imagens que faziam referência à educação popular, à Igreja do povo, à teologia da libertação. Dom Pedro divertia-se dizendo que ali era o palácio episcopal. Errado, ele não estava. "Parece a casa da sogra", e dava risada.

Na véspera da entrevista, tomei coragem e pedi a ele um autógrafo no encarte do álbum Missa dos Quilombos, do Milton Nascimento, um musical que ele havia escrito com outro Pedro, o também poeta Pedro Tierra, de quem eu já tinha ganhado um autógrafo. "Seja Camilo!", Dom Pedro escreveu. "Como os outros. Na luta. Na utopia. Na doação. Lembrança do Natal de 98 no Araguaia". Na constelação de saberes de Dom Pedro, os outros camilos eram Camilo Cienfuegos, de Cuba, e principalmente Camilo Torres, da Colômbia. Tenho tentado, bispo querido. Resistir para reexistir. Após a missa do galo naquela noite de 24 para 25 de dezembro, tomei coragem para outro pedido: "Posso te entrevistar?". Aluno de jornalismo indo para o terceiro ano, fiz o pedido sem saber se publicaria. A vontade íntima era de poder fazer algumas perguntas e ouvi-lo falar. Escutar histórias do Brasil profundo, episódios dos anos de chumbo, relatos de fé, coragem e esperança. "Amanhã", ele respondeu. No meio da tarde do dia 25, Dom Pedro passou em frente ao quarto em que nos hospedamos e me flagrou sentado na cama, limpando a câmera fotográfica e fazendo anotações de viagem. Parou junto ao batente para conversar. "Vamos agora?", perguntei. "Onde você prefere?". Sem cerimônia, sentou-se no pé da cama como quem diz: "pode começar". Dom Pedro não me deixou chamá-lo de senhor. Tirei o plástico que envolvia uma fita k7 e a inseri no gravador. Seguiram-se 77 minutos de história, política e religião. Ao final, Dom Pedro pediu para encerrar: "Preciso tomar banho e me arrumar que às oito horas tem missa". Saiu em seguida, brincando com meu parceiro de viagem: "Jornalista impertinente, hein?". Tão impertinente que, três anos e meio depois, voltei a entrevistá-lo, em abril de 2002, desta vez para a revista IstoÉ, onde trabalhava. Peguei um voo para encontrá-lo em Goiânia e voltei no mesmo dia. O fotógrafo André Dusek partiu de Brasília para se juntar a nós, na mesma toada. Dias depois, havia um envelope na minha mesa. Dusek havia enviado por malote os cromos para a matéria e também uma foto de making of, a imagem que abre esta coluna.

Vamos começar do começo, do seu começo no Brasil. Por que veio para cá?

Eu sou missionário. Sempre quis ir às missões. E os superiores sempre me mandaram a outros serviços: educação, colégio, dirigir revistas. Em 1967, celebramos o capítulo geral da congregação dos claretianos, à qual pertenço. Nosso fundador foi o arcebispo de Santiago de Cuba, Santo Antonio Maria Claret. Em 1967, neste capítulo geral, depois que a Igreja celebrou o famoso Concílio Vaticano II, pediram-se voluntários para fundar uma missão no altiplano boliviano e outra no Brasil. Naqueles dias, vivíamos o martírio do Che, na Bolívia, que saiu em todos os jornais e na televisão. E pediam para vir justamente para esta região aqui, onde não havia nenhum padre ou missionário morando. O Vaticano pediu para os claretianos que viessem, porque antigos claretianos haviam missionado as áreas de Goiás onde hoje é o Distrito Federal, parte de Goiás. Conversa vai, conversa vem, eu vi que, para mim, como catalão, era mais fácil passar para o português, enquanto para os espanhóis em geral era mais fácil ir a Bolívia, onde se fala castelhano. Nosso superior geral na época, sabendo dessa minha opção, me perguntou se eu viria mesmo ao Brasil e comentou que o Brasil, como país e como Igreja, era de muito futuro e de muita responsabilidade. Em 25 de janeiro de 1968, deixando os 11 graus abaixo de zero de Madrid, chegamos aos 38 graus do Rio de Janeiro.

O que você sabia sobre o Brasil?

Genericamente, a floresta brasileira, o futebol, o Nordeste. Algumas referências de literatura, como Jorge Amado, e de cinema. Pelé. Como nós temos missionários claretianos, recebíamos boletins de São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Esteio, Pouso Alegre e outras cidades eram nomes conhecidos na congregação. Felizmente, quando cheguei ao Brasil já existia o Cenfi, o Centro de Formação Intercultural, para missionários estrangeiros. Era em Petrópolis (RJ), agora está em Brasília. Chegando aqui, tive a oportunidade de aprender a língua de modo mais pessoal e, sobretudo, aprender o Brasil. Tínhamos aula de português e de história do Brasil, cultura do Brasil, Igreja do Brasil. Chegamos em plena ditadura militar, 1968, ano em que seria editado o AI-5. Se eu tivesse vindo diretamente de Madri para o Mato Grosso, eu teria passado anos para descobrir o Brasil. Depois de cinco meses no Cenfi, fizemos um pequeno estágio em São Paulo para ter uma ideia sobre doenças tropicais, visitar o Instituto Butantã e aprender alguma coisa sobre as cobras, e seguimos para cá. Sete dias de caminhão. Saímos de Rio Claro, em São Paulo, num caminhão com sacos de laranja. A estrada de Barra do Garças a São Félix estava começando a se abrir. As pontes eram pinguelas. Chegamos aqui e a primeira impressão foi a distância, ou as distâncias, de todo tipo: distâncias geográficas, distâncias culturais. E uma certa solidão.

Vieram outros missionários com você?

Um colega meu que ainda não era padre veio também, o Manuel Luzón. Ele completou os estudos e se ordenou aqui. Esteve aqui até dois ou três anos atrás e agora está numa comunidade claretiana em Itapaci (GO). Então eu fui propriamente o primeiro padre a morar aqui.

Antes de vir ao Brasil você havia passado pela África e outros lugares?

Eu havia estado incidentalmente na África, por quatro meses, fundando os cursilhos da cristandade. Hoje são vistos como conservadores, mas eram muito revolucionários, porque eram os leigos que davam as palestras, e os padres escutavam. Reuniam pessoas afastadas da Igreja, incrédulos, vidas quebradas. Eram olhados pela Igreja como uma experiência um pouco... Fomos fundar na África, na região de Guiné Equatorial. Queriam que fizéssemos os cursilhos para brancos e os cursilhos para negros. E eu disse: "ou é café com leite, ou não é nada". Tiveram que aceitar. E foi bom para mim sentir a África. A África vivia a convulsão das independências. O Congo havia se tornado independente da Bélgica (1960). Viam-se, nas ruas, mesmo em Guiné, pessoas vestindo camisetas com a figura do Lumumba (líder anticolonial do Congo). Nos cursilhos, conversamos com vários negros que já tinham a perspectiva de independência. E foi até pitoresco porque faziam o cursilho simultaneamente guardas civis, funcionários do governo espanhol e negros nativos que sonhavam com a independência. Você escutava uns e outros, sentia uns e outros. Alguns tornaram-se líderes no movimento de independência.

Quando veio ao Brasil, vocês tinham conhecimento do que era a ditadura militar que se havia instalado aqui em 1964?

Tínhamos. Mas, evidentemente, eram as informações que chegavam. Você não pode esquecer que estávamos em tempos de ditadura franquista lá. Evidentemente, os meios de comunicação oficiais davam a sua versão. Sabia-se das ditaduras militares na América Latina, mas os detalhes nós fomos conhecer aqui. Apresentava-se como comunismo e anticomunismo. Os bons e os maus. A polícia e os ladrões. Evidentemente, para a imprensa na Espanha, os ladrões eram os comunistas. O Cenfi foi muito bom porque vários professores no Rio de Janeiro nos deram palestras críticas. O diretor do Cenfi nos lia as entrelinhas dos jornais e também o que se falava na televisão. Comentava. Vimos a peça Morte e Vida Severina. Lembro que uma professora de literatura nos leu trechos de Grande Sertão: Veredas, o que nos custava a entender, porque estávamos aprendendo português. Vimos peças do Chico Buarque, ouvimos muito música brasileira. Quando viemos para cá, trouxemos discos do Geraldo Vandré. "Quanto mais eu ando, mais vejo estrada", essas cantigas. E tivemos uma vantagem, que alguns jovens de Campinas, que tinham relação com os claretianos, vieram aqui como professores. Uma rapaziada nova, sensível, que conhecia as músicas da hora e nos ajudou a nos inculturar. Sem isso, teríamos ficado um pouco perdidos. Dois ou três espanhóis numa região com um povo muito pouco alfabetizado.

O que havia em São Félix do Araguaia em 1968?

São Félix tinha 600 habitantes. Não tinha correio, não tinha eletricidade, não tinha médico. A estrada estava se abrindo. Não tinha ônibus. Tinha dois velhos jipes. Tinha o rio. Era curioso porque tinha cavalos, canoas e teco-tecos (avião de pequeno porte). Era muito mais fácil pegar um teco-teco do que um carro. O (comandante) Rolim, dono da TAM, era conhecido aqui como um simples piloto. Você pegava carona num teco-teco desses. E grandes latifúndios. Além das áreas indígenas, aqui era a marcha para o Oeste, a entrada do capital no campo. José de Souza Martins, o sociólogo, tem descrito muito bem essa entrada do capital no campo. Porque a Sudam dava os incentivos fiscais e muitos industriais do Sul e algumas empresas transnacionais "investiam" aqui, entre aspas. Aproveitavam-se dos incentivos e investiam de fato no Sul. Aqui, abriam, desmatavam, angariavam uma série de peões. A Suiá Missu, que era a maior fazenda na época, a 100 quilômetros de São Félix, chegou a ter 3 mil peões enquanto São Félix tinha 600 habitantes. Chegou a ter 1 milhão de hectares, a extensão de uma província da Espanha, e de algum Estado brasileiro também, provavelmente (o Distrito Federal tem 580 mil hectares). Já tinham chegado os primeiros posseiros, nortistas ou nordestinos. Muitos deles vindo do Maranhão, o Estado brasileiro mais depredado, mais violado. Muito lavrador vinha diretamente para cá ou passava primeiro por Goiás, sobretudo onde hoje é o Tocantins, que era uma espécie de local de passagem.

Por que vinham para cá?

Vinham à procura da bandeira verde. Padre Cícero tinha anunciado as grandes secas e dizia que era preciso o povo procurar a bandeira verde, passando o Araguaia. A gente entende que, para os seguidores de Padre Cícero, o Rio Araguaia seria um pouco o Mar Vermelho da Bíblia. O povo atravessava o Araguaia e procurava a bandeira verde, que eram as matas da Amazônia. Fizemos alguns levantamentos na época, com as professoras, também em busca de palavras-chaves para implementar o método (de educação popular de) Paulo Freire, e uma das expressões que eles usavam muito era "buscando uma terra de sossego". Nas terras do Nordeste, não encontravam sossego, ou por causa da seca, ou por causa do latifúndio. No norte de Goiás também tinha latifúndio, Maranhão, essas regiões todas. Vinham também buscando terra. Aí tinham os índios. A região era formada, assim, por esses tipos antropológicos: índios, posseiros, peões, nunca os donos das fazendas, porque os donos não moravam aqui, eles eram de São Paulo. Na época, paulista era uma palavra antipática. Era quase um carrasco. Eram os donos das grandes fazendas e tinham seus gerentes, empreiteiros, capatazes. Os gaúchos, paranaenses e catarinenses vieram muito depois. O povo chama de gaúcho, mas vinham dos três Estados do Sul. Eram colonos, gente modesta, que tinha no Sul um pedaço pequeno de terra. As famílias se multiplicavam, a divisão das terras resultava em minifúndios, de 10 ou 15 hectares. Vendiam aquilo e podiam comprar 100 ou 200 hectares aqui. Depois muitos se lascavam porque a terra aqui não é igual à do Sul. E tem as pragas, as distâncias, a falta de estrutura, os problemas de escoamento.

Você comentou sobre o método Paulo Freire. Uma vez eu li que vocês usavam a palavra mata, em razão da floresta, e ela acabou causando confusão com a repressão.

Mata é uma palavra matriz. Ao mesmo tempo, são duas sílabas diretas, simples. A Polícia Federal entendeu que havia ali uma intenção subliminar. "Mata! Mata!". A mim, fizeram um interrogatório de 16 horas, em 1972. Eram coisas tão estúpidas. Uma bandeira vermelha, que uma irmã pedia para outras irmãs para o giro do Divino Espírito Santo, para eles só podia ser a bandeira comunista. Falei para eles: "vocês, além de perversos, são estúpidos". Era ridículo. Todo opressor é obsessivo.

Você chegou em 1968 e foi sagrado bispo em 1971?

Em 1970 foi criada a prelazia de São Félix. Prelazia são dioceses novas, que ainda precisam de muita ajuda externa. Eu sou tão bispo quanto qualquer outro bispo, mas a estrutura da diocese é frágil, está se construindo, então é chamada de prelazia. A prelazia foi criada em 1970 e eu fui sagrado bispo em 1971 porque tinha sido o primeiro padre a chegar.

Como foi a cerimônia de sagração?

Foi à beira do Rio Araguaia. Uma mesinha. Tínhamos uma capela minúscula, mas tivemos de derrubar porque era de barro e tinha risco de desabar. Vieram Dom Fernando (Gomes dos Santos), arcebispo de Goiânia, e Dom Tomás Balduíno, bispo de Goiás. Foi à noite, ao ar livre, com o povo. Eu havia decidido não usar mitra (chapéu) nem báculo (cajado) ou anel. Eles vieram de mitra, uma das peças para as cerimônias episcopais. Quando viram que eu não usava mitra, deixaram as mitras em cima da mesa. Uma sertaneja pegou as mitras na mesa e ficou com elas debaixo do braço durante toda a cerimônia. Ao final da cerimônia, aquelas mitras cheiravam a povo, felizmente (risadas). Já estávamos vivendo muita interdição.

Era a época da guerrilha do Araguaia?

A guerrilha não esteve propriamente aqui. Ela esteve no sul do Pará e no norte do Tocantins. Mas a repressão achava que o Araguaia tinha um metro. Tudo o que acontecia era no mesmo lugar. Até gente culta, colegas bispos, não sabiam muito bem se eu estava no Pará, no Tocantins, no Mato Grosso. Era tudo Araguaia. Havia a brutalidade da polícia, os problemas dos peões, a questão dos posseiros. Havia choques. Eu havia escrito um documento intitulado "Feudalismo e escravidão no norte do Mato Grosso", que enviei a todas as autoridades maiores. Não se publicava isso na época. No dia em que fui sagrado bispo, havia sido enterrado um peão, sem nome e sem caixão, enterrado numa rede, e já na missa, muito emocionado e tenso, falei que minha vida não valia mais do que a vida daquele peão. Foi quase uma declaração de guerra, já na consagração de bispo. Tínhamos acabado de escrever a carta pastoral "Uma Igreja amazônica em conflito com o latifúndio e a marginalização social", que tivemos de imprimir clandestinamente, em duas gráficas clandestinas. Foi um episódio curioso. Esses impressos chegaram aqui trazidos pela aeronáutica. Uma irmã tinha um parente na aeronáutica e pediu que trouxesse roupas das irmãs, coisas da Igreja e um baú no qual enfiaram os exemplares da carta pastoral. Uma carta pastoral sumamente subversiva, impressa numa gráfica comunista, foi trazida pela FAB em plena ditadura militar. As novelas ficam pequenas. A realidade é mais pitoresca.

Os índios tinham mais problemas ou menos do que hoje?

Mais e menos. Mais porque tinham muito menos consciência e poder de expressão. Os carajás estavam na iminência de se desmanchar. Eu conheci doze índios carajás em Luciara, hoje são cento e poucos. Eles não estavam em aldeia, estavam nas margens das cidades, embaixo das mangueiras. Os tapirapés tinham só uma terrinha e depois conquistaram a reserva de Urubu Branco, atendimento de saúde, professores nativos. No Brasil não existia o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), não havia as organizações indígenas que vieram depois. E o que a ditadura militar queria em relação aos índios era a simples e pura integração. Que índio deixasse de ser índio e passasse a ser um vulgar brasileiro, evidentemente marginalizado como a imensa maioria. Hoje estão mais organizados, há vários grupos indígenas, organizações nacionais e regionais, entidades de apoio à causa indígena. O Cimi nós fundamos em 1972. Em 1975 foi fundada a CPT (Comissão Pastoral da Terra). E você sabe que tem surgido vários contatos de indígenas do Brasil com indígenas de vários países da Ameríndia. Então, a causa é hoje mais conhecida, mais coesa e mais mundial. Por outro lado, o contato com o mundo branco é maior. São pouquíssimos os índios isolados. E o que temos é o contato com o mundo branco neoliberal, com o mercado total.

Aqui na aldeia da Ilha do Bananal, estão comemorando o Natal. As ruas da cidade estão cheias de indígenas fazendo compras. Ontem vi um indígena atravessando o rio em um barco que levava um saco com dezenas de bolas de futebol para fazer o Natal das crianças. Tem quadra de vôlei, campo de futebol.

Sim. E são bons jogadores de futebol. Quando me perguntam para que time eu torço, digo que torço para os Carajás (risos). Isso é inevitável, por um lado, e por outro lado tudo bem que haja contato. O importante é que possa se conservar a cultura, a identidade, e que em vez de uma integração se dê uma inter-integração. Que eles nos deem, que nós os demos. Que nós recebamos, que eles recebam. Não queremos os índios nem no museu nem isolados nas florestas. Todas as culturas são dinâmicas. Seria uma estupidez pensar numa cultura congelada. Agora, que esse dinamismo seja um processo consciente, livre, voluntário, e não uma imposição ou uma violência. Porque todas as políticas indigenistas no continente têm sido integracionistas, ou seja, desmanchar os povos indígenas e dilui-los nos países-Estados. Pinochet dizia "Chile não tem indígenas; todos são chilenos". E o Chile tem mais indígenas que o Brasil. Chile tem 500 mil, nós temos 300 e poucos.

Você teve problemas com a TFP, o grupo conservador Tradição Família e Propriedade?

Contestando o latifúndio, contestávamos uma fibra muito sensível da TFP, a propriedade. Eu lembro sempre uma charge que saiu na época com um índio encarando a bandeira da TFP. "Ô, TFP, tu vais defender também meu tradição, meu família e meu propriedade?" Além do mais, eles usavam na época a bandeira do anticomunismo, o que lhes proporcionava uma cobertura oficial. Setores muito conservadores da Igreja achavam que a TFP era uma instituição providencial. Depois a CNBB foi se posicionando para mostrar que a TFP não era católica, estava fora da Igreja porque suas atitudes eram fechadas e ultra fundamentalistas. (Em 1995) Com a morte do fundador, Plínio (Corrêa de Oliveira), a TFP tem hoje muito pouca significância.

Com os movimentos sem terra, os conflitos no campo estão hoje mais graves e frequentes ou menos?

Tem uma vantagem. A atuação do MST tornou mais público o debate sobre o direito à terra e fez da reforma agrária uma certa consciência nacional. Pesquisas que se fizeram davam ao MST uma categoria de direito adquirido, respaldado por maioria. Os meios de comunicação, querendo ou não querendo, tiveram que acolher.

A própria Rede Globo fez uma novela simpática ao MST.

Sim. Uma das vezes em que viajei pela América Central, O Rei do Gado estava no auge. Na Venezuela, falava do Brasil e as pessoas lembravam do Rei do Gado. O MST não existe aqui nesta região. Por uma razão muito simples: eles são inteligentes, bem organizados, e ocupam terras em áreas mais próximas à cidade grande, onde o escoamento é mais fácil. Nesta região do Mato Grosso não há MST. Os sem terra são mais espontâneos. Há ocupações de terra não vinculadas ao MST. É um movimento revolucionário, em boa medida, mas ao mesmo tempo é muito realista. Tem conjugado a utopia, o entusiasmo, com a técnica. Tem inclusive a preocupação com uma educação de qualidade, que mereceu prêmio da Unesco, e a preocupação de se comunicar, com o Jornal dos Sem Terra, correios eletrônicos. Tem saído na opinião pública, em muitos meios de comunicação. João Pedro Stédile, José Rainha. É curioso. Querendo ou não querendo, é feita certa ligação entre MST e os zapatistas. São movimentos camponeses, indígenas ou não, que sabem agir com uma atitude e uma agressividade moderna. Com presença pública nos meios de comunicação e uma preocupação, uma solidariedade maior. Não querem só terra. Querem democracia, saúde, educação. Não são um partido, mas são muito políticos, evidentemente.

Você foi chamado de "padre comunista" por muito tempo. O que você acha do comunismo?

Uma coisa é o comunismo e outra coisa são os comunismos, os que de facto se deram na história. Por fundamentalismo, por burocracia ou porque o mundo estava dividido em dois, tornaram-se ditaduras. O comunismo ou socialismo utópico continua sendo válido no sentido de uma fraternidade universal, os meios de produção nas mãos do povo, uma democracia que fosse realmente democrática, econômica, social, política e cultural. Hoje, a democracia que está espalhada mundo afora é uma democracia apenas formal. Fico irritadíssimo de ver que o Clinton tem o maior respaldo na história dos presidentes dos Estados Unidos, quando, no meu entender, é um homem que mereceria uma cassação, um impeachment, por lesa humanidade. Seus bloqueios, suas ações, suas bombas, a democracia gringa que o respaldo canoniza.

Para os comunistas, a Igreja é o ópio do povo?

Há religiões, como as políticas têm sido com frequência e também o capital, que são o ópio do povo. Contribuíram desde a colonização para que se chegasse a certo conformismo, certa passividade, "deus quer". A partir de Constantino, a Igreja virou cristandade, com muita vinculação com o poder. Agora, se alguma coisa há clara na vida de Jesus é sua opção pelos pobres, já a partir de seu nascimento entre pobres e marginalizados. Felizmente, nos últimos anos, em toda a América Latina, a teologia da libertação, as comunidades eclesiais de base, as pastorais sociais, têm corrigido e em boa parte têm sido uma das forças mais dinamizadoras. Tem muita igreja. Cabem o Padre Marcelo (Rossi) e o Frei Betto.

Bispo de São Félix, você recebe na mesma missa tanto os empregados quanto os patrões. É tranquilo conciliar, escolher a mensagem?

A gente faz questão de dizer o que é preciso dizer, de estimular a consciência de uns e de outros. Os patrões praticamente nem participam da missa. Hoje, na região de São Félix, além dos posseiros, há os pequenos proprietários, os pequenos comerciantes, os funcionários, que são uma espécie de subclasse média, muitos deles. Muitos gaúchos, que não têm nada de rico, quando viam a gente falar em igreja dos pobres, estranhavam, ficavam pouco à vontade. Você é rico? O que você tem? Tem 100 hectares de terra, mas veio para cá do Rio Grande do Sul porque já quase não sobrevivia. Então você é pobre. Um pouco essa mentalidade. Depauperado. O povo, a imensa maioria. Somos a favor da imensa maioria. Ao contrário do neoliberalismo, que é a favor da mínima minoria. É essa a diferença. Os grandões continuam não morando aqui.

Poesia e Igreja andam juntas?

A Bíblia é sumamente poética. Isaías é um dos maiores poetas da história. Deus é o grande poeta. Você sabe que poeta significa "fazedor, aquele que faz". E na história da Igreja há grandes figuras que foram poetas. Muitos santos. São João de la Cruz, por exemplo. Na Catalunha, há padres e religiosos reconhecidos até pela (contribuição na) restauração do catalão. Poetas, escritores. E eu sou também mais ou menos poeta.

Mais ou menos?

Sabe por que eu digo mais ou menos? Porque eu acho que tinha vocação de poeta, e poderia até ter sido um bom poeta, mas não tenho me dedicado à poesia. Tenho soltado poesia, mas não me dedicado à poesia. Se eu me dedicasse à poesia e à literatura, prejudicaria minha atividade pastoral. Leio poesia, evidentemente, gosto, faço, mas não sou uma pessoa dedicada à poesia. Além do mais, o fato de escrever em três línguas dilui. Quem escreve em três línguas não escreve bem em nenhuma delas. Pode escrever corretamente nas três, mas perde detalhes, matizes. Eu jamais poderia escrever uma novela, que exige muito palavreado do dia a dia. Minha poesia poderia ser muito mais rica em palavras.

Daqui a quatro anos, haverá sua aposentadoria compulsória. O que você vai fazer em seguida? Vai se dedicar integralmente à poesia?

Não tenho pensado nisso. Quero continuar bem perto do povo. É o que eu posso dizer. Não quero sair do Brasil. Se sair do Brasil, não quero sair da América Latina. E se sair da América Latina, eu iria para a África.

Você nunca voltou para à Catalunha nem pretende voltar?

Sou um pouco radical. Quando decidi ir às missões, ainda jovem religioso, sempre fiz essa opção. Vou e não volto. "Queime os navios!", dizia o colonizador para que os conquistadores não pudessem voltar à Espanha. Agora tem que ficar na América. Eu também queimei os navios, nesse sentido. Para não voltar. Eu estou muito mais livre aqui, do outro lado do mar.

Uma vez li uma entrevista sua em que você comentava que os jornalistas lhe perguntavam sobre todas as coisas, mas nunca sobre sua fé ou se você acredita em Deus. Você acredita em Deus?

Evidentemente que sim (risos). Mas essa pergunta é interessante também por outros motivos. Você poderia perguntar: "em que Deus?" Porque também tem muito Deus por aí. Em certa medida, cada um tem seu Deus. E isso pode ser legítimo. Eu entendo Deus e acredito em Deus pelo que sou, pelo que tenho vivido. É uma fé pessoal, uma fé condicionada pela minha pessoa. Agora, para que se trate do verdadeiro Deus no qual eu quero acreditar, tem que ser um Deus misericordioso, um Deus da vida, um Deus de todas as culturas, de todos os povos. Um Deus que não julga, salva. Um Deus que é amor. A expressão mais alta da Bíblia é a expressão de São João: "Deus é amor".

Quando e como você descobriu sua vocação religiosa?

Eu sou de uma família católica. Meu pai foi seminarista por dois anos, depois saiu, casou e teve quatro filhos. Meu tio, irmão da minha mãe, era padre, Padre Luís. A revolução espanhola, a revolução vermelha, matou meu tio por ser da Igreja, conservador. Lá, nos perseguiam os comunistas. Aqui, nos perseguem por comunistas. Foi surgindo a vocação e as missões, o ideal de solidariedade, uma radicalidade. No Mato Grosso, encontrei meu espaço.

Como nasce uma figura como Marcelo Rossi?

O povo é multitudinário por definição. Por outro lado, o povo, e sobretudo o povo pobre, desnorteado, amargurado, tenso, é um povo que busca consolação, cura, alívio. Marcelo Rossi nasce em plena época da mídia. Padre Cícero, por exemplo, empolgava as multidões consolando as multidões, estimulando nas multidões a confiança em Deus. Imagina um Padre Cícero com os meios de comunicação de hoje. Marcelo Rossi surgiu num momento em que a efervescência religiosa está no auge. Depois da famosa morte de Deus, parece que Deus está de volta. Então ele é filho de uma época, dentro desse clima carismático, tanto no mundo católico quanto no mundo protestante. O Brasil é, também, um país tipicamente de efervescências. Em tudo. As grandes massas, que por outro lado talvez reivindiquem o que a Igreja não deu. É certo que nossas missas eram excessivamente românicas, frias. Faltava calor. Agora, no meu entender, o Padre Marcelo Rossi já passa. Ele transformou a celebração em um show. Você pode fazer uma missa com a participação do povo, que tenha canto, uma parte litúrgica. Mas Padre Marcelo é muito personalista. Em vez de anunciar Jesus, ele anuncia o próprio Marcelo Rossi. E Jesus foi um menino sem-terra. Ele disse que seremos julgados pelo que fazemos pelo próximo. Se o pessoal que assiste às missas do Marcelo Rossi, nas igrejas ou na televisão, saísse com vontade de transformar o mundo, resolver problemas de terra, de menino de rua, de sem-teto, ótimo. Mas não vejo desse jeito. Penso que a elegância é sempre bastante sóbria. E no culto religioso deve haver certa sobriedade, dentro da alegria e da participação. Nas comunidades eclesiais de base e nas romarias, há sempre movimentação, participação, até encenação, que cabe. Mas sobretudo vinculando a fé com a vida e a celebração com a luta.

Em São Paulo, Dom Paulo Evaristo, Cardeal Arns, deixou a arquidiocese e foi substituído pelo Dom Cláudio Hummes. A igreja retrocedeu?

Tem que perguntar o que entendemos por Igreja. É evidente que o atual arcebispo de São Paulo não é tão comprometido com a causa popular, com a América Latina, com os direitos humanos e com o ecumenismo quanto Dom Paulo Evaristo Arns. Mas a Igreja de São Paulo é também as comunidades de São Paulo, as pastorais de São Paulo. E têm certa liberdade. Dom Cláudio Hummes é evidentemente mais conservador, está mais vinculado a movimentos que chamamos de neoconservadores. Mas existe uma atuação importante de movimentos populares aos quais setores importantes da Igreja estão vinculados. Ainda temos as comunidades eclesiais de base. Temos o Grito dos Excluídos, estamos nos preparando para uma grande campanha contra a dívida externa, os leigos estão participando, os bispos têm, graças a Deus, menos protagonismo. Quem falava em cidadania anos atrás? Ninguém. Hoje falamos em cidadania. Também na Igreja, apesar dos pesares, há muito mais democracia hoje do que trinta anos atrás. Há pouco tempo uma pessoa do povo da comunidade não subiria ao altar para fazer uma leitura e, se subisse, ficaria muda diante do padre.

Você vive há 30 anos em São Félix do Araguaia. Os acessos são em estrada de terra, às vezes intransitáveis na época de chuvas, mas agora está conectado via internet com o mundo todo. Essa globalização tecnológica assusta?

Não. Ela está aí. O perigo seria se nos virtualizássemos tanto que deixássemos de ser reais. Tenho brincado em palestras com religiosos que, antes, os religiosos tinham de ser virtuosos. Agora basta que sejam virtuais. A comunicação virtual pode trazer este risco, de perder um pouco o contato real. O dom de Deus é a outra mundialização. Essa mundialização do mercado, do lucro, do capital, e esta outra mundialização da comunicação, da solidariedade, a bendita mundialização. Em última instância, a humanidade é uma só.

Infelizmente, ainda permanecem os conflitos, o ódio. Os jovens que tocaram fogo no índio Galdino, em Brasília (1997), por certo navegam na internet.

Somos todos filhos do mesmo Pai. A Bíblia nos apresenta a parábola de Caim e Abel para nos dizer que, infelizmente, dentro de uma só família humana, há e haverá um irmão que mata outro irmão. Depois de mostrar a rebeldia contra Deus, o orgulho, vem a parábola da briga entre irmãos. São os principais pecados, a presunção e o ódio. Ódio que é cobiça, prepotência, explosão. O desamor.

Você chegou ao Brasil numa época em que começava a haver muitos presos políticos. Você nunca foi preso?

Só em prisão domiciliar. Na época em que prenderam todos os agentes de pastoral, ficamos vários dias em casa, sem poder sair. Quando chegou domingo, disse que precisava ir fazer a missa. "Ou vai ser o capitão que vai querer celebrar a missa?", provoquei. Então saíram quatro policiais nos escoltando para ir fazer a missa. Quando chegou a hora de dar a paz, íamos até os soldados. Os pobres ficavam com fuzil, metralhadora, e não sabiam muito bem o que fazer. Numa dessas missas, uma senhora entregou o livro de cantos a um soldado (risos). Saindo, um dos soldados encostou numa cerca chorando. "Dom Pedro, sou católico também, eu não queria... Os superiores mandam na gente".

Edição 150, Setembro 2019

"Pe. Mário da Lixa:

ESTE LIVRO É A REPOSIÇÃO DA VERDADE SOBRE JESUS HISTÓRICO"

Por João Céu e Silva -DN 26 de Agosto 2019

Quando perfaz 50 livros publicados, o padre Mário de Oliveira, também conhecido como o padre Mário da Lixa, faz a opção por lançar o livro Jesus segundo os 4 Evangelhos em 5 Volumes. Uma edição que, garante, nunca antes foi realizada em Portugal e, provavelmente, no mundo. Além dos textos sagrados acrescenta os novos dados histórico-científicos sobre Jesus e as origens do cristianismo.

Em entrevista ao DN, faz questão de esclarecer que este não é um "livro religioso". Justifica: "Todo o religioso é perverso, politicamente alienante e anestesiador. O religioso é a doença infantil da humanidade. Este livro é profundamente antropológico e teológico e navega as águas do humano e não do divino."

Mário de Oliveira é presbítero da Igreja do Porto desde 1962, foi capelão militar na guerra colonial na Guiné-Bissau, de onde foi expulso por pregar o Evangelho de Jesus e os direitos dos povos colonizados. Rotulado como "padre irrecuperável", foi exonerado da paróquia de Paredes de Viadores, seguindo-se a sua nomeação como pároco de Macieira da Lixa pelo bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, mas dez meses depois é preso político em Caxias. Posteriormente, é proibido de exercer e dispensado de qualquer ofício canónico. A partir de 1975 torna-se presbítero-jornalista, situação que se mantém até hoje.

Este é o seu 50.º livro. Que balanço faz desta sua cruzada literário-religiosa?

Para mim, não se trata de uma "cruzada". Um conceito de má memória, tantos e tamanhos os horrores que as cruzadas do passado e do presente causaram e continuam a causar. Trata-se, sim, de uma das múltiplas atividades em que a minha condição-missão de presbítero-jornalista se tem realizado. Também não entendo que seja "literário-religiosa". Literária e jornalística é. Religiosa, não, até porque para mim, e como reiteradamente esclarecem os meus sucessivos livros, todas as religiões são intrinsecamente más. Já que todas elas religam as populações para cima e a uma entidade mítica fora delas e imaginada por elas como todo-poderosa, quando a saúde e o bem-estar (salvação) das populações só acontece, se ousarmos viver religados uns aos outros, na diversidade de culturas e de falares, e, simultaneamente, religados ao cosmos, como cosmos-consciência que somos.

Mas há um balanço a fazer?

Sim, mas o balanço de toda esta minha atividade literária-teológica cabe mais às pessoas que a conhecem e têm beneficiado dela, tanto nos livros como nos jornais, nas redes sociais, nos milhares de vídeos no YouTube e em incontáveis encontros ao vivo por todo o país. A julgar pelos muitos testemunhos que ao longo dos anos me têm chegado, só posso afirmar que é um balanço inultrapassável por qualquer outro presbítero e por qualquer outro jornalista do país. A segunda metade do século XX e a primeira metade deste século XXI em Portugal são manifesta e positivamente marcadas pelos meus livros e por toda a minha multifacetada atividade presbiteral e jornalística, com destaque para o jornal Fraternizar, durante 23 anos em suporte papel e atualmente apenas em suporte digital online. Digo-o como um menino que, desde muito cedo, vê que "o rei vai nu" e, por isso, atreve-se a viver à intempérie, como as aves do céu e os lírios do campo. Com muito humor e muito amor, este na sua máxima expressão que é a da gratuitidade.

Qual dos seus livros pode considerar-se incontornável?

Desde logo, este livro 50. Andou em gestação quase tantos anos quantos os que levo de presbítero ordenado em 5 de agosto de 1962. E só agora, em 2019, é que veio à luz. Como num parto. Também com dores. As dores de perceber, à luz dele, que trazer enganada a humanidade durante dois mil anos de cristianismo é muita gente enganada e muito ano. Com a agravante de o Mal estrutural que é o cristianismo, nas suas múltiplas igrejas, ter-se sempre feito passar pelo Bem estrutural. Como se alguma vez o "bem-fazer" fosse igual a "fazer o bem", e a "caridadezinha" fosse igual a justiça praticada, de acordo com aquele primeiro princípio da humanidade sororal-fraterna que diz, "De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade". Mas, antes deste, há outros livros que tenho como incontornáveis, a começar pelo primeiro, em 1969, Evangelizar os Pobres, Chicote no Templo em 1973, Fátima Nunca Mais em 1999, e muitos outros que se seguiram, como Evangelho no Pretório. Uma Espécie de Autobiografia com Humor e Amor, de 2018.

E qual não necessitava de ter escrito?

Refiro três: Estava Preso e Visitastes-me, um quase-folheto em memória de um amigo que me visitava em Caxias, em substituição dos meus pais; E se com o Papa Enterrássemos também esta Igreja Católica Romana?, de 2006, com alguns extratos, em jeito de pré-lançamento do livro de muitas páginas Em Nome de Jesus que se lhe seguiu; finalmente, A Fachada da Igreja, uma coletânea de textos do jornal Fraternizar, que um jovem editor coligiu com meu conhecimento e publicou no lançamento da sua Editora Canto Escuro. Na hipótese de um dia alguém achar por bem editar Obras Completas, do Padre Mário da Lixa, pode muito bem deixar estes três títulos de fora.

Refere que é a primeira vez que uma obra como esta aparece no mundo. O que a diferencia de tudo o que tem publicado?

Tudo, ou quase. Antes de mais, porque este é um livro cuja temática é totalmente universal. Pode e deve ser traduzido para todas as línguas mais faladas do mundo, porque a temática dele é transversal a todos os povos e culturas, a chinesa incluída. É o livro em que o jornalista profissional que sou dá lugar ao presbítero ordenado que sou. E este, por sua vez, dá lugar ao teólogo que também sou, não da teologia com que o seminário tridentino tentou formatar a minha mente e as universidades confessionais do mundo continuam hoje a tentar formatar as mentes de quem as frequenta, mas da teologia outra que as religiões e as igrejas cristãs e respetivos Livros Sagrados odeiam e fazem tudo por tudo para silenciar e manter sequestrada. Aquela teologia que nasce das práticas políticas maiêuticas de Jesus histórico, o filho de Maria, da sua fé com tudo de secular e de política praticada, não de religião, e que nos remete para um Deus que nunca ninguém viu nem vê, porque nos habita mais íntimo a nós do que nós próprios, a potenciar-nos de dentro para fora para vivermos na história como se Ele não existisse. Uma vez que, para para esta fé-teologia outra, a de Jesus histórico, tudo o que acontece na história, de bom ou de mau, é da nossa exclusiva responsabilidade. Pelo que nunca podemos interpelar-acusar Deus, como fez o papa Bento XVI, em Auschwitz, quando pergunta "Onde estava Deus quando tudo isto aqui aconteceu?", já que a pergunta correta será: «Onde estávamos nós, seres humanos e povos, quando tudo isto aqui aconteceu?"

Trata-se também de uma fé-teologia?

Sim, e que se atreve a colocar os seres humanos e os povos que vemos, antes e acima de Deus que nunca vimos nem vemos. Uma fé-teologia que não gosta de sacerdotes, nem de clérigos, nem de pastores, nem de messias, nem de intermediários. De modo que é muito difícil ser-se ateu de um Deus assim, porque só quando acolhemos e servimos maieuticamente os seres humanos e os povos que vemos é que mostramos que cremos em Deus que não vemos. Tudo neste livro é novo, inclusive os cinco Livros que o tecem, mais conhecidos como "Evangelhos canónicos". Veremos, ao lê-lo-escutá-lo, que o conhecido livro Actos dos Apóstolos nunca existiu. O que historicamente existe é o Evangelho de Lucas, Volume I e Volume II. Só que nunca um editor até hoje nos apresentou assim o Evangelho de Lucas. Muito menos houve, até aparecer este meu livro, um editor que se atrevesse a pôr a sua chancela numa obra que deixa claro que o Volume II do Evangelho de Lucas não é, como sempre nos enganaram, o da entronização dos 12 apóstolos, mas sim o da denúncia da inominável traição que o grupo dos doze, todos inicialmente, escolhidos pelo próprio Jesus histórico, lhe fazem, ao perceberem que ele não só não é o "messias" ou "cristo" davídico por eles esperado por aqueles dias, como tão-pouco quer que algum ser humano o venha a ser, porque, nesse mesmo instante, desiste de ser Humano, para ser Poder que vence, reina, impera sobre os mais, todos súbditos seus. Os doze, com Pedro à cabeça e Judas a fechar a lista, não só o traem e entregam aos sumos-sacerdotes do templo de Jerusalém, a preço de sangue, como ainda, depois de o apanharem morto na cruz do império e verem o seu cadáver lançado à vala comum, como o maldito dos malditos, correm a fundar, com o aval dos sumos-sacerdotes, o judeo-cristianismo - entenda-se, o judaísmo-com-messias - juntamente com os familiares de sangue de Jesus, mãe incluída. Precisamente, na sala de cima do Templo de Jerusalém, o mesmo onde, dias, semanas antes, Jesus anda de chicote em punho, a expulsar tudo de lá para fora, ao concluir que ele não passava de um "covil de ladrões", que até o último cêntimo da viúva pobre tinha de entrar no respetivo tesouro. O mais grave é que toda esta inominável traição dos doze perdura até hoje. E não como traição, mas como coisa boa. Só mesmo este livro poderá iniciar a sua implosão. É por isso um dos livros que mais vão marcar positivamente este nosso terceiro milénio.

Este Jesus segundo os 4 Evangelhos em 5 Volumes é mais uma denúncia ou a reposição da verdade?

É as duas coisas. É denúncia da traição que os doze e o cristianismo de Pedro, Paulo e Constantino imperador de Roma fazem a Jesus histórico, o camponês-artesão de Nazaré, o filho de Maria, e ao seu projeto político, nos antípodas do projeto político dos sistemas de Poder, hoje, sobretudo, o Poder financeiro global. Basta ver que, neste início do terceiro milénio, o atual Papa Francisco e o seu comparsa emérito, Bento XVI, são, como todos os papas que os antecederam, sucessores do imperador Constantino, o primeiro papa que, nessa mesmíssima qualidade de papa imperador de Roma, convocou os Concílios de Niceia e Constantinopla, dos quais resultou o Credo que ainda hoje é recitado aos domingos nas missas. Mas este livro é também de reposição da verdade sobre Jesus histórico e o seu projeto político alternativo ao dos sistemas de poder, totalmente desconhecido dos povos ainda hoje, graças ao cristianismo que não só não prosseguiu Jesus histórico, como ainda o escondeu às sucessivas gerações. Em seu lugar, tem-nos sistematicamente apresentado o que os seus teólogos chamam "Cristo da fé", um mito bíblio-davídico que nem eles sabem dizer em que consiste. Pois bem. Com este livro fica claro que os Evangelhos canónicos são quatro, mas que um deles, o de Lucas, "faz-se" em dois volumes. Fica também claro que os quatro foram escritos por pequenas comunidades clandestinas e em linguagem encriptada, com o propósito de testemunharem Jesus histórico e o seu projeto político, antes de mais, contra o judeo-cristianismo de Pedro e Tiago, na altura, já a ganhar muitos aderentes em Jerusalém. Finalmente, este livro dá-nos a chave de acesso à mensagem encriptada dos quatro Evangelhos em cinco volumes e que só assim a boa notícia que eles anunciam-testemunham pode ser entendida e saboreada. Deste modo, podemos conhecer Jesus histórico, o filho de Maria, bem como o seu projeto político, por causa do qual ele foi crucificado. E concluir que só mesmo ele é a beleza das belezas, graças, sobretudo, ao seu sopro com tudo de feminino, por isso, nos antípodas do sopro do poder, com tudo de macho, de estranho, de dominador. E por ele, com ele e nele, podemos também ver como todas, todos nós havemos de ser, aqui e agora, enquanto seres humanos e povos terceiro milénio adiante.

Retira-lhes a roupagem que, diz, "houveram por bem vesti-los (...) para poderem manipular-deturpar por completo a boa notícia de Jesus Nazaré". Serão, deste modo, mais verdadeiros?

Sim. E direi mais, Só deste modo são verdadeiros. Pelo menos, são bem mais próximos da realidade histórica que é Jesus, o de antes do cristianismo. E ainda com a mais-valia de que agora os lemos-escutamos neste século XXI-terceiro milénio, por isso, com horizontes totalmente outros comparativamente aos do século I na Palestina. E à luz dos dados que a investigação histórica e científica destes últimos 40 anos nos oferece e que já são tidos em conta neste livro. Podemos, pois, dizer que, graças a este livro, acabamos por conhecer Jesus histórico ainda melhor do que os seus concidadãos, entre meados do ano 28 e abril do ano 30. Além disso, sabemos hoje que o momento em que Jesus atinge a sua plenitude humana, que vai muito para lá dos limites do espaço e do tempo, é precisamente aquele em que, já crucificado, dá à humanidade e ao mundo o seu sopro ou espírito, imediatamente depois de ter feito a grande pergunta ainda hoje em aberto, 'Meu Deus, meu Deus porque me abandonas?", logo seguida de "um grande grito". Nesse momento histórico, Jesus rebenta todos os limites e passa para lá deles, como corpo-sopro que nada, ninguém pode mais deter. E é assim, como corpo-sopro que nada, ninguém pode deter, que, desde então, está entre nós e connosco para sempre. Até que a humanidade seja plena e integralmente humana quanto ele. Sempre com Deus que nunca ninguém vê, mas a potenciá-la de dentro para fora a quem lhe dá essa oportunidade, e, ao mesmo tempo, sempre sem Deus.

Define a vida de Jesus como a de um quase clandestino. Isso marca a sua história?

Sim, marca todo o viver histórico militante de Jesus e marca também o viver na história de quantas, quantos praticamos a sua mesma fé e a sua mesma teologia, em cada tempo e lugar, também neste terceiro milénio que é o nosso. Cujas condições históricas são muito mais desenvolvidas e muito mais científicas do que as de então. A clandestinidade é condição sine qua non para quem vive no sistema de poder, mas não é dele. Viver no sistema de poder, sem nunca ser dele será sempre um viver politicamente subversivo que deixa os das cúpulas do poder furiosos e fora deles, pois não suportam viveres históricos que não controlam. Por isso, os excomungam, caluniam e matam, hoje, sobretudo, de forma incruenta, até para não fazerem mártires. Desconhecem ou esquecem o que nos diz-revela Jesus, o do Evangelho de João, «Se o grão de trigo, caído na terra, não morre, fica só. Se morre, dá muito fruto». Aliás, meu próprio ser-viver de presbítero-jornalista, no sistema de poder, sem ser dele, é o que mais testemunha-grita ao país e ao mundo. São vidas assim, perseguidas, denegridas e ostracizadas que são fecundas e fonte de fundada esperança para a humanidade.

Até que ponto pode este livro religioso mudar a perspetiva do seu leitor?

Devo esclarecer de novo que este não é um "livro religioso". Todo o religioso é perverso, politicamente alienante e anestesiador. O religioso é a doença infantil da humanidade. Este livro é profundamente antropológico e teológico. Navega as águas do humano, não do divino. O divino é o grande tentador do humano. Nas mentes onde entra, neutraliza e devora o humano. E faz de uns poucos minorias privilegiadas com poder religioso, político ou financeiro, e das maiorias, todas suas súbditas. Este livro, ao contrário dos livros religiosos e sagrados, tem tudo que ver com os seres humanos que somos, em todas as nossas dimensões, também a de seres misteriosamente habitados por aquele Deus que nunca ninguém viu e que se nos dá a conhecer em cada ser humano concreto que vemos, de modo especial, nas inúmeras vítimas humanas dos sistemas de poder. Vem por isso despertar-nos para a imperiosa necessidade de nascermos de novo, do vento, da liberdade. Até chegarmos a mudar de ser e de Deus. Concretamente, do deus dos sacerdotes e dos sistemas de poder para o Deus de Jesus, que é o das vítimas que os sistemas de poder e o seu deus, o dos sacerdotes, produzem em série e de forma científica. E estimular-nos, neste início do terceiro milénio, a fazermos esta mudança antropológica e teológica, sob pena de simplesmente desaparecermos sem deixar rasto. Este livro vem dizer-nos que este nosso milénio descobre e pratica a mesma fé de Jesus e a sua mesma teologia, ou simplesmente não será. Acabará devorado pelo deus de todos os sistemas de poder, a começar pelo religioso-clerical e a acabar no financeiro. Jesus, o de antes do cristianismo é claro. "Ninguém pode servir a Deus e ao dinheiro." Ou Deus ou dinheiro. Por outras palavras mais antropológicas-teológicas, "Ou os seres humanos e os povos que vemos ou o dinheiro". Jesus, o deste livro, é taxativo. Usa a disjuntiva "ou", não a copulativa "e". Por isso, diz, Deus ou dinheiro. Os seres humanos e os povos ou o dinheiro. Ao contrário, todos os sistemas de poder, a começar pelo religioso, desconhecem a disjuntiva "ou". Conhecem apenas a copulativa "e". Dizem, Deus e dinheiro. E dado que vivemos num tempo de generalizado ateísmo religioso e cristão, já nem a copulativa "e" a ligar Deus e dinheiro ele conhece. Conhece apenas o dinheiro. E, aqui, devo confessar, com dor, que deste deus, o dinheiro, não conheço nenhum ateu. É por isso que o nosso mundo hoje é cada vez mais este inferno radioativo, com aceleradas alterações climáticas que levam tudo com elas, numa guerra mundial não declarada, mas progressivamente em curso. Uma guerra que, pela primeira vez na história, não faz aceção de pessoas nem de regiões do planeta.

A palavra "esconder" surge muitas vezes nos seus trabalhos. Porquê?

É verdade. E não só esta. Também a sua antónima, "desvendar". E a razão é simples. O mundo formatado pela ideologia-teologia do judeo-cristianismo-islamismo e seus livros sagrados é um mundo de mentira e faz-de-conta. Contam mais os conceitos e os sistemas de doutrina do que as pessoas e a natureza. Ora, a ideologia-teologia dos livros sagrados é como um manto que cobre a realidade. Vemos o manto, não a realidade. E demencialmente tomamos por realidade-verdade o manto que a cobre-esconde, quando a realidade é a que está sob o manto. E não há realidade mais real nem verdade mais verdade do que os milhões e milhões de vítimas dos sistemas de poder. As vítimas humanas e as da natureza. Nunca choraremos bastante esta mentira institucionalizada que se faz passar por verdade. A verdade. Eis porque as palavras de ordem mais oportunas e necessárias, hoje e aqui, são desvendar, destapar, revelar, tirar o véu ideológico-teológico. Até acabarmos de uma vez por todas com os livros sagrados e a ideologia-teologia que deles emana.

A Bíblia tem sido um bestseller em Portugal nos últimos anos. Encontra razões para vender tantos exemplares?

Encontro. E por isso é que em 2017 publiquei o livro A Bíblia ou Jesus?. O título já diz tudo. Aquele "ou" entre Bíblia e Jesus, exige-nos uma escolha. Se escolhemos a Bíblia, excluímos Jesus histórico, o de antes do cristianismo, que é crucificado como o maldito, precisamente, para se cumprir a Escritura, ou a Bíblia. O modo como o título do livro está formulado sugere que a opção correta é escolhermos Jesus histórico e o seu projeto político maiêutico. As religiões do livro e as igrejas cristãs todas sempre escolheram a Bíblia e rejeitaram Jesus histórico e o seu projeto político maiêutico. Os devastadores frutos dessa opção estão hoje aí bem à vista. Só não vê quem não quer ver. É claro que as igrejas podem sempre dizer e dizem que escolhem a Bíblia e Jesus. Exatamente, como escolhem Deus e o dinheiro. Só que o Jesus das igrejas cristãs todas não é o Jesus histórico, muito menos o seu projeto político. É o Jesuscristo da fé, que faz desaparecer o Jesus histórico. São todas mentirosas e pais-mães de mentira. Sempre nos esconderam que a Bíblia é uma pequena-grande biblioteca, mandada escrever pela casa real de David-Salomão e concluída pelos sacerdotes do templo de Jerusalém. Para, com esses livros sagrados, ela e eles melhor se imporem sobre as outras tribos de Israel e sobre os demais povos. Por isso, o deus da Bíblia é o deus poder, todo o tipo de poder. Em especial, o poder monárquico absoluto. O poder de um só. A que o cristianismo católico veio acrescentar mais um elemento, o da infalibilidade papal. E tal é o deus do Credo de Niceia-Constantinopla, omnipotente, omnisciente, omnipresente. Um só deus no céu, um só imperador papa em toda a terra. Esta é a ambição do judaísmo davídico, ultrapassada, mais tarde, pelo cristianismo do imperador de Roma, Constantino, e seus sucessores, os papas. No século XVI, com os jesuítas, de Inácio de Loyola, Roma e o Papado perceberam que a melhor maneira de poder dominar o mundo inteiro não é por meio das armas, cada vez mais sofisticadas. É pelo domínio das mentes-consciências das pessoas e dos povos, daí que a grande aposta é na educação e na informação em overdoses industriais. Não a educação como prática de liberdade, mas a educação como formatação das mentes. Neste domínio, ninguém mais perito do que os jesuítas. Não é por acaso que, depois do desastre que foi o pontificado de Bento XVI, a Cúria romana imperial foi a correr escolher um cardeal jesuíta, da Argentina de Videla, de seu nome Jorge Mario Bergoglio. E não é por acaso que ele, uma vez eleito, escolheu o nome, não de Inácio, seu fundador, mas Francisco, o da caridadezinha.

Nada é feito ao acaso?

Com certeza que o poder, sempre divino, mesmo quando se diz laico, não joga aos dados. Age cientificamente. Tem bons discursos para a plebe, mas sofisticadíssimas práticas em todas as áreas da sociedade que lhe garantam o domínio total do mundo. Jesus, o de João, diz do poder que é um estranho e um mercenário. E logo acrescenta, sem que a voz lhe trema: "Todos os que vieram antes de mim são ladrões e bandidos; vieram só para roubar, matar e destruir." E conclui, como pastor modelo ou ser humano pleno e integral que é: "Eu vim para que tenham vida e vida em abundância." Obviamente, o poder, com o deus do poder que a Bíblia criou e impõe a ferro e fogo, não descansou enquanto não matou Jesus. E fê-lo, fá-lo, com a "legitimidade" que a Bíblia Sagrada lhe deu, lhe dá. Não é, pois, de estranhar que a Bíblia seja nestes dias o grande bestseller. E que o renomado tradutor do grego para português, Frederico Lourenço, seja já Prémio Pessoa. Que os povos não podem nunca chegar à verdade. Nesse dia, saboreariam o paladar da liberdade que nunca existirá verdadeiramente, enquanto houver sistemas de poder. É também de Jesus histórico, "Amai-praticai a verdade, que ela vos faz livres". Por isso, nesse meu livro, A Bíblia ou Jesus? deixo claro que os quatro Evangelhos em cinco volumes não fazem parte da Bíblia. E só lá estão porque o cristianismo imperial é o assassino de Jesus histórico e o promotor, em seu lugar, do mítico "Cristo da fé". E, hoje, com um Papa jesuíta ao comando, tem todas as mentes do mundo formatadas do nascer ao morrer. Com todas as tecnologias de informação como outras tantas armas de formatação das mentes, inclusive, das que se se têm por mais "revolucionárias" e de "esquerda". Saibam que dentro dos sistemas de poder e dos seus livros sagrados não há liberdade, nem há salvação. Por isso, não há humanidade. Só escravos com mais ou menos regalias.

As suas leituras dos Evangelhos ainda o surpreendem?

Sim, e de que maneira. Hoje ainda mais do que ontem. Aliás, hoje com acesso aos textos descodificados e com os dados trazidos à luz pela investigação histórica e científica sobre Jesus e as origens do cristianismo, os quatro Evangelhos em cinco volumes são o que há de mais belo e de mais revelador na literatura mundial. Mas não podemos parar neles, nem ficarmos por esta constatação meramente literária. Temos de dar um passo mais, sem o qual não passamos de eruditos e de bem-falantes, papas e doutores. Temos de reconhecer que mesmo estes cinco volumes apenas apontam para Jesus histórico, o filho de Maria. Pelo que não podemos parar neles. Seria juntar livro sobre livro, uma especialidade do grande mercado e do poder que o promove. Temos de chegar a compreender com a nossa mente cordial que Jesus histórico, com suas práticas políticas e económicas maiêuticas, não religiosas, é que é o livro. Sem Jesus e o seu sopro ou Ruah, todos os outros livros são idolatria e ideologia. Porque só o sopro de Jesus histórico é anterior ao próprio Big Bang. Por isso, a fonte de todos os outros sopros que cada uma e cada um de nós, seres humanos e povos, matricialmente somos, mas depressa, infelizmente, formatados pelo sopro do poder, o mal estrutural do mundo ou, no falar histórico de Jesus, o pecado do mundo. A começar pelos próprios pais e mães que, neste tipo de mundo do poder, nos chamam à vida. Pelo que até dos laços de sangue temos de nos soltar, quanto antes, para podermos dizer com verdade, eu sou, nós somos. Em vez de eu tenho, eu posso, eu domino.

Jesus segundo os 4 Evangelhos em 5 Volumes

Pe. Mário de Oliveira

Editora Seda Publicações

491 páginas